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Porto Alegre (2024) e a assombrosa semelhança com a fictícia Nova York (2140)

Enchente no Rio Grande do Sul lembra distopia imaginada para acontecer dentro de 100 anos nos Estados Unidos

Porto Alegre: estátua de Giuseppe e Anita Garibaldi, na Cidade Baixa, também alagou (Anselmo Cunha / AFP/AFP)
Porto Alegre: estátua de Giuseppe e Anita Garibaldi, na Cidade Baixa, também alagou (Anselmo Cunha / AFP/AFP)

Em 2140, Nova York, alagada, é dominada por pequenos barcos. São o principal meio de transporte. Não há mais o Dakota, prédio em frente ao Central Park onde John Lennon morreu e o bebê de Rosemary assustou no berço. Quem é rico, mas não riquíssimo, mora em apartamentos minúsculos, quarto-sala-janela, abastecidos por energia solar e com refeições inclusas no condomínio. Comemora-se quando um morador viaja, pois gasta-se menos energia. Todos sabem de todos não só pela graça da fofoca, mas pela importância que cada grão de informação tem. (Dois moradores do edifício Met Life saíram pela antiga escada de incêndio há dias e ainda não voltaram. Aonde foram?) Subestimar conspirações, colocando-as no bolo de mentiras propositais, pode ser ingenuidade.

A fantasia é de Kim Stanley Robinson, autor, entre outros, de “New York, 2140” (Orbit, 2017) e “The Ministry for the Future” (Orbit, 2020). Os livros são distopias relativamente otimistas. Seus personagens principais têm, quase todos, boa-fé, e também o que acadêmicos chamam de “alto capital social”. Querem se ajudar. Os efeitos das mudanças climáticas são tantos que a cooperação resignada é a melhor opção, esgotadas todas as outras.

Os efeitos de desastres socioambientais por aqui, podem, um dia, ser esses, mas ainda é cedo. A diferença é que, aqui, ainda precisamos do Estado como garantidor da cooperação. Nas distopias de Robinson, governos nacionais perderam toda a capacidade de implementação de políticas públicas. Em “The Ministry for the Future”, a solução é pela governança global e, na Nova York distópica, a cooperação interpessoal substitui políticos.

Na Porto Alegre de 2024 , o planeta não é governado (alguém acha a ONU relevante?) e a cooperação interpessoal tem limites. Não nos deixemos enganar pelas doações via pix e resgates de bebês, meninos, meninas, homens e mulheres por pessoas comuns que arriscam suas vidas. Isso acontece, sim, e devemos admirar e imitar. Mas as principais decisões ainda são de governos. Dependemos de políticos cujos incentivos são de despreparo face à tragédia e, muito naturalmente, agem voltados para a reeleição. Prevenir desastres socioambientais entrou para a mesma cota de investimentos historicamente carentes no Brasil, como em saneamento. Todo mundo sabe que é importante, mas não dá voto.

Face à tragédia, o que políticos (estrategicamente) brilhantes fazem? Escolhem uma ação de interesse público que é acima de críticas e, ao mesmo tempo, imune à responsabilização. Ir para a linha de frente, ajudando famílias e crianças, por exemplo, pode ter um efeito perverso nas urnas. Cidadãos podem muito naturalmente culpar políticos pela enchente, e a visibilidade na tragédia pode tirar votos. Ação linda, responsabilização política justa, saldo negativo para o político. O cavalo Caramelo e os pets são escolha mais certeira. Mas focar em bichos a ação visível mostra a preferência por aproveitar photo-ops em vez de, digamos, modificar o que realimente importa para o futuro. A proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias que está tramitando no Congresso Nacional, por exemplo, poderia garantir mais dinheiro à gestão de desastres, por exemplo. Lula poderia, também, criar o cargo de Autoridade Nacional de Segurança Climática, cumprindo uma promessa da ministra Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima) na primeira semana de governo, em janeiro de 2023.

Na Nova York fictícia de 2140, não há pets. Os gatos domesticados voltaram à natureza, sem donos. O Muro de Bjarke imaginado por Robinson, antes símbolo da resistência da cidade contra a elevação do nível do mar, sucumbiu por volta de 2098, inundando o centro de Manhattan. Em Porto Alegre, apesar da resistência do muro Mauá, falhas em suas comportas permitiram a invasão das águas do Guaíba em 2024.

Sérgio Praça é professor e pesquisador da Escola de Ciências Sociais (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas