A lambança no uso da tecnologia na Copa do Mundo
Apesar de tudo e de todos, o mérito da tecnologia vai acabar se impondo por suas próprias qualidades
Da Redação
Publicado em 22 de junho de 2018 às 13h21.
Como até os paralelepípedos da Praça Vermelha já sabem, o árbitro de vídeo estreou na Copa do Mundo da Rússia. Seguindo uma antiga tradição de atribuir siglas de 3 letrinhas às novas tecnologias, chama-se VAR, ou Video Assistant Referree. Até o inicio da segunda rodada, quando este artigo estava sendo escrito, rivalizava com Cristiano Ronaldo como a grande estrela da Copa.
Diga-se, a bem da verdade, que foi a contragosto. O futebol resistiu o quanto pode. Viu todos os outros esportes aderirem. Os preferidos dos americanos – basquete e futebol americano – já usam há muito tempo. O tênis também, para marcar as saídas de bola. Até o vôlei adotou, com sucesso, para as difíceis marcações de toques no bloqueio, entre outras jogadas.
Os argumentos principais para fugir da tecnologia variam muito. Seguem alguns deles: os jogos vão ser demasiadamente interrompidos; os lances mais agudos dependem de interpretação porque futebol é um esporte de contato (como se basquete e futebol americano não fossem). O mais divertido deles é o que sustenta que acabariam as acaloradas e divertidas discussões pós-jogo. Em resumo, pode-se dizer que, na opinião dos dirigentes, seria inevitável, e até positivo, conviver com marcações erradas e uma certa dose polêmica no esporte bretão.
Joseph Blatter, o afastado e suspenso ex-presidente da Fifa, chegou em Moscou reafirmando a sua suspeição da tecnologia: “O VAR não é uma solução ideal. Os árbitros de vídeo são sempre diferentes e cada um tem uma maneira diferente de ver o futebol”. Como cada partida tem um árbitro diferente, deve fazer parte do esporte que cada um tenha o seu jeito de ver o futebol e interpretar as jogadas. Em cada cabeça, uma sentença e estamos todo bem com isso. Não é à toa que é dito que o futebol é uma caixinha de surpresas. Poderíamos também parafrasear Tom Hanks em Forrest Gump: o futebol é como uma caixa de chocolates, você nunca sabe o que vai encontrar.
Por que, então, não deixar tudo como sempre foi? A culpa, certamente, é da própria tecnologia, essa vilã. As partidas passaram a ser transmitidas com dezenas câmeras em alta definição. Alguns lances, mais ou menos passíveis de interpretação (impedimentos, se a bola entrou, gol de mão, etc.), passaram a ser vistos pelos expectadores, com precisão, de muitos e variados ângulos. O árbitro, coitado, só pode ver de uma perspectiva e sem direito a replay.
A partida final do último Campeonato Paulista entre Palmeiras e Corinthians, foi um exemplo dessa confusão. Segundos após a marcação do pênalti, para o Palmeiras, muitos no estádio já tinham visto pela televisão e sabiam que a infração era, no mínimo, discutível (full disclosure: o articulista é palmeirense e estava no estádio). Com a informação, a pressão dos jogadores aumentou muito e, depois de 12 minutos de paralisação, o árbitro voltou atrás. Foi acusado de intervenção externa, o que sem tecnologia é proibido. Um autêntico pastelão.
A maneira incompreensível como o instrumento deixou de ser usado no jogo do Brasil contra a Suécia e as explicações posteriores mostram que a Fifa implementou a tecnologia com muita má vontade e que não vai deixar que ela funcione plenamente. Em lances capitais suspeitos, como foi gol da Suécia, o mecanismo teria que obrigatoriamente ser empregado para permitir que o assoprador de apito pudesse ver a jogada novamente de outros ângulos.
Justamente por estar aberto a interpretações é que o lance deveria ser revisto. É isso que acontece no futebol americano e na NBA. Lances que decidem jogos são sempre revistos. É o que defendeu Marco Van Basten, diretor técnico da Fifa. Para ele, e para todos nós brasileiros, houve um erro da arbitragem. Nada disso convenceu os dirigentes, que reafirmaram o acerto da marcação e se negaram a compartilhar o áudio das conversas entre os juízes. Total falta de transparência.
