Pancadões e a tragédia em Paraisópolis
A Polícia Militar de São Paulo diz ter agido para se proteger da multidão na noite em que nove pessoas morreram
Da Redação
Publicado em 3 de dezembro de 2019 às 12h07.
Última atualização em 3 de dezembro de 2019 às 18h03.
Nem todo morador de Paraisópolis gosta dos “pancadões”, as festas que ocorrem a partir de quinta-feira na comunidade e chegam a reunir até 5 mil pessoas. Reuniões dos Conselhos Comunitários de Segurança (Consegs) da zona sul de São Paulo registram muitas reclamações sobre o barulho excessivo. A Polícia Militar costuma ignorá-las.
Aqui está, por exemplo, um diálogo em reunião do Conseg Campo Limpo entre um policial militar e moradores da comunidade, registrado pelo pesquisador Rodolfo de Almeida Valente. Após a reclamação de uma mulher, um capitão da Polícia Militar diz:
– A rua em que ocorre o “pancadão” é um lugar problemático, vocês sabem como a polícia é recebida lá. Trabalho há dez anos lá. Se aborda alguém, desce a comunidade inteira! […] A polícia não vai pro “pancadão”, minha senhora, nós vamos salvar vidas! Não adianta ligar para o 190 que nós não iremos atender ocorrência de “pancadão”, porque tem alguns degraus da “ordem pública” e atendemos primeiro ocorrências em que alguém está morrendo. Tá morrendo alguém?
Outra moradora retruca:
– Está! Nós estamos morrendo aos poucos.
Volta o capitão:
– Está na Constituição: segurança pública é dever de todos. Vocês estão vigiando seus filhos, seus vizinhos?
Um morador:
– Meu filho estuda bastante.
O capitão:
– E o da vizinha? E quando as drogas estão guardadas no seu vizinho, vocês notificam?
(Uma mulher afirma que quem guarda drogas tem que ser preso.)
Outro participante da reunião:
– Pancadão não é distúrbio social? Não é obrigação da polícia [atuar]?
E a última fala do capitao da PM:
– Distúrbio social é manifestação, não pancadão.
A Polícia Militar precisa se decidir. Se o pancadão é um “distúrbio social” que cabe ao Estado reprimir, que isto seja claro e os mecanismos de controle implementados após divulgação pública.
Mas, caso a polícia não considere o pancadão um distúrbio, nunca poderia ter entrado na festa usando armas químicas e causando pânico – nem se a população agredisse antes, como os policiais afirmam. Segundo um tenente-coronel da Polícia Militar, “criminosos usaram pessoas que frequentavam o local como escudos humanos. Pessoas foram em direção aos PMs arremessando pedras e garrafas. A atuação dos PMs foi de proteção aos policiais”.
Alguém errou feio e, se a política brasileira estivesse minimamente normal, o secretário de Segurança Pública já teria sido demitido. Seu cargo também estaria em risco se os nove mortos fossem de Perdizes.
Mas alguém consegue imaginar uma Operação Shape Of You após o show de Ed Sheeran no Allianz Parque?
[A dissertação de mestrado em Sociologia defendida por Rodolfo Valente na Unicamp em 2018, intitulada “ ‘Guerra de Classe’ e ‘Segurança Pública’: sobre as conexões estruturais entre a organização política da violência e a ordenação das relações produtivas no Brasil contemporâneo”, está disponível aqui: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/332266/1/Valente_RodolfoDeAlmeida_M.pdf%5D
(Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.)
Nem todo morador de Paraisópolis gosta dos “pancadões”, as festas que ocorrem a partir de quinta-feira na comunidade e chegam a reunir até 5 mil pessoas. Reuniões dos Conselhos Comunitários de Segurança (Consegs) da zona sul de São Paulo registram muitas reclamações sobre o barulho excessivo. A Polícia Militar costuma ignorá-las.
Aqui está, por exemplo, um diálogo em reunião do Conseg Campo Limpo entre um policial militar e moradores da comunidade, registrado pelo pesquisador Rodolfo de Almeida Valente. Após a reclamação de uma mulher, um capitão da Polícia Militar diz:
– A rua em que ocorre o “pancadão” é um lugar problemático, vocês sabem como a polícia é recebida lá. Trabalho há dez anos lá. Se aborda alguém, desce a comunidade inteira! […] A polícia não vai pro “pancadão”, minha senhora, nós vamos salvar vidas! Não adianta ligar para o 190 que nós não iremos atender ocorrência de “pancadão”, porque tem alguns degraus da “ordem pública” e atendemos primeiro ocorrências em que alguém está morrendo. Tá morrendo alguém?
Outra moradora retruca:
– Está! Nós estamos morrendo aos poucos.
Volta o capitão:
– Está na Constituição: segurança pública é dever de todos. Vocês estão vigiando seus filhos, seus vizinhos?
Um morador:
– Meu filho estuda bastante.
O capitão:
– E o da vizinha? E quando as drogas estão guardadas no seu vizinho, vocês notificam?
(Uma mulher afirma que quem guarda drogas tem que ser preso.)
Outro participante da reunião:
– Pancadão não é distúrbio social? Não é obrigação da polícia [atuar]?
E a última fala do capitao da PM:
– Distúrbio social é manifestação, não pancadão.
A Polícia Militar precisa se decidir. Se o pancadão é um “distúrbio social” que cabe ao Estado reprimir, que isto seja claro e os mecanismos de controle implementados após divulgação pública.
Mas, caso a polícia não considere o pancadão um distúrbio, nunca poderia ter entrado na festa usando armas químicas e causando pânico – nem se a população agredisse antes, como os policiais afirmam. Segundo um tenente-coronel da Polícia Militar, “criminosos usaram pessoas que frequentavam o local como escudos humanos. Pessoas foram em direção aos PMs arremessando pedras e garrafas. A atuação dos PMs foi de proteção aos policiais”.
Alguém errou feio e, se a política brasileira estivesse minimamente normal, o secretário de Segurança Pública já teria sido demitido. Seu cargo também estaria em risco se os nove mortos fossem de Perdizes.
Mas alguém consegue imaginar uma Operação Shape Of You após o show de Ed Sheeran no Allianz Parque?
[A dissertação de mestrado em Sociologia defendida por Rodolfo Valente na Unicamp em 2018, intitulada “ ‘Guerra de Classe’ e ‘Segurança Pública’: sobre as conexões estruturais entre a organização política da violência e a ordenação das relações produtivas no Brasil contemporâneo”, está disponível aqui: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/332266/1/Valente_RodolfoDeAlmeida_M.pdf%5D
(Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.)