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A difícil arte da política monetária

O trabalho do Banco Central não será fácil, mas parece difícil que ele não tenha que fazer o trabalho penoso de aumentar ainda mais a Selic

 (Igor Golovniov/Getty Images)
(Igor Golovniov/Getty Images)
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Sérgio Vale

Publicado em 29 de setembro de 2021 às, 16h13.

Por Sergio Vale

O Banco Central decidiu ser comedido e subiu a Selic em apenas 1 ponto percentual. Parece exagerado dizer isso, mas o fato é que a inflação chegará em setembro provavelmente em 10% e a dúvida colocada pelo banco é se parte dessa alta não será devolvida nos próximos meses dado que os choques de commodities especialmente estão arrefecendo. A hipótese é de ser suave na alta para acompanhar o que pode ter de desaceleração natural do IPCA, mas também mostra certa preocupação com a atividade.

Não está claro se essa opção é a melhor, pois supor que a melhora se dará pela diminuição de impacto dos choques não me parece ser suficiente como sinalização de atuação da política monetária. Isso decorre especialmente de alguns fatores que consideraremos aqui.

Primeiro, diferente de outros momentos, o BC dessa vez está sozinho no combate à inflação. Em crises no passado em que o IPCA bateu nos 10% o governo tinha uma atuação em conjunto para evitar a escalada dos preços. Foi assim em 2003 e 2016. Houve nesses momentos especialmente uma atenção com a política fiscal. Em 2003, Lula entrou e sinalizou alta do superávit primário e uma reforma da previdência, mesmo que moderada. Em 2016, Temer entrou e implementou a regra do teto com poucos meses de governo. Dessa vez, o governo se vê às voltas com pressões intensas na área fiscal. Há o imbróglio dos precatórios, em que qualquer solução será parcial. A forte inflação no final do ano vai impactar os salários dos servidores e o salário mínimo, com impacto na previdência. As emendas parlamentares serão motivo de stress constante entre Executivo e Legislativo, especialmente em ano eleitoral em que o governo se encontra tão enfraquecido. E, por fim, o auxílio Brasil, com intensões eleitoreiras, terá que caber de alguma forma na regra do teto.

O que se tem, assim, é um ataque ao regime fiscal estabelecido, pois o que se busca no momento não é o que fazer para cotar gastos para acomodar as outras pressões, mas como burlar a regra do teto para que caibam demandas crescentes. Não bastasse a pressão fiscal, as reformas que estão postas estão na categoria de melhor não serem feitas. Tanto a tributária quanto a administrativa sinalizam piora e não melhora do quadro fiscal, com queda de arrecadação em momento de crise fiscal em que não se cogita pensar nisso e piora estrutural no gasto ao não se implementar adequadamente regime meritocrático no serviço público.

Em segundo lugar, a pressão em commodities parece de fato arrefecer nas agrícolas e nas metálicas. A safra deverá ser boa, mesmo com um La Niña, pois este não deverá afetar o regime de chuvas para o setor de forma importante. No caso do minério de ferro, a quebra da Evergrande sinaliza diminuição de ritmo do setor de construção nos próximos meses. Além disso, a China sinaliza querer mudar o padrão de crescimento para ter menos dependência de semicondutores importados. O reforço à indústria de tecnologia em detrimento da indústria financeira, de serviços digitais e possivelmente de construção leva a uma China que seguirá intervencionista na regulação. A consequência básica será mais turbulência financeira, o que leva a mais pressão cambial no Brasil, dada a importância da economia chinesa para as exportações brasileiras. Quando juntamos o impacto a mudança da política monetária americana com a incerteza chinesa, a taxa de câmbio brasileira tenderá a ficar ainda mais pressionada. Assim, diminuir preços de commodities em um momento em que a taxa de câmbio segue no caminho contrário pode não trazer a tranquilidade que o BC espera.

Terceiro, a saída demorada da pandemia na Ásia e nos países desenvolvidos com o atraso na vacinação em segunda dose tem mantido a pressão na distribuição de insumo e agora também na geração de energia. Com a queda de demanda na pandemia e diminuição de investimentos no setor, levará tempo para que o segmento se readéque. Além disso, a “inflação verde” da transição decorrida da descarbonização da matriz energética tende a manter elevada a pressão de preços nas energias não-renováveis. A troca deste pelas renováveis não ocorre da noite para o dia e essa transição tende a manter pressão de custos. Não à toa, aumentam-se os riscos de estagflação no cenário mundial. Essa pressão nos custos de energia, com impacto também em petróleo, reverbera na cadeia de produção no Brasil.

Em quarto lugar, a crise hídrica está longe de terminar. O La Ninã deverá manter as dificuldades de recomposição dos reservatórios de água e podemos ver esse mesmo momento do ano em 2022 com uma crise talvez mais profunda. Essa é uma das razões para a MB estar mais pessimista com o PIB ano que vem (esperamos alta de apenas 0,4%). A manutenção da crise hídrica manterá a pressão nas tarifas de energia e devemos ver uma reversão ano que vem, com pressão maior na energia e combustíveis e menor na alimentação. Mesmo assim, no balanço ainda é pressão relevante para os preços finais.

Por fim, o cenário político, que o Banco Central, não pode explicitar, é garantia de riscos crescentes. Depois do 7 de setembro, o governo Bolsonaro diminuiu ainda mais e o Centrão ganhou mais espaço como fiel da balança. A tentativa de Bolsonaro de se cacifar como oposição a Lula dificulta a vida de uma terceira via, mas ao manter a polarização viva replica as incertezas políticas para além de 2022. Esse risco político é um elemento de contaminação do cenário que ajuda na composição de certa estagflação. A pandemia não afetou a economia apenas em 2020, mas trouxe impactos que perdurarão até ano que vem pelos menos. Nossa estimativa é que nesse ciclo de três anos o PIB per capita caia 1,4% e a inflação acumule cerca de 18%. Quase certo podermos dizer que o Brasil sairá dessa com uma estagflação contratada.

O trabalho do Banco Central não será fácil, mas parece difícil que ele não tenha que fazer o trabalho penoso de aumentar ainda mais a Selic. Por ora, esperamos 9% de juros no final do ciclo em fevereiro, mas os elementos aqui expostos colocam incerteza adicional para o cenário e não é totalmente incabível pensarmos em taxas de juros de dois dígitos.

Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados