A quebra de braços entre Google, agências e anunciantes
A briga que se iniciou no Reino Unido e se espalhou pelo mundo é a crônica de uma guerra anunciada. Começou com uma reportagem, em fevereiro, do The Times de Londres que revelou que campanhas de grandes marcas apareciam junto a vídeos com conteúdo extremista no YouTube. A agência Havas foi a primeira a retirar […]
Publicado em 31 de março de 2017 às, 13h56.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h01.
A briga que se iniciou no Reino Unido e se espalhou pelo mundo é a crônica de uma guerra anunciada. Começou com uma reportagem, em fevereiro, do The Times de Londres que revelou que campanhas de grandes marcas apareciam junto a vídeos com conteúdo extremista no YouTube.
A agência Havas foi a primeira a retirar todos os seus clientes do serviço. Grandes marcas, como Marks & Spencer, Hyundai, Sainsbury, Toyota e HSBC, aderiram. Grupos de Mídia como BBC e The Guardian engrossaram o coro. Holding publicitárias como WPP e Interpublic também entraram no movimento.
Quando chegou aos Estados Unidos o deslizamento já tinha virado uma avalanche, com nomes peso-pesado do tipo: AT&T, GM, Verizon, Walmart e Johnson & Johnson. O Google acusou o golpe e desculpou-se rapidamente: “Desapontamos nossos clientes no Reino Unido” tentando manter a crise localizada, o que naquela altura já era impossível.
O conflito, que não vai se encerrar nesse episódio e pode aumentar nos próximos tempos, deve-se à dois fenômenos que se aceleraram recentemente. O primeiro é o crescimento exponencial e a dominância de Google e Facebook como as novas plataformas de mídia mundiais. Ambos sempre recusaram essa classificação. Dizem que não produzem conteúdo, o que é certo. Por outro lado, são os grandes editores e selecionadores do que boa parte da humanidade consome de notícias e entretenimento.
Como tais, estão sendo responsabilizados pelo que é publicado em seus domínios. Começou com as notícias falsas, que teriam ajudado a eleger Trump e adquiriu nova força, agora, com a constatação da proliferação dos vídeos extremistas. As plataformas, que inicialmente se recusavam a fazer este papel de censor, acabaram não tendo alternativa e anunciaram medidas para tentar resolver o problema. A mídia tradicional, que reclamava do poder discricionário das empresas de tecnologia no controle do conteúdo, mudou de lado e endossou a pressão pela responsabilização.
O outro fenômeno é a mudança acelerada de mãos das verbas publicitárias. São muitas as estatísticas a respeito. Faço a seguir um resumo possível dos grandes números. O total dos investimentos publicitários no mundo estão por volta de 550 bilhões de dólares. Desse total mais de um terço já é destinado às mídias digitais. Do total digital cerca da metade está concentrado nas mãos do Google e Facebook. O total investido cresce muito pouco, quase nada. A parte do digital cresce a mais de 20% ao ano. Isso tudo significa que o share do digital aumenta rapidamente e, em poucos anos, será mais da metade do total.
Os números brasileiros são similares. O relatório do IAB (Interactive Advertising Bureau), com base em pesquisa da comScore, diz que o total da publicidade digital no Brasil em 2016 foi de 11,5 bilhões de reais, um crescimento de 26% em relação ao ano anterior.
Considerando que o do mercado brasileiro é de cerca de 47 bilhões, o digital já é um quarto do total. A previsão do instituto é que o digital cresça novamente 26% em 2017. Como o número global por aqui também cresce muito pouco, o digital chegará a 1/3 do total e em poucos anos passará a televisão, que sempre foi dominante nestes trópicos e chegou a ter 70% do mercado nacional.
Esse é um cenário muito diferente daquele que anunciantes e agências estavam acostumados a tratar quando televisão, revista, radio e jornal eram as únicas mídias. Os modelos eram conhecidos. As regras de convivência eram estáveis. Na era dos algoritmos as agências ganham novos concorrentes e correm o risco de ser desintermediadas. As grandes consultorias como Accenture e Deloitte compraram grandes agências digitais. Google e Facebook muitas vezes negociam diretamente com o cliente. São, portanto, “frenemies”. Às vezes amigos, às vezes concorrentes.
Com o advento da chamada mídia programática, em que a decisão de colocação dos anúncios é feita inteiramente por software, as competências mudam de mãos e de cabeças. Múltiplas possibilidades de novas intermediações aparecem. É o sinal típico da disrupção.
Os novos modelos de negócio dependem de algoritmos que ficam cada vez mais inteligentes e decidem por lógicas desconhecidas. São obscuros, herméticos e segredos competitivos dos seus donos. O que lemos, vemos e anunciamos dependem de robôs que não sabemos como se comportam. O incômodo é claro e justificável.
A solução, é claro, seria a abertura das entranhas desses decisores invisíveis para que eles fossem aperfeiçoados coletivamente. Sundar Pichai, o CEO do Google, em entrevista para a revista VEJA de 29/3/2017 afirmou se referindo aos perigos da Inteligência Artificial: “O bom caminho que o Google encontrou para isso é ser transparente. Sempre compartilhamos nossas informações com todos, justamente para levantar os necessários debates éticos provenientes delas”.
Essa é uma situação que se enquadra perfeitamente na definição acima. Quais conteúdos podem ou não ser publicados, como serão mostrados e como as marcas estarão se relacionando com eles são questões éticas que pedem transparência.
Algumas notícias são escancaradamente falsas. Alguns vídeos são ostensivamente extremistas ou racistas. Muitos outros, porém, estão na fronteira tênue entre o radical, o politicamente incorreto ou até o humorismo escrachado. A máquina inteligente precisa da ajuda humana para entender esses limites, e mesmo a tolerância para certas matérias varia de acordo com a cultura do país e de grupos de indivíduos.
Quando do anuncio dos resultados de 2016 da WPP, perguntaram ao Sir Martin Sorrel, CEO da WPP, maior grupo de publicidade do mundo, o que o mantinha acordado à noite. Sir Martin, de 72 anos, tem uma filha de 3 meses. Disse que não era a filha, mas sim a Amazon o que lhe tirava o sono. Explicou que a Amazon, que sempre teve seu modelo calcado em vendas diretas e assinaturas, está crescendo silenciosamente suas receitas de publicidade. E que poderia ser um “inimigo” ainda mais poderoso que Google e Facebook. Enquanto estes só têm informações genéricas sobre predisposição de compra, a gigante do comércio eletrônico tem dados precisos da hora efetiva do fechamento e do histórico de aquisições e de desistência dos clientes. Um painel muito mais efetivo dos desejos e hábitos de consumo de uma massa imensa de pessoas.
Sir Martin não disse explicitamente, mas para que tenha tido pesadelos, acha que a Amazon vai precisar ainda menos da intermediação de uma entidade chamada agência de publicidade. Os sinais são claros. É chegada a hora da reinvenção radical das relações entre plataformas de mídia e agências, agências e marcas, marcas e consumidores.