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Lula e os limites do “viés majoritário”

Se cabe ao povo julgar, por que não liberar as candidaturas de Sérgio Cabral (PMDB), Eduardo Cunha (PMDB) e Antonio Palocci (PT)?

LULA: No fim das contas, um Lula candidato mesmo condenado em segunda instância, desobedecendo à Lei da Ficha Limpa, seria injusto com outros políticos criminosos / Ueslei Marcelino/Reuters (Ueslei Marcelino/Reuters)
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Da Redação

Publicado em 23 de janeiro de 2018 às 19h57.

Nesta quarta-feira o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será julgado por um órgão colegiado de juízes no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. É o julgamento em segunda instância. Na primeira instância, o juiz Sérgio Moro condenou Lula. A Lei da Ficha Limpa é clara: pessoas condenadas por um órgão judicial colegiado (ou seja, na segunda instância) ou com sentença transitada em julgado (sem mais possibilidade de recursos) não podem se candidatar durante oito anos. Algumas pessoas, inclusive políticos que disputarão as eleições contra o ex-presidente, consideram um exagero o líder das pesquisas não poder disputar o pleito.

Dizem que seria melhor derrotá-lo nas urnas. Lula tem a mesma opinião com o sinal trocado: seria melhor que o povo desse seu veredito em 7 de outubro, tornando-o novamente presidente do país. As duas visões chegam ao mesmo fim: um fortíssimo “viés majoritário” para o sistema político. Em outras palavras, apenas decisões tomadas pela maioria dos cidadãos teriam verdadeira legitimidade democrática. Quem são Sergio Moro e três juízes do TRF-4 diante de milhões de brasileiros?! (O autor do termo é o cientista político Marcus André Melo no artigo “O viés majoritário na política comparada: responsabilização, desenho institucional e qualidade democrática”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais em 2007.) Há diversos problemas com esse argumento. Vou explorar dois deles: o primeiro é relativo à isonomia na competição eleitoral e o segundo trata da qualidade da democracia.

No fim das contas, um Lula candidato mesmo condenado em segunda instância, desobedecendo à Lei da Ficha Limpa, seria injusto com outros políticos criminosos. Se cabe ao povo julgar, por que não liberar as candidaturas de Sérgio Cabral (PMDB), Eduardo Cunha (PMDB) e Antonio Palocci (PT)? A exceção que valeria a um teria que valer para todos. O principio da isonomia diante da lei é tão essencial para a democracia que defender exceções é espantoso. Dois dos cientistas políticos mais prestigiados do Brasil, Fernando Limongi (USP) e Argelina Figueiredo (UERJ), criticam analistas que dariam “ênfase excessiva à exploração do Estado em proveito próprio [pelos políticos]”, pois esse argumento desconsideraria a arena eleitoral. Em suas palavras, “esses políticos detêm mandatos eletivos e são submetidos ao crivo do eleitorado de forma regular. Como esses parlamentares se elegem e se reelegem? (…) O fato é que estamos falando de representantes que, queiram ou não seus detratores, obtiveram mandatos eleitorais”. É claro que Limongi e Figueiredo não defendem a impunidade de criminosos. Mas o raciocínio está perigosamente próximo de um “cidadão-decide-tudo-pois-o-voto-é-o-que-mais-vale”.

A resposta à pergunta dos autores – “como esses parlamentares se elegem e se reelegem?” – é cristalina. Pessoas como Lula, Cabral, Cunha, Temer, Aécio, Jucá, Renan, Palocci etc. tinham vantagens em relação a seus oponentes na competição eleitoral. Está comprovado que quanto mais dinheiro um deputado implicado em corrupção gasta, maiores são suas chances de reeleição. (É o que diz o artigo “The political cost of Corruption: scandals, campaign finance, and reelection in the Brazilian Chamber of Deputies”, publicado por Marcus Melo, Ivan Jucá e Lucio Rennó no Journal of Politics in Latin America em 2016.) Permitir que criminosos disputem eleições nao é razoavel nem levando o argumento da democracia majoritária às ultimas consequências, pois o “playing field” não dará aos competidores condições iguais na disputa.

Vinte anos atrás, o cientista político argentino Guillermo O’Donnell publicou um artigo seminal no Journal of Democracy intitulado “Horizontal Accountability in New Democracies”. Preocupado com a qualidade da democracia na América Latina, O’Donnell argumentou que havia, ainda, um obstáculo a superar para que esta fosse plena. Faltava a “accountability horizontal” – ou seja, o controle mútuo entre poderes. É um componente não-majoritário da democracia. É pleno quando o Judiciário limita corrupção do Legislativo, por exemplo, e/ou quando o Executivo impede parlamentares de aprovarem leis inconstitucionais, vetando-as.

