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Doria e Covas arriscam seus governos com plano de reabertura

Sem testagem amostral e em massa, o plano elaborado pelo governador paulista (apoiado pelo prefeito) prioriza a retomada da atividade econômica

Doria e Covas: plano elaborado pelo governador paulista e apoiado pelo prefeito prioriza a retomada da atividade econômica (Governo do Estado de São Paulo Seguir/Flickr)
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beatrizcorreia

Publicado em 27 de maio de 2020 às 17h40.

Última atualização em 27 de maio de 2020 às 18h04.

No início da tarde, em entrevista coletiva do governo estadual, o prefeito da capital, Bruno Covas (PSDB), afirmou que o índice de reprodução do vírus (R) do município de São Paulo é 1”. Ou seja: cada pessoa infectada pelo coronavirus está passando a doença para apenas mais uma pessoa. Em linha com esse raciocínio, o governador João Doria (PSDB) e secretários estaduais – com destaque para Patrícia Ellen da Silva (Desenvolvimento Econômico) – anunciaram um plano de “retomada consciente” pós- covid para todo o estado.

Não é surpresa, considerando a natureza de organizações burocráticas, que o plano encontre oposição dentro do próprio governo de São Paulo. Funcionários de diversas secretarias acordaram perplexos na segunda-feira, 25, com o anúncio, na coluna de Mônica Bergamo, de que o índice de reprodução do coronavírus (Rt) está em 1.1 na capital e 1.7 no estado. (A fonte era Edson Aparecido, secretário municipal de Saúde.)

Os funcionários sabiam que a informação prenunciava o que ocorreu hoje: o anúncio de flexibilização do isolamento social a partir de 15 de junho. Dentro do governo, a decisão de hoje é vista como uma vitória de duas consultorias “contratadas”, através da doação de seus serviços, para ajudar Doria no combate ao coronavírus. São o Boston Consulting Group (BCG) e Oliver Wyman, para o qual a economista Ana Carla Abrão trabalha. O BCG tem forte contato com (e respaldo de) Patrícia Ellen. Três fontes consultadas, de secretarias distintas, a respeito dos trabalhos do BCG afirmam que a consultoria teve acesso a dados detalhadíssimos sobre o estado de São Paulo – conhecidos como “microdados”, aos quais ninguém fora do governo tem acesso.

Embora um termo de sigilo tenha sido assinado, o valor da consultoria para seus clientes pode subir bastante considerando esse acesso privilegiado. O fato é ainda pior considerando que a ONG Open Knowledge Brasil coloca o estado de São Paulo como o décimo mais transparente na estratégia de combate à pandemia.
Inspirado no Rio Grande do Sul, o plano, em si, não tem nada de errado. Exceto por um fato específico de São Paulo: indicadores de controle que dependem do conhecimento ou estimativa estatística honesta do número de casos confirmados e a falta de testagem em massa, sem a qual não há como saber o R de modo minimamente confiável.

O governo riograndense já começou a implementar a testagem amostral. Segundo uma pessoa que acompanha o trabalho de Doria de perto, “não temos um plano de testagem. Dimas Covas, que deveria liderar isso, já falou publicamente que testar policiais militares servirá como ‘amostra’ da população como um todo. É ingenuidade”.

Além disso, o funcionário aponta que poderá haver uma “explosão de casos” na capital se as diferenças socioeconômicas e entre bairros não forem consideradas – por isso a necessidade de testes amostrais. “A reprodução do vírus começou com a classe alta e está rapidamente se espalhando entre os mais pobres. Ao não se considerar a transmissão entre classes, usando um R geral para a cidade inteira, há o perigo de termos uma explosão de casos”.

Mostrei, para esse funcionário, um trecho da coletiva em que a secretária Patrícia Ellen disse o seguinte: “Adicionamos quase 4 milhões de testes. Com isso o estado de São Paulo passa a ter o número de testes a cada 100 mil habitantes em linha com referência de países desenvolvidos que estão fazendo o combate ao coronavírus”. A resposta veio por figurinha de whatsapp: “Enquanto vergonha for de graça, cenas como essa serão comuns...”.

