Além da verdade e da mentira na vitória de Trump
Passada a surpresa inicial, a mídia, que apoiou maciçamente Hilary, e os que torceram contra Trump se empenharam em encontrar razões para a derrota. Entre muitas explicações uma ganhou relevância na última semana: a proliferação de noticias falsas na internet, principalmente no Facebook. As noticias foram as mais variadas possíveis. A lista é imensa. A […]
Da Redação
Publicado em 24 de novembro de 2016 às 15h36.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h18.
Passada a surpresa inicial, a mídia, que apoiou maciçamente Hilary, e os que torceram contra Trump se empenharam em encontrar razões para a derrota. Entre muitas explicações uma ganhou relevância na última semana: a proliferação de noticias falsas na internet, principalmente no Facebook.
As noticias foram as mais variadas possíveis. A lista é imensa. A mais publicada dizia que o papa Francisco estava apoiando Trump. Segundo um levantamento do site BuzzFeed, cerca de 20 noticias falsas sobre a eleição, nos 3 meses que a antecederam, receberam quase 9 milhões de likes, compartilhamentos e comentários.
Ao mesmo tempo, o dicionário inglês Oxford elegeu pós-verdade (pos-truth) como o termo mais importante do ano. O verbete tem o seguinte significado: “relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que os apelos à emoção ou à crença pessoal”. Segundo o dicionário, o uso do termo cresceu explosivamente em 2016, associado principalmente ao Brexit e às eleições americanas.
Às mentiras da reta final de campanha vieram a somar as declarações falsas, ou meias verdades, que Trump usou durante toda a campanha, como, por exemplo, que o presidente Obama teria nascido no Quênia, ou que muçulmanos de New Jersey comemoraram o ataque de 11 de setembro.
A mídia e os articulistas juntaram os pontos e concluíram rapidamente: na era da pós-verdade as noticias falsas decidiram a eleição. Uma consulta rápida ao Google comprova o grande número de artigos que atribui peso significativo dessa justificativa no resultado final do pleito. Será?
Testemos as hipóteses. Os argumentos são claramente contraditórios entre si. Se na pós-verdade os fatos objetivos têm menos importância do que as crenças pessoais, as mentiras, mesmo se tomadas como verdade, teriam pouca influencia na percepção de quem tomou a decisão de votar em Trump. Ou, melhor ainda, quem acreditou nele o fez pelos apelos emocionais e subjetivos e aceitou de bom grado as mentiras como uma comprovação de sua fé.
Há sim fatos objetivos inquestionáveis na raiz da percepção dos eleitores. O aumento da desigualdade, os benefícios não uniformes da globalização e a transferência das fábricas e dos empregos para o México e para a Ásia são verdades factuais indesmentíveis. Trump bebeu dessa fonte e construiu um roteiro que mistura ficção e realidade para projetar um final feliz na cabeça de quem vive tal realidade. A razão dos tempos atuais não é lógica, é sensível. O sentimento se encaixou com a realidade e o defensor de Trump virou um torcedor de time de futebol. Vê o jogo pela lente da sua preferência. Verdades ou mentiras factuais tem pouca influencia no resultado final do jogo.
Para além desta questão, estamos assistindo a mais uma rodada da disputa entre a mídia tradicional e os gigantes de tecnologia. Google e Facebook repetem indefinidamente que não veículos de mídia, mas sim plataformas tecnológicas que distribuem conteúdos produzidos por terceiros. Tal afirmação não resiste à menor análise. Há produção de conteúdo dentro das plataformas e elas têm um papel relevante na edição e seleção das matérias vistas pelos usuários, através dos seus famigerados algoritmos, funções essas que são parte essencial do que os veículos tradicionais fazem.
Daí a cobrança para que Google e Facebook exerçam controle e evitem que notícias suspeitas circulem pelas suas páginas. Para completar, notícias falsas geram engajamento e audiência e quem as produz é remunerado com receitas geradas pelas azeitadas máquinas de vender publicidade de ambas as companhias. O exemplo mais divulgado nos últimos dias foi o do site de garotos da Macedônia que produz conteúdo falso para atrair cliques americanos. Eles valem mais no algoritmo de distribuição do dinheiro da publicidade.
Google e Facebook passaram a semana se explicando e, finalmente, comunicaram que vão impedir que os sites identificados se beneficiem de receitas publicitarias. O Google fez isso depois que passou pela vergonha de colocar em primeiro lugar na sua busca orgânica (não paga) dos resultados da eleição uma noticia de um site obscuro, chamado 70News.com, que dava vitória a Trump também no voto popular, o que não aconteceu.
