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Por que o peruano PPK renunciou e Temer cogita a reeleição?

Quem considera o sistema brasileiro personalista, então, deve se espantar com a política da terra do pisco sour

Presidente Michel Temer durante cerimônia no Palácio do Planalto (Adriano Machado/Reuters)
Presidente Michel Temer durante cerimônia no Palácio do Planalto (Adriano Machado/Reuters)
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Sérgio Praça

Publicado em 24 de março de 2018 às, 09h32.

Com tentáculos em toda a América Latina e partes da África, a construtora Odebrecht fez sua primeira vítima política presidencial nesta semana. O presidente peruano eleito em 2016, Pedro Pablo Kuczynski (conhecido como PPK), renunciou ao cargo três meses após se livrar de um processo de impeachment. A renúncia ocorreu porque pessoas ligadas a Kenji Fujimori, deputado federal filho do ex-presidente Alberto Fujimori, foram gravadas combinando propina em troca da abstenção no voto do impeachment. As semelhanças com o Brasil de Michel Temer (MDB) saltam aos olhos. Em 2017, nosso presidente livrou-se de duas denúncias contando com uma base parlamentar azeitada por verbas federais (poucas) e cargos de confiança (muitos). Nem o áudio da reunião entre Temer e Joesley Batista, empresário corrupto da JBS, foi suficiente para forçar sua saída. “Repito: não renunciarei!”, afirmou o presidente no dia após a primeira notícia sobre a gravação. Pouco depois, um vídeo do deputado federal Rodrigo Rocha Loures (MDB), indicado a Joesley por Temer como intermediário para a recepção de dinheiro sujo, chocou o país. Mas nada aconteceu por enquanto. O foro privilegiado de fato privilegia.  

O Brasil de hoje não é parâmetro. No Peru, a “normalidade” demorou um pouco para se estabelecer, mas a renúncia do presidente após a divulgação dos escândalos faz sentido em uma democracia, mesmo que suas instituições sejam fracas. Uma evidência de instituições políticas débeis é a forte presença de três familiares como atores políticos relevantes: o já citado Kenji Fujimori, sua irmã Keiko e o pai Alberto Fujimori. Ditador de fato do país entre 1992 e 2000, Fujimori-san foi condenado a 25 anos de prisão por crimes contra direitos humanos e corrupção. Keiko tentou se estabelecer como sua herdeira política legitima. Concorreu à presidência em 2011 e 2016. Dois anos atrás, perdeu para Pedro Pablo Kuczynski por apenas 41 mil votos (em um total de 18 milhões). Uma de suas promessas de campanha era, como presidente, perdoar o pai e tirá-lo da prisão. Alberto tem 78 anos. Sem perdão, morreria na cadeia. Aí a história começa a complicar.

Eleito presidente com essa minúscula margem, PPK e seu partido (“Peruanos pela Mudança”) conseguiram apenas 18 das 130 vagas no Legislativo federal. Seu programa de governo inicial incluía reformas sociais (especialmente em saúde e previdência), combate ao trabalho informal, luta contra a corrupção e melhorias na infraestrutura. Um ano e meio após a posse, PPK havia fracassado em tudo. Embora não discordem com relação à condução básica da economia, o partido do (agora ex) presidente não conseguiu convencer a oposição, encabeçada pelos 73 deputados do Força Popular, o partido de Keiko Fujimori.  Cambaleando, PPK foi à lona com as denúncias da Odebrecht e só se salvou do impeachment por dois motivos. O primeiro já foi mencionado: comprou votos (na verdade, abstenções). O segundo: perdoou Alberto Fujimori, que agora está solto. Com isso, arrefeceu os ânimos de alguns deputados da Força Popular (criado no início dos anos noventa, esse partido se chamava “Fujimorismo”). Após o perdão a Fujimori, três ministros renunciaram e três deputados deixaram seu partido. Diversos detentores de cargos de confiança também saíram do governo e dezenas de milhares de cidadãos protestaram em dezembro. PPK tinha, naquele momento, aprovação de 25%.

