Exame Logo

Estados Unidos: má participação, louca oposição

Cinco décadas após a publicação, um livro de Robert Dahl mostra que as graves falhas institucionais vão muito além de Trump e do Colégio Eleitoral

Como aumentar a participação dos cidadãos sem gerar respostas autoritárias? (Joe Ybarra / EyeEm/Getty Images)
KS

Karina Souza

Publicado em 6 de novembro de 2020 às 20h44.

Última atualização em 6 de novembro de 2020 às 21h48.

O povo brasileiro está frustrado com a eleição presidencial norte-americana. Cadê o resultado? Compensamos a angústia repassando memes indecorosos sobre desejos obscuros de Donald Trump (Partido Republicano).

Nem Joe Biden (Partido Democrata) está feliz por enquanto. Sua provável vitória pode demorar semanas para ser oficialmente declarada. Algo já está claro: um autogolpe de Trump tem pouquíssima chance de dar certo. O presidente continuará esperneando e mentindo, mas, a confirmar a apuração atual, Biden assumirá a presidência no fim de janeiro.

Os Estados Unidos terão a oportunidade de seguir com a vida e fingir que a eleição funcionou. Estarão errados.

Em 1971, o cientista político Robert Dahl publicou um clássico: “Poliarquia: Participação e Oposição”. Analisou como país relativamente autoritários poderiam realizar a transição para uma democracia plena, apelidada de “poliarquia”. Ou seja, como um país poderia aumentar o grau de contestação/oposição política e a participação livre dos cidadãos sem que isso resultasse em uma resposta autoritária?

Àquela altura, imaginar os Estados Unidos como qualquer coisa que não uma democracia seria herético. Em poucos anos, o país passaria por um teste difícil. O caso Watergate (1972-1975) revelou um presidente, Richard Nixon, extremamente corrupto e que não hesitava em mobilizar o aparato estatal para massacrar oponentes. Renunciou antes de ser destituído por impeachment.

Sob Nixon, por acaso, o principal problema do sistema político era o “governo de minoria” (minority rule) das comissões, muitas delas dominadas por parlamentares mais conservadores do que a maioria do plenário. Para ser menos abstrato, basta imaginar um processo legislativo controlado, nas comissões, pelo PSL, que escolheria quais projetos seriam votados no plenário. A pauta legislativa seria diferente da de Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara dos Deputados. Ao longo daquela década, os Estados Unidos tiraram poder dos “donos” das comissões parlamentares e centralizaram boa parte do trabalho legislativo na presidência da Câmara.

Isso tornou o processo político mais claro. Quando a Câmara fosse controlada por um partido diferente do partido do presidente, as propostas da oposição seriam facilmente contrastadas com as do Executivo. Forçando um pouco a barra, isso deu incentivos para a oposição se tornar mais responsável, melhorando a qualidade da oposição conforme definida por Dahl. (A história das reformas legislativas dos anos setenta está contada, detalhadamente, por Kenneth Shepsle no livro “Can the government govern?”, organizado por Paul Peterson e John Chubb em 1989.)

O principal problema norte-americano identificado em “Poliarquia: Participação e Oposição” era o nível de participação política. Até 1965, não havia legislação federal garantindo direitos eleitorais aos negros. Muitos estados restringiam o direito ao voto inventando subterfúgios como “mini-vestibulares” para um cidadão negro se registrar como eleitor. Diante disso, Dahl teve que incluir os Estados Unidos ao lado de Chile (sem voto para analfabetos) e Suíça (sem voto para mulheres) como “casos especiais” de poliarquias com “restrições eleitorais”. Uma restrição e tanto!

Por quatro décadas, analistas políticos deram pouca importância para o assunto. Consideravam que, na prática, a repressão aos direitos eleitorais era pontual. Os últimos dez anos mostram que estavam errados. Controlando sistemas políticos estaduais, o Partido Republicano passou a limitar a participação de negros, pobres, imigrantes – enfim, qualquer um que talvez pudesse votar em democratas – de maneira insidiosa. Uma delas é a exigência de documento de identificação com foto para registrar-se como eleitor. Em alguns estados, o único documento desse tipo é a carteira de motorista.

Com a polarização intensa da sociedade americana, a estratégia republicana ficou escancarada. Culminou, nesta semana, com o presidente (provavelmente) derrotado pedindo recontagem de votos para adiar o resultado e com um órgão estatal, os Correios, descumprindo decisão judicial para esclarecer se trezentas mil cédulas de votação foram encaminhadas para os órgãos eleitorais nos estados.

Também há o caso de um candidato ao Senado pelo Partido Republicano em Michigan, John James, recusando-se a aceitar a derrota para o senador democrata Gary Peters, mesmo com todos os votos contados. Alega fraude sem, é claro, demonstrar provas.