Mark Zuckerberg, pressionado, apareceu com uma série de declarações confusas e incoerentes, incluindo o comentário de que 99% das informações que circulam no Facebook são autênticas, como se essa também fosse uma verdade factual verificável e não um mero chute. Depois produziu uma declaração mais razoável que vai ao centro do problema: como identificar que as noticias são efetivamente falsas? Postou no seu perfil: “Os problemas aqui são complexos, tanto técnica como filosoficamente. Nós não queremos ser árbitros da verdade, mas sim se apoiar na nossa comunidade e em terceiros confiáveis”.
Listou também o que considera as melhores alternativas para resolver o problema, entre eles: o uso de robôs para detecção, a denuncia feita pelos usuários e a checagem por terceiros. Nada disso eliminaria totalmente a necessidade de revisão humana que o Facebook quer evitar depois de ter eliminado a curadoria nos seus “trending topics”. Na ocasião foi acusado de tendência esquerdista pela direita americana, o que não deixa de ser mais uma ironia diante da polêmica de agora e do fato que Zuckerberg apoiou Hilary.
A realidade é que a fronteira entre a mentira factual produzida propositalmente e outras formas de interpretação, opinião, manifestação de preferências ou até de humor é muito tênue. Paul Honer, dono de um site obscuro, especializado em produzir noticias falsas, chamado espertamente de abcnews.com, declarou ao Washington Post: “Eu faço paródia, sátira. As pessoas não checam nada e passam para frente”. Notícias de Honer foram compartilhadas pelo filho e pelo chefe de campanha de Trump e apareceram no topo dos resultados de busca do Google. Para completar, ele afirma que detesta o novo presidente.
A vitória de Trump desnorteou de tal maneira todo mundo que estava do outro lado que o Facebook aceitou a responsabilidade de resolver o problema. A motivação de Mark Zuckerberg pode ser atribuída ao reconhecimento da culpa ou mesmo esperteza. Até recentemente a própria mídia reclamava do poder ditatorial da plataforma de retirar conteúdos que julgava inadequados. Vide o caso recente da eliminação, por acusação de nudez, da famosa foto da garota vietnamita que fugia das bombas de napalm durante a guerra com os Estados Unidos. A foto só voltou ao site depois que o jornal norueguês que a publicou fez um estardalhaço no próprio Facebook e em todas as redes sociais. Ironia insuperável, agora a própria mídia pede que o Facebook controle e censure seu conteúdo.
A conclusão irremovível é que a missão é impossível. Por mais que se tenha o auxilio dos usuários, inteligência artificial e computação cognitiva, entender e criar regras para reconhecer a verdade no século XXI é algo simplesmente inatingível. A verdade, quase sempre, é subjetiva e não conhecível.
Passada a surpresa inicial, a mídia, que apoiou maciçamente Hilary, e os que torceram contra Trump se empenharam em encontrar razões para a derrota. Entre muitas explicações uma ganhou relevância na última semana: a proliferação de noticias falsas na internet, principalmente no Facebook.
As noticias foram as mais variadas possíveis. A lista é imensa. A mais publicada dizia que o papa Francisco estava apoiando Trump. Segundo um levantamento do site BuzzFeed, cerca de 20 noticias falsas sobre a eleição, nos 3 meses que a antecederam, receberam quase 9 milhões de likes, compartilhamentos e comentários.
Ao mesmo tempo, o dicionário inglês Oxford elegeu pós-verdade (pos-truth) como o termo mais importante do ano. O verbete tem o seguinte significado: “relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que os apelos à emoção ou à crença pessoal”. Segundo o dicionário, o uso do termo cresceu explosivamente em 2016, associado principalmente ao Brexit e às eleições americanas.
Às mentiras da reta final de campanha vieram a somar as declarações falsas, ou meias verdades, que Trump usou durante toda a campanha, como, por exemplo, que o presidente Obama teria nascido no Quênia, ou que muçulmanos de New Jersey comemoraram o ataque de 11 de setembro.
A mídia e os articulistas juntaram os pontos e concluíram rapidamente: na era da pós-verdade as noticias falsas decidiram a eleição. Uma consulta rápida ao Google comprova o grande número de artigos que atribui peso significativo dessa justificativa no resultado final do pleito. Será?
Testemos as hipóteses. Os argumentos são claramente contraditórios entre si. Se na pós-verdade os fatos objetivos têm menos importância do que as crenças pessoais, as mentiras, mesmo se tomadas como verdade, teriam pouca influencia na percepção de quem tomou a decisão de votar em Trump. Ou, melhor ainda, quem acreditou nele o fez pelos apelos emocionais e subjetivos e aceitou de bom grado as mentiras como uma comprovação de sua fé.