Talvez influenciado por toda a discussão, no jogo contra a Costa Rica, o juiz holandês decidiu rever o pênalti que ele marcou, de uma posição privilegiada, em Neymar. Para espanto de todos nós, brasileiros, resolveu voltar atrás na marcação. Confirmou a afirmação de Blatter que cada juiz pode ter a sua maneira diferente e pessoal de ver e interpretar o jogo.
Apesar de tudo e de todos, o mérito da tecnologia vai acabar se impondo por suas próprias qualidades. No jogo da França contra a Austrália, o juiz virtual marcou acertadamente um pênalti e confirmou que a bola realmente entrou usando a Goal-Line Technology, ou GLT (3 letrinhas novamente). O instrumento funciona, como no tênis e no vôlei, com precisão, mostrando quando a bola ultrapassou inteiramente a linha do gol. Também a vitória da Suécia sobre a Coréia do Sul foi confirmada devido a um justo pênalti cibernético.
O futebol pode continuar retrógrado e analógico, se quiser. Mas, em tempos de Inteligência Artificial (IA), em que o Google acaba de anunciar que está treinando máquinas para prever quando um paciente vai morrer, uma aplicação muito mais útil – e menos mórbida – seria criar um software para analisar e decidir automaticamente, de maneira uniforme e homogênea, lances que exijam interpretação, como foram as duas situações nos jogos do Brasil.
É claro que lances como impedimentos ou se a bola entrou, nem precisam dessa sofisticação e podem ser definidas imediatamente por aplicações com sensores e visão computacional, como se faz com a tecnologia da linha do gol.
Mas, a minha proposta é ainda mais radical. Criar um robô – físico ou virtual – que substitua integralmente o árbitro e os assistentes. Poderíamos até manter um ser humano correndo e interagindo – aplicando cartões por exemplo – com os jogadores, mas totalmente orientado por uma máquina inteligente.
Se já é possível prever que aplicações de IA farão diagnósticos melhor que médicos e substituirão muitas profissões que fazem julgamentos especializados, por que não seriam capazes de analisar e interpretar imagens múltiplas e substituir o juiz de futebol. Muitas mães agradeceriam.
Mesmo considerando esta hipótese altamente improvável (eu sei!), o futebol não deixaria de ser o mais imponderável, imprevisível e surpreendente de todos os esportes coletivos. É sua natureza ser um jogo com muita tática, muita evolução e resultados numericamente baixos, quando comparado com outros esportes. Permite que times tecnicamente inferiores surpreendam, saiam na frente e sustentem o resultado com eficiência defensiva.
O futebol é o único dos esportes com duração definida que, ainda, usa o tempo corrido e não para o relógio nas interrupções. Favorece quem não quer jogar e só quer se defender. Para compensar, os árbitros dão um tempo extra que é, em geral, sempre padronizado. Nesta copa os tradicionais 3 minutos adicionais, do segundo tempo, viraram 5, por recomendação da Fifa.
Apesar disso, das 24 partidas encerradas quando da finalização desta coluna, 10 terminaram com o placar de 1 x 0. Enquanto todos os outros esportes fizeram muitas mudanças para tornar os jogos mais competitivos e os resultados mais elásticos, o futebol ficou parado no tempo. Continua permitindo apenas 3 substituições, o que limita a capacidade de um time mudar completamente seu estilo de jogo e reagir quando está perdendo.
Se dependesse dos dirigentes, por motivos claros ou escusos, o futebol continuaria para sempre analógico e fugiria das tecnologias que insistem em desnudá-lo e mostrar suas entranhas. Continuaria como na frase de Maradona após marcar seu gol contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986: “Lo marqué un poco con la cabeza y un poco con la mano de Dios”.