O caminho de Michel Temer para se livrar das acusações no Legislativo foi mais simples, mesmo não passando dos 10% de aprovação. Bastou nomear dezenas de cargos de confiança e distribuir os ministérios entre partidos da coalizão de maneira proporcional à bancada de cada legenda. Receita simples que Dilma Rousseff (PT) só não seguiu porque não quis. Seu colega peruano não tinha essa opção. Formar uma coalizão governamental com os “fujimoristas” seria impensável. Além disso, os cargos de confiança no Peru são menos sujeitos às nomeações partidárias. Com toda a confusão do sistema político nas últimas três décadas, burocratas concursados ganharam bastante poder. É como se fossem os adultos do país, deixando a política partidária para crianças que não sabem se organizar. Assim, o modus operandi emedebista não tem muito espaço no Peru. Lá as nomeações se dão através de redes de confiança pessoal, e não por vontade partidária. Em vez de pleitear cargos no governo a conta-gotas, os “fujimoristas” fazem oposição a nomeações consideradas excessivamente técnicas – o que diminui a qualidade do setor público a médio prazo. (As observações sobre cargos de confiança se baseiam no estudo “Patronage Without Parties?” apresentado em seminário na Escola Nacional de Administração Pública no início de março pelas cientistas políticas Paula Muñoz e Viviana Baraybar.)

Quem considera o sistema brasileiro personalista, então, deve se espantar com a política da terra do pisco sour. Os quatro maiores partidos da década de oitenta somavam, em 1985, 97% dos votos. Dez anos depois, apenas 6%! E os principais contendores à presidência mudam de partido – e os partidos mudam de programa – com frequência altíssima. Isso faz o país merecer o último lugar no ranking de volatilidade ideológica de partidos políticos conforme estabelecido pelo cientista político Scott Mainwaring em seu novo livro, intitulado “Party Systems in Latin America” (Cambridge University Press, 2018). O Brasil certamente não é exemplo de sistema partidário programático. Mas é difícil afirmar que PT, PSDB e (P)MDB mudaram de ideias desde o início dos anos 2000. Já no fim do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a esquerda raivosa dentro do PT começou a arrefecer. Os candidatos presidenciais do PSDB continuam tão privatistas em 2018 quanto eram em 1994. E o MDB…. bem, continua aceitando Arno Augustin (PT) e Henrique Meirelles (PSD) no comando da economia. Qualquer coisa está boa – eleições são o que importam!

No Peru, o sistema partidário não-programático colapsou no fim dos anos oitenta e permitiu a ascensão de Alberto Fujimori. Após sua saída em 2000, os partidos poderiam ter sido reconstruídos. Por que isso não ocorreu? De acordo com Steven Levitsky, os políticos pós-Fujimori desenvolveram estratégias alternativas que permitiram o sucesso eleitoral sem partidos, o que diminuiu muito os incentivos para fundar e fortalecer essas organizações. Ainda segundo Levitsky, os políticos amadores que ocupam um número desproporcional de cargos são inexperientes e pouco acostumados ao exercício democrático da política. Pior do que isso: seus horizontes temporais de ação são curtos, o que limita a capacidade de ação coletiva e fortalece incentivos para corrupção. (Levitsky publicou o capítulo “Peru: The Institutionalization of Politics without Parties” no já citado livro de Scott Mainwaring.)

Odebrecht e muitas outras empresas sabem ofertar propina para quem demanda. A renúncia do presidente peruano mostra que mesmo um sistema personalista expele líderes ruins. No Brasil, os partidos são fortes o suficiente para proteger vários corruptos (não todos), mas não têm capacidade para renovar suas lideranças. E por isso Michel Temer, tão corrupto quanto PPK, mal cogitou renunciar e agora ensaia candidatura à reeleição.