Há sim fatos objetivos inquestionáveis na raiz da percepção dos eleitores. O aumento da desigualdade, os benefícios não uniformes da globalização e a transferência das fábricas e dos empregos para o México e para a Ásia são verdades factuais indesmentíveis. Trump bebeu dessa fonte e construiu um roteiro que mistura ficção e realidade para projetar um final feliz na cabeça de quem vive tal realidade. A razão dos tempos atuais não é lógica, é sensível. O sentimento se encaixou com a realidade e o defensor de Trump virou um torcedor de time de futebol. Vê o jogo pela lente da sua preferência. Verdades ou mentiras factuais tem pouca influencia no resultado final do jogo.
Para além desta questão, estamos assistindo a mais uma rodada da disputa entre a mídia tradicional e os gigantes de tecnologia. Google e Facebook repetem indefinidamente que não veículos de mídia, mas sim plataformas tecnológicas que distribuem conteúdos produzidos por terceiros. Tal afirmação não resiste à menor análise. Há produção de conteúdo dentro das plataformas e elas têm um papel relevante na edição e seleção das matérias vistas pelos usuários, através dos seus famigerados algoritmos, funções essas que são parte essencial do que os veículos tradicionais fazem.
Daí a cobrança para que Google e Facebook exerçam controle e evitem que notícias suspeitas circulem pelas suas páginas. Para completar, notícias falsas geram engajamento e audiência e quem as produz é remunerado com receitas geradas pelas azeitadas máquinas de vender publicidade de ambas as companhias. O exemplo mais divulgado nos últimos dias foi o do site de garotos da Macedônia que produz conteúdo falso para atrair cliques americanos. Eles valem mais no algoritmo de distribuição do dinheiro da publicidade.
Google e Facebook passaram a semana se explicando e, finalmente, comunicaram que vão impedir que os sites identificados se beneficiem de receitas publicitarias. O Google fez isso depois que passou pela vergonha de colocar em primeiro lugar na sua busca orgânica (não paga) dos resultados da eleição uma noticia de um site obscuro, chamado 70News.com, que dava vitória a Trump também no voto popular, o que não aconteceu.
Mark Zuckerberg, pressionado, apareceu com uma série de declarações confusas e incoerentes, incluindo o comentário de que 99% das informações que circulam no Facebook são autênticas, como se essa também fosse uma verdade factual verificável e não um mero chute. Depois produziu uma declaração mais razoável que vai ao centro do problema: como identificar que as noticias são efetivamente falsas? Postou no seu perfil: “Os problemas aqui são complexos, tanto técnica como filosoficamente. Nós não queremos ser árbitros da verdade, mas sim se apoiar na nossa comunidade e em terceiros confiáveis”.
Listou também o que considera as melhores alternativas para resolver o problema, entre eles: o uso de robôs para detecção, a denuncia feita pelos usuários e a checagem por terceiros. Nada disso eliminaria totalmente a necessidade de revisão humana que o Facebook quer evitar depois de ter eliminado a curadoria nos seus “trending topics”. Na ocasião foi acusado de tendência esquerdista pela direita americana, o que não deixa de ser mais uma ironia diante da polêmica de agora e do fato que Zuckerberg apoiou Hilary.
A realidade é que a fronteira entre a mentira factual produzida propositalmente e outras formas de interpretação, opinião, manifestação de preferências ou até de humor é muito tênue. Paul Honer, dono de um site obscuro, especializado em produzir noticias falsas, chamado espertamente de abcnews.com, declarou ao Washington Post: “Eu faço paródia, sátira. As pessoas não checam nada e passam para frente”. Notícias de Honer foram compartilhadas pelo filho e pelo chefe de campanha de Trump e apareceram no topo dos resultados de busca do Google. Para completar, ele afirma que detesta o novo presidente.
A vitória de Trump desnorteou de tal maneira todo mundo que estava do outro lado que o Facebook aceitou a responsabilidade de resolver o problema. A motivação de Mark Zuckerberg pode ser atribuída ao reconhecimento da culpa ou mesmo esperteza. Até recentemente a própria mídia reclamava do poder ditatorial da plataforma de retirar conteúdos que julgava inadequados. Vide o caso recente da eliminação, por acusação de nudez, da famosa foto da garota vietnamita que fugia das bombas de napalm durante a guerra com os Estados Unidos. A foto só voltou ao site depois que o jornal norueguês que a publicou fez um estardalhaço no próprio Facebook e em todas as redes sociais. Ironia insuperável, agora a própria mídia pede que o Facebook controle e censure seu conteúdo.
A conclusão irremovível é que a missão é impossível. Por mais que se tenha o auxilio dos usuários, inteligência artificial e computação cognitiva, entender e criar regras para reconhecer a verdade no século XXI é algo simplesmente inatingível. A verdade, quase sempre, é subjetiva e não conhecível.