Mas, o futebol é maior que todas essas picuinhas e vai sobreviver e continuar nos emocionando, com mais ou menos tecnologia, com melhores ou piores dirigentes, com placares magros ou generosos, porque como disse magistralmente Nelson Rodrigues: “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num corner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”
Como até os paralelepípedos da Praça Vermelha já sabem, o árbitro de vídeo estreou na Copa do Mundo da Rússia. Seguindo uma antiga tradição de atribuir siglas de 3 letrinhas às novas tecnologias, chama-se VAR, ou Video Assistant Referree. Até o inicio da segunda rodada, quando este artigo estava sendo escrito, rivalizava com Cristiano Ronaldo como a grande estrela da Copa.
Diga-se, a bem da verdade, que foi a contragosto. O futebol resistiu o quanto pode. Viu todos os outros esportes aderirem. Os preferidos dos americanos – basquete e futebol americano – já usam há muito tempo. O tênis também, para marcar as saídas de bola. Até o vôlei adotou, com sucesso, para as difíceis marcações de toques no bloqueio, entre outras jogadas.
Os argumentos principais para fugir da tecnologia variam muito. Seguem alguns deles: os jogos vão ser demasiadamente interrompidos; os lances mais agudos dependem de interpretação porque futebol é um esporte de contato (como se basquete e futebol americano não fossem). O mais divertido deles é o que sustenta que acabariam as acaloradas e divertidas discussões pós-jogo. Em resumo, pode-se dizer que, na opinião dos dirigentes, seria inevitável, e até positivo, conviver com marcações erradas e uma certa dose polêmica no esporte bretão.
Joseph Blatter, o afastado e suspenso ex-presidente da Fifa, chegou em Moscou reafirmando a sua suspeição da tecnologia: “O VAR não é uma solução ideal. Os árbitros de vídeo são sempre diferentes e cada um tem uma maneira diferente de ver o futebol”. Como cada partida tem um árbitro diferente, deve fazer parte do esporte que cada um tenha o seu jeito de ver o futebol e interpretar as jogadas. Em cada cabeça, uma sentença e estamos todo bem com isso. Não é à toa que é dito que o futebol é uma caixinha de surpresas. Poderíamos também parafrasear Tom Hanks em Forrest Gump: o futebol é como uma caixa de chocolates, você nunca sabe o que vai encontrar.
Por que, então, não deixar tudo como sempre foi? A culpa, certamente, é da própria tecnologia, essa vilã. As partidas passaram a ser transmitidas com dezenas câmeras em alta definição. Alguns lances, mais ou menos passíveis de interpretação (impedimentos, se a bola entrou, gol de mão, etc.), passaram a ser vistos pelos expectadores, com precisão, de muitos e variados ângulos. O árbitro, coitado, só pode ver de uma perspectiva e sem direito a replay.
A partida final do último Campeonato Paulista entre Palmeiras e Corinthians, foi um exemplo dessa confusão. Segundos após a marcação do pênalti, para o Palmeiras, muitos no estádio já tinham visto pela televisão e sabiam que a infração era, no mínimo, discutível (full disclosure: o articulista é palmeirense e estava no estádio). Com a informação, a pressão dos jogadores aumentou muito e, depois de 12 minutos de paralisação, o árbitro voltou atrás. Foi acusado de intervenção externa, o que sem tecnologia é proibido. Um autêntico pastelão.
A maneira incompreensível como o instrumento deixou de ser usado no jogo do Brasil contra a Suécia e as explicações posteriores mostram que a Fifa implementou a tecnologia com muita má vontade e que não vai deixar que ela funcione plenamente. Em lances capitais suspeitos, como foi gol da Suécia, o mecanismo teria que obrigatoriamente ser empregado para permitir que o assoprador de apito pudesse ver a jogada novamente de outros ângulos.
Justamente por estar aberto a interpretações é que o lance deveria ser revisto. É isso que acontece no futebol americano e na NBA. Lances que decidem jogos são sempre revistos. É o que defendeu Marco Van Basten, diretor técnico da Fifa. Para ele, e para todos nós brasileiros, houve um erro da arbitragem. Nada disso convenceu os dirigentes, que reafirmaram o acerto da marcação e se negaram a compartilhar o áudio das conversas entre os juízes. Total falta de transparência.
