Exame Logo

Brasil: trópicos demasiadamente utópicos

Acabei de ler “Trópicos Utópicos” de Eduardo Giannetti. O livro é uma saborosa coleção de 124 aforismos ou, como o autor prefere denominar, microensaios. Com subtítulo de “Uma perspectiva brasileira da crise civilizatória”, Giannetti identifica no Brasil “a partir de um olhar utópico e prospectivo, um projeto original de realização no mundo globalizado”, e completa: […]

CARNAVAL: precisamos aliar nossa sensualidade cabocla a avanços efetivos na área da inovação, ciência e tecnologia / (Mario Tama/Getty Images)
DR

Da Redação

Publicado em 6 de julho de 2016 às 12h51.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h07.

Acabei de ler “Trópicos Utópicos” de Eduardo Giannetti. O livro é uma saborosa coleção de 124 aforismos ou, como o autor prefere denominar, microensaios. Com subtítulo de “Uma perspectiva brasileira da crise civilizatória”, Giannetti identifica no Brasil “a partir de um olhar utópico e prospectivo, um projeto original de realização no mundo globalizado”, e completa: “o Brasil tem fome de futuro”.

Corri para ler o livro assim que saiu porque confesso que me intriga muito quando surgem, de tempos em tempos, teorias que, desafiando nossa realidade precária, sustentam um modelo brasileiro não só diferente, mas principalmente melhor que o de outros países.

O precursor desses conceitos foi o escritor austríaco Stefan Zweig que, fugindo da guerra e vivendo em Petrópolis, publicou em 1941 “Brasil, um país do futuro”, no qual dizia que enquanto o resto do mundo estava em uma guerra suicida, “no Brasil está em formação uma nova civilização pronta a tornar real tudo aquilo que desejamos e sonhamos”

Mais recentemente o sociólogo italiano Domenico De Masi publicou um livro chamado “Mapa Mundi”, no qual defende a necessidade de um novo modelo para o mundo desorientado de hoje. Apresenta 15 modelos possíveis incluindo o indiano, chinês, japonês, o grego clássico, o muçulmano, o industrial capitalista, o socialista, etc. O modelo brasileiro é apresentado por último e, na conclusão, De Masi diz: “Entre todos os países do mundo, talvez o mais preparado para essas formas de conflito pós-industrial seja o Brasil…”. Embora o ‘talvez’ acima relativize um pouco o veredito, é sintomático que o livro tenha sido lançado primeiro no Brasil e com o nome: “O futuro chegou”. Mais que um modelo superior, o Brasil já teria atingido esse estágio de evolução e estaria pronto para ser admirado e copiado pelo resto do mundo.

As bases para a defesa de um modelo ou de uma utopia brasileira vêm de vários intelectuais e pensadores como Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, conhecidos como “os inventores do Brasil”. Todos eles concordam que temos uma “mistura de raças, uma concepção poética, alegre, sensual e solidária da vida, uma propensão à amizade e à solidariedade e um comportamento aberto à cordialidade”. Somos um país pacífico e sem guerras.

Gianetti bebe dessas fontes e complementa: “O Brasil é um país mestiço, genética e culturalmente fusionado — eis o traço que melhor nos define”. “Uma nação que se educa e civiliza, mas preserva a chama da vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa”.

Entendo a necessidade de criarmos referências para a construção de um futuro melhor. Entendo também o reforço das nossas qualidades sensoriais e de tolerância diante da “desorientação do mundo”, do atual desencanto com as sociedades capitalistas liberais e a falta de um modelo alternativo com o fim das utopias socialistas.

O próprio Giannetti salienta este aspecto quando declara sua desilusão com “os três ídolos da modernidade – a ciência, a tecnologia e o crescimento econômico – e os impasses advindos dos seus cultos”. Defende corretamente, a meu ver, que “no cerne da alma brasileira, a presença de atributos, sensibilidade e valores pré-modernos, de extração africana e ameríndia, se revelaram capazes de oferecer tenaz resistência à invasão dos valores estreitamente utilitários e competitivos da subcultura ocidental”. Eu só acrescentaria que esses valores que foram um dia pré-modernos são, hoje, pós-modernos.

Também é compreensível a rejeição com a “idolatria do PIB” e a ânsia pela substituição por algum tipo de indicador de felicidade coletiva. A felicidade, esse conceito etéreo e impreciso, é objeto de desejo e razão de existir de filosofias e utopias desde tempos imemoriais.

Não há duvida que a “brasilidade” tem muito a contribuir para esse ansiado mundo novo. Mas é insensato deixar de fazer um “reality check”. A nossa triste realidade de país desigual, violento, dividido e incapaz de resolver problemas básicos não nos anima a vestir esse disfarce de modelo para o mundo. Muito menos de concluir que o futuro já chegou.

Em um mundo globalizado e de fronteiras abertas, se não aliarmos nossa sensualidade cabocla a avanços efetivos na área da inovação, ciência e tecnologia vamos continuar celebrando apenas nosso carnaval e nossa música popular.

Nelson Rodrigues cunhou a expressão: “complexo de vira-lata” para falar principalmente do nosso futebol. Infelizmente, nada no mundo real nos avaliza a legitimar um complexo de superioridade, nem mesmo mais o futebol.

As três capas da revista The Economist em menos de uma década, primeiro com o cristo redentor levantando voo, depois se esborrachando contra o morro e, finalmente, pedindo socorro, mostra que, como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes.

Termino citando Oswald de Andrade, o mais criativo e provocador dos utopistas brasileiros. Em seu manifesto antropófago de 1928, defendeu que os brasileiros deveriam comer a cultura europeia – da mesma maneira que os caetés comeram o bispo Sardinha – e devolvê-la, ao mundo, impregnada com nosso jeito e a nossa criatividade. Assim foi com a Bossa Nova e com a Tropicália.