É hora de atualizar a classificação de Dahl.

(Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.)

Veja também

O povo brasileiro está frustrado com a eleição presidencial norte-americana. Cadê o resultado? Compensamos a angústia repassando memes indecorosos sobre desejos obscuros de Donald Trump (Partido Republicano).

Nem Joe Biden (Partido Democrata) está feliz por enquanto. Sua provável vitória pode demorar semanas para ser oficialmente declarada. Algo já está claro: um autogolpe de Trump tem pouquíssima chance de dar certo. O presidente continuará esperneando e mentindo, mas, a confirmar a apuração atual, Biden assumirá a presidência no fim de janeiro.

Os Estados Unidos terão a oportunidade de seguir com a vida e fingir que a eleição funcionou. Estarão errados.

Em 1971, o cientista político Robert Dahl publicou um clássico: “Poliarquia: Participação e Oposição”. Analisou como país relativamente autoritários poderiam realizar a transição para uma democracia plena, apelidada de “poliarquia”. Ou seja, como um país poderia aumentar o grau de contestação/oposição política e a participação livre dos cidadãos sem que isso resultasse em uma resposta autoritária?

Àquela altura, imaginar os Estados Unidos como qualquer coisa que não uma democracia seria herético. Em poucos anos, o país passaria por um teste difícil. O caso Watergate (1972-1975) revelou um presidente, Richard Nixon, extremamente corrupto e que não hesitava em mobilizar o aparato estatal para massacrar oponentes. Renunciou antes de ser destituído por impeachment.

Sob Nixon, por acaso, o principal problema do sistema político era o “governo de minoria” (minority rule) das comissões, muitas delas dominadas por parlamentares mais conservadores do que a maioria do plenário. Para ser menos abstrato, basta imaginar um processo legislativo controlado, nas comissões, pelo PSL, que escolheria quais projetos seriam votados no plenário. A pauta legislativa seria diferente da de Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara dos Deputados. Ao longo daquela década, os Estados Unidos tiraram poder dos “donos” das comissões parlamentares e centralizaram boa parte do trabalho legislativo na presidência da Câmara.

Isso tornou o processo político mais claro. Quando a Câmara fosse controlada por um partido diferente do partido do presidente, as propostas da oposição seriam facilmente contrastadas com as do Executivo. Forçando um pouco a barra, isso deu incentivos para a oposição se tornar mais responsável, melhorando a qualidade da oposição conforme definida por Dahl. (A história das reformas legislativas dos anos setenta está contada, detalhadamente, por Kenneth Shepsle no livro “Can the government govern?”, organizado por Paul Peterson e John Chubb em 1989.)

O principal problema norte-americano identificado em “Poliarquia: Participação e Oposição” era o nível de participação política. Até 1965, não havia legislação federal garantindo direitos eleitorais aos negros. Muitos estados restringiam o direito ao voto inventando subterfúgios como “mini-vestibulares” para um cidadão negro se registrar como eleitor. Diante disso, Dahl teve que incluir os Estados Unidos ao lado de Chile (sem voto para analfabetos) e Suíça (sem voto para mulheres) como “casos especiais” de poliarquias com “restrições eleitorais”. Uma restrição e tanto!

Por quatro décadas, analistas políticos deram pouca importância para o assunto. Consideravam que, na prática, a repressão aos direitos eleitorais era pontual. Os últimos dez anos mostram que estavam errados. Controlando sistemas políticos estaduais, o Partido Republicano passou a limitar a participação de negros, pobres, imigrantes – enfim, qualquer um que talvez pudesse votar em democratas – de maneira insidiosa. Uma delas é a exigência de documento de identificação com foto para registrar-se como eleitor. Em alguns estados, o único documento desse tipo é a carteira de motorista.

Com a polarização intensa da sociedade americana, a estratégia republicana ficou escancarada. Culminou, nesta semana, com o presidente (provavelmente) derrotado pedindo recontagem de votos para adiar o resultado e com um órgão estatal, os Correios, descumprindo decisão judicial para esclarecer se trezentas mil cédulas de votação foram encaminhadas para os órgãos eleitorais nos estados.

Também há o caso de um candidato ao Senado pelo Partido Republicano em Michigan, John James, recusando-se a aceitar a derrota para o senador democrata Gary Peters, mesmo com todos os votos contados. Alega fraude sem, é claro, demonstrar provas.

É hora de atualizar a classificação de Dahl.

(Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.)

Acompanhe tudo sobre:Donald TrumpEleições americanasEstados Unidos (EUA)Joe Biden

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se