Talvez influenciado por toda a discussão, no jogo contra a Costa Rica, o juiz holandês decidiu rever o pênalti que ele marcou, de uma posição privilegiada, em Neymar. Para espanto de todos nós, brasileiros, resolveu voltar atrás na marcação. Confirmou a afirmação de Blatter que cada juiz pode ter a sua maneira diferente e pessoal de ver e interpretar o jogo.
Apesar de tudo e de todos, o mérito da tecnologia vai acabar se impondo por suas próprias qualidades. No jogo da França contra a Austrália, o juiz virtual marcou acertadamente um pênalti e confirmou que a bola realmente entrou usando a Goal-Line Technology, ou GLT (3 letrinhas novamente). O instrumento funciona, como no tênis e no vôlei, com precisão, mostrando quando a bola ultrapassou inteiramente a linha do gol. Também a vitória da Suécia sobre a Coréia do Sul foi confirmada devido a um justo pênalti cibernético.
O futebol pode continuar retrógrado e analógico, se quiser. Mas, em tempos de Inteligência Artificial (IA), em que o Google acaba de anunciar que está treinando máquinas para prever quando um paciente vai morrer, uma aplicação muito mais útil – e menos mórbida – seria criar um software para analisar e decidir automaticamente, de maneira uniforme e homogênea, lances que exijam interpretação, como foram as duas situações nos jogos do Brasil.
É claro que lances como impedimentos ou se a bola entrou, nem precisam dessa sofisticação e podem ser definidas imediatamente por aplicações com sensores e visão computacional, como se faz com a tecnologia da linha do gol.
Mas, a minha proposta é ainda mais radical. Criar um robô – físico ou virtual – que substitua integralmente o árbitro e os assistentes. Poderíamos até manter um ser humano correndo e interagindo – aplicando cartões por exemplo – com os jogadores, mas totalmente orientado por uma máquina inteligente.
Se já é possível prever que aplicações de IA farão diagnósticos melhor que médicos e substituirão muitas profissões que fazem julgamentos especializados, por que não seriam capazes de analisar e interpretar imagens múltiplas e substituir o juiz de futebol. Muitas mães agradeceriam.
Mesmo considerando esta hipótese altamente improvável (eu sei!), o futebol não deixaria de ser o mais imponderável, imprevisível e surpreendente de todos os esportes coletivos. É sua natureza ser um jogo com muita tática, muita evolução e resultados numericamente baixos, quando comparado com outros esportes. Permite que times tecnicamente inferiores surpreendam, saiam na frente e sustentem o resultado com eficiência defensiva.
O futebol é o único dos esportes com duração definida que, ainda, usa o tempo corrido e não para o relógio nas interrupções. Favorece quem não quer jogar e só quer se defender. Para compensar, os árbitros dão um tempo extra que é, em geral, sempre padronizado. Nesta copa os tradicionais 3 minutos adicionais, do segundo tempo, viraram 5, por recomendação da Fifa.
Apesar disso, das 24 partidas encerradas quando da finalização desta coluna, 10 terminaram com o placar de 1 x 0. Enquanto todos os outros esportes fizeram muitas mudanças para tornar os jogos mais competitivos e os resultados mais elásticos, o futebol ficou parado no tempo. Continua permitindo apenas 3 substituições, o que limita a capacidade de um time mudar completamente seu estilo de jogo e reagir quando está perdendo.
Se dependesse dos dirigentes, por motivos claros ou escusos, o futebol continuaria para sempre analógico e fugiria das tecnologias que insistem em desnudá-lo e mostrar suas entranhas. Continuaria como na frase de Maradona após marcar seu gol contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986: “Lo marqué un poco con la cabeza y un poco con la mano de Dios”.
Mas, o futebol é maior que todas essas picuinhas e vai sobreviver e continuar nos emocionando, com mais ou menos tecnologia, com melhores ou piores dirigentes, com placares magros ou generosos, porque como disse magistralmente Nelson Rodrigues: “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num corner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”