Em “Corra!”, um comediante dá uma bela aula de terror
Filme terror de Jordan Peele (da comédia “Key e Peele”) evoca clássicos do gênero e traz o racismo para o ponto central. Deu muito certo!
Publicado em 25 de maio de 2017 às, 11h00.
Última atualização em 2 de março de 2018 às, 13h51.
Quando notícias de que Jordan Peele estava trabalhando em um filme de terror vieram à tona, confesso, desconfiei.
Famoso por imitações do presidente Barack Obama no programa de humor “Key e Peele”, que escrevia e estrelava, Peele não era um nome fácil de ligar ao gênero. Muitos (eu, inclusive) questionaram a sua habilidade de transitar entre a comédia e o terror, ainda mais em uma produção de baixo orçamento, avaliada em 4,5 milhões de dólares.
Aí “Corra!” estreou. Foi aplaudido pela crítica no Festival de Sundance e fez história nas bilheterias americanas: é o mais bem-sucedido filme baseado em uma história original dirigido por um estreante, um posto ocupado por quase duas décadas por “A Bruxa de Blair” (1999). Se tornou, ainda, o terceiro filme de terror mais lucrativo, atrás de “Hannibal” (2001) e “O Exorcista” (1973).
Em resumo: ARRASOU. E com razão.
Em “Corra!”, Peele aproveita a estrutura narrativa típica de filmes de terror e thrillers de suspense clássicos para criar uma das primeiras obras do gênero que tem o racismo como ponto central. E reúne tudo o que você esperaria nos melhores longas: é tenso, assustador, atual e, ainda, tem doses e tons certos de comédia.
A história é sobre Chris (Daniel Kaluuya), um fotógrafo negro que namora Rose Armitage (Allison Williams), uma garota branca, rica e descolada. Juntos há cinco meses, enfim chega o momento de ele conhecer os novos sogros.
Com diligência de quem conhece o racismo de perto, ele insiste em saber se Rose contou à família que ele é negro. Surpresa com a pergunta, ela lembra que seus pais são ótimas pessoas, que votariam em Obama “pela terceira vez” se fosse possível. O casal então parte para um final de semana em uma bela propriedade.
Em meio a conversas constrangedoras com o pai de Rose, Dean (Bradley Whitford), que repete sua simpatia por Obama e fala sobre a admiração por “novas culturas”, Chris começa a se sentir em casa... Até perceber a esquisitice (digamos assim) dos funcionários da propriedade, todos negros, e os papos nada amigáveis do irmão de Rose, Jeremy (Caleb Landry Jones).
Ainda assim, sequer imagina os segredos sombrios que essa família guarda. A situação vai se tornando cada vez mais sufocante e sinistra, mas Chris demonstra ter uma força contida, lutando para equilibrar cautela, sanidade e a intuição contra situações de preconceito.
“Corra!” mostra as nuances do racismo nos Estados Unidos pós-Obama. Um país que observa o fortalecimento de grupos de extrema-direita que se mantiveram às margens do debate político nas últimas décadas, mas que agora vêm conquistando um público cada vez maior com discursos discriminatórios.
Sutilmente, Peele traz algumas referências perturbadoras dos tempos da escravidão nos Estados Unidos: a propriedade da família Armitage e seus ares de plantation, a contagem dos segundos em “One Missisipi, Two Missisipi”, um estado histórico na luta pelos direitos civis e que ainda hoje é palco de episódios violentos de racismo.
Em perfeita sintonia com o zeitgeist americano, o filme segue a cartilha de clássicos do terror das décadas de 60 e 70, como o “O Bebê de Rosemary” (de 1969 e dirigido por Roman Polanski): a história se desenvolve em um ritmo quase lento, construindo com elegância a atmosfera de paranoia que sucede o clímax da descoberta dos horrores que virão.
Para quem está acostumado com filmes de terror, especialmente os clássicos, os desdobramentos podem não surpreender. Mas isso não interfere em nada o clima de tensão que se mantém até o final, já que a obra de Peele entrega o que propõe ser: um filme assustador.
Como fã do gênero, é reconfortante ver essa construção narrativa em alta, já que foi deixada de lado nos últimos anos em favor da sanguinolência e sustos excessivos. “Corra!”, assim como “Corrente do Mal” (2015) e “A Bruxa“ (2016), traz esse estilo de volta ao topo. Só que ainda mais interessante é ver um tema como o racismo ser tratado de forma tão destemida em um filme de terror.