A “accountability horizontal” requer autonomia de juízes, concursos bem-feitos e com salários altos para membros do Ministério Público, assessoria parlamentar de alta qualificação para informar bem os parlamentares…. Os custos são altos. Mas sem ela a democracia é manca, limitada a expressar um “sim-ou-não” simplório que pode, no limite, manter corruptos que fazem boas politicas publicas no poder. E está aí o dilema. Se corruptos fazem boas politicas públicas, devemos esquecer seus atos e ficar no rouba-mas-faz? Quem defende isso pode ser democrático, mas não é republicano. E os artigos federalistas norte-americanos lembram que males republicanos (como corrupção) requerem remédios republicanos (como juízes e procuradores extremamente independentes). Se o remédio tem gosto de novalgina com chá de boldo, é o preço a pagar.

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Dizem que seria melhor derrotá-lo nas urnas. Lula tem a mesma opinião com o sinal trocado: seria melhor que o povo desse seu veredito em 7 de outubro, tornando-o novamente presidente do país. As duas visões chegam ao mesmo fim: um fortíssimo “viés majoritário” para o sistema político. Em outras palavras, apenas decisões tomadas pela maioria dos cidadãos teriam verdadeira legitimidade democrática. Quem são Sergio Moro e três juízes do TRF-4 diante de milhões de brasileiros?! (O autor do termo é o cientista político Marcus André Melo no artigo “O viés majoritário na política comparada: responsabilização, desenho institucional e qualidade democrática”, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais em 2007.) Há diversos problemas com esse argumento. Vou explorar dois deles: o primeiro é relativo à isonomia na competição eleitoral e o segundo trata da qualidade da democracia.

No fim das contas, um Lula candidato mesmo condenado em segunda instância, desobedecendo à Lei da Ficha Limpa, seria injusto com outros políticos criminosos. Se cabe ao povo julgar, por que não liberar as candidaturas de Sérgio Cabral (PMDB), Eduardo Cunha (PMDB) e Antonio Palocci (PT)? A exceção que valeria a um teria que valer para todos. O principio da isonomia diante da lei é tão essencial para a democracia que defender exceções é espantoso. Dois dos cientistas políticos mais prestigiados do Brasil, Fernando Limongi (USP) e Argelina Figueiredo (UERJ), criticam analistas que dariam “ênfase excessiva à exploração do Estado em proveito próprio [pelos políticos]”, pois esse argumento desconsideraria a arena eleitoral. Em suas palavras, “esses políticos detêm mandatos eletivos e são submetidos ao crivo do eleitorado de forma regular. Como esses parlamentares se elegem e se reelegem? (…) O fato é que estamos falando de representantes que, queiram ou não seus detratores, obtiveram mandatos eleitorais”. É claro que Limongi e Figueiredo não defendem a impunidade de criminosos. Mas o raciocínio está perigosamente próximo de um “cidadão-decide-tudo-pois-o-voto-é-o-que-mais-vale”.

A resposta à pergunta dos autores – “como esses parlamentares se elegem e se reelegem?” – é cristalina. Pessoas como Lula, Cabral, Cunha, Temer, Aécio, Jucá, Renan, Palocci etc. tinham vantagens em relação a seus oponentes na competição eleitoral. Está comprovado que quanto mais dinheiro um deputado implicado em corrupção gasta, maiores são suas chances de reeleição. (É o que diz o artigo “The political cost of Corruption: scandals, campaign finance, and reelection in the Brazilian Chamber of Deputies”, publicado por Marcus Melo, Ivan Jucá e Lucio Rennó no Journal of Politics in Latin America em 2016.) Permitir que criminosos disputem eleições nao é razoavel nem levando o argumento da democracia majoritária às ultimas consequências, pois o “playing field” não dará aos competidores condições iguais na disputa.

Vinte anos atrás, o cientista político argentino Guillermo O’Donnell publicou um artigo seminal no Journal of Democracy intitulado “Horizontal Accountability in New Democracies”. Preocupado com a qualidade da democracia na América Latina, O’Donnell argumentou que havia, ainda, um obstáculo a superar para que esta fosse plena. Faltava a “accountability horizontal” – ou seja, o controle mútuo entre poderes. É um componente não-majoritário da democracia. É pleno quando o Judiciário limita corrupção do Legislativo, por exemplo, e/ou quando o Executivo impede parlamentares de aprovarem leis inconstitucionais, vetando-as.

A “accountability horizontal” requer autonomia de juízes, concursos bem-feitos e com salários altos para membros do Ministério Público, assessoria parlamentar de alta qualificação para informar bem os parlamentares…. Os custos são altos. Mas sem ela a democracia é manca, limitada a expressar um “sim-ou-não” simplório que pode, no limite, manter corruptos que fazem boas politicas publicas no poder. E está aí o dilema. Se corruptos fazem boas politicas públicas, devemos esquecer seus atos e ficar no rouba-mas-faz? Quem defende isso pode ser democrático, mas não é republicano. E os artigos federalistas norte-americanos lembram que males republicanos (como corrupção) requerem remédios republicanos (como juízes e procuradores extremamente independentes). Se o remédio tem gosto de novalgina com chá de boldo, é o preço a pagar.

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