Precisamos de uma antropofagia pós-moderna que possa deglutir a racionalidade lógica da inovação incessante do capitalismo liberal para retorná-la embebida com a vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa destes alegres trópicos.

silvio-genesini

Veja também

Acabei de ler “Trópicos Utópicos” de Eduardo Giannetti. O livro é uma saborosa coleção de 124 aforismos ou, como o autor prefere denominar, microensaios. Com subtítulo de “Uma perspectiva brasileira da crise civilizatória”, Giannetti identifica no Brasil “a partir de um olhar utópico e prospectivo, um projeto original de realização no mundo globalizado”, e completa: “o Brasil tem fome de futuro”.

Corri para ler o livro assim que saiu porque confesso que me intriga muito quando surgem, de tempos em tempos, teorias que, desafiando nossa realidade precária, sustentam um modelo brasileiro não só diferente, mas principalmente melhor que o de outros países.

O precursor desses conceitos foi o escritor austríaco Stefan Zweig que, fugindo da guerra e vivendo em Petrópolis, publicou em 1941 “Brasil, um país do futuro”, no qual dizia que enquanto o resto do mundo estava em uma guerra suicida, “no Brasil está em formação uma nova civilização pronta a tornar real tudo aquilo que desejamos e sonhamos”

Mais recentemente o sociólogo italiano Domenico De Masi publicou um livro chamado “Mapa Mundi”, no qual defende a necessidade de um novo modelo para o mundo desorientado de hoje. Apresenta 15 modelos possíveis incluindo o indiano, chinês, japonês, o grego clássico, o muçulmano, o industrial capitalista, o socialista, etc. O modelo brasileiro é apresentado por último e, na conclusão, De Masi diz: “Entre todos os países do mundo, talvez o mais preparado para essas formas de conflito pós-industrial seja o Brasil…”. Embora o ‘talvez’ acima relativize um pouco o veredito, é sintomático que o livro tenha sido lançado primeiro no Brasil e com o nome: “O futuro chegou”. Mais que um modelo superior, o Brasil já teria atingido esse estágio de evolução e estaria pronto para ser admirado e copiado pelo resto do mundo.

As bases para a defesa de um modelo ou de uma utopia brasileira vêm de vários intelectuais e pensadores como Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, conhecidos como “os inventores do Brasil”. Todos eles concordam que temos uma “mistura de raças, uma concepção poética, alegre, sensual e solidária da vida, uma propensão à amizade e à solidariedade e um comportamento aberto à cordialidade”. Somos um país pacífico e sem guerras.

Gianetti bebe dessas fontes e complementa: “O Brasil é um país mestiço, genética e culturalmente fusionado — eis o traço que melhor nos define”. “Uma nação que se educa e civiliza, mas preserva a chama da vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa”.

Entendo a necessidade de criarmos referências para a construção de um futuro melhor. Entendo também o reforço das nossas qualidades sensoriais e de tolerância diante da “desorientação do mundo”, do atual desencanto com as sociedades capitalistas liberais e a falta de um modelo alternativo com o fim das utopias socialistas.

O próprio Giannetti salienta este aspecto quando declara sua desilusão com “os três ídolos da modernidade – a ciência, a tecnologia e o crescimento econômico – e os impasses advindos dos seus cultos”. Defende corretamente, a meu ver, que “no cerne da alma brasileira, a presença de atributos, sensibilidade e valores pré-modernos, de extração africana e ameríndia, se revelaram capazes de oferecer tenaz resistência à invasão dos valores estreitamente utilitários e competitivos da subcultura ocidental”. Eu só acrescentaria que esses valores que foram um dia pré-modernos são, hoje, pós-modernos.

Também é compreensível a rejeição com a “idolatria do PIB” e a ânsia pela substituição por algum tipo de indicador de felicidade coletiva. A felicidade, esse conceito etéreo e impreciso, é objeto de desejo e razão de existir de filosofias e utopias desde tempos imemoriais.

Não há duvida que a “brasilidade” tem muito a contribuir para esse ansiado mundo novo. Mas é insensato deixar de fazer um “reality check”. A nossa triste realidade de país desigual, violento, dividido e incapaz de resolver problemas básicos não nos anima a vestir esse disfarce de modelo para o mundo. Muito menos de concluir que o futuro já chegou.

Em um mundo globalizado e de fronteiras abertas, se não aliarmos nossa sensualidade cabocla a avanços efetivos na área da inovação, ciência e tecnologia vamos continuar celebrando apenas nosso carnaval e nossa música popular.

Nelson Rodrigues cunhou a expressão: “complexo de vira-lata” para falar principalmente do nosso futebol. Infelizmente, nada no mundo real nos avaliza a legitimar um complexo de superioridade, nem mesmo mais o futebol.

As três capas da revista The Economist em menos de uma década, primeiro com o cristo redentor levantando voo, depois se esborrachando contra o morro e, finalmente, pedindo socorro, mostra que, como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes.

Termino citando Oswald de Andrade, o mais criativo e provocador dos utopistas brasileiros. Em seu manifesto antropófago de 1928, defendeu que os brasileiros deveriam comer a cultura europeia – da mesma maneira que os caetés comeram o bispo Sardinha – e devolvê-la, ao mundo, impregnada com nosso jeito e a nossa criatividade. Assim foi com a Bossa Nova e com a Tropicália.

Precisamos de uma antropofagia pós-moderna que possa deglutir a racionalidade lógica da inovação incessante do capitalismo liberal para retorná-la embebida com a vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa destes alegres trópicos.

silvio-genesini

Acompanhe tudo sobre:Exame Hoje

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se