A secretária foi modesta. Caso o estado tenha 4 milhões de testes, será um para cada 10 pessoas. Ou seja, 100 mil para cada milhão de pessoas. Ganharemos, com folga, dos países recordistas até agora nesse quesito: Espanha com 76, Portugal e Bélgica com 67 mil testes para cada milhão.

Na coletiva de imprensa do governo paulista durante a coletiva, foram apresentadas cinco fases: fase 1 (alerta máximo, R acima de 2); fase 2 (controle, R entre 1 e 2); fase 3 (flexibilização, R entre 1 e 2) 4 (abertura parcial, R abaixo de 1) e fase 5 (normal controlado, R abaixo de 1).

Sob anonimato, um médico observou que “São Paulo é o primeiro local, no mundo, a flexibilizar o isolamento enquanto a curva de transmissão do vírus ainda é ascendente. “Se tivéssemos testagem ampla e o R estivesse caindo abaixo de 1, seria um bom plano.” Se a frase de Bruno Covas estiver correta, a situação na capital está sob controle, usando o linguajar do governo estadual. Ontem foram 203 mortes no estado, totalizando mais de 6 mil desde o início da pandemia.

Uma anedota para concluir. O vice-governador Rodrigo Garcia (DEM) reclamou, nos bastidores, do nome anterior: “quarentena inteligente”. Achou que jornalistas poderiam afirmar que a estratégia anterior era “burra”. Daí a mudança para “retomada consciente”.

(Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.)

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No início da tarde, em entrevista coletiva do governo estadual, o prefeito da capital, Bruno Covas (PSDB), afirmou que o índice de reprodução do vírus (R) do município de São Paulo é 1”. Ou seja: cada pessoa infectada pelo coronavirus está passando a doença para apenas mais uma pessoa. Em linha com esse raciocínio, o governador João Doria (PSDB) e secretários estaduais – com destaque para Patrícia Ellen da Silva (Desenvolvimento Econômico) – anunciaram um plano de “retomada consciente” pós- covid para todo o estado.

Não é surpresa, considerando a natureza de organizações burocráticas, que o plano encontre oposição dentro do próprio governo de São Paulo. Funcionários de diversas secretarias acordaram perplexos na segunda-feira, 25, com o anúncio, na coluna de Mônica Bergamo, de que o índice de reprodução do coronavírus (Rt) está em 1.1 na capital e 1.7 no estado. (A fonte era Edson Aparecido, secretário municipal de Saúde.)

Os funcionários sabiam que a informação prenunciava o que ocorreu hoje: o anúncio de flexibilização do isolamento social a partir de 15 de junho. Dentro do governo, a decisão de hoje é vista como uma vitória de duas consultorias “contratadas”, através da doação de seus serviços, para ajudar Doria no combate ao coronavírus. São o Boston Consulting Group (BCG) e Oliver Wyman, para o qual a economista Ana Carla Abrão trabalha. O BCG tem forte contato com (e respaldo de) Patrícia Ellen. Três fontes consultadas, de secretarias distintas, a respeito dos trabalhos do BCG afirmam que a consultoria teve acesso a dados detalhadíssimos sobre o estado de São Paulo – conhecidos como “microdados”, aos quais ninguém fora do governo tem acesso.

Embora um termo de sigilo tenha sido assinado, o valor da consultoria para seus clientes pode subir bastante considerando esse acesso privilegiado. O fato é ainda pior considerando que a ONG Open Knowledge Brasil coloca o estado de São Paulo como o décimo mais transparente na estratégia de combate à pandemia.
Inspirado no Rio Grande do Sul, o plano, em si, não tem nada de errado. Exceto por um fato específico de São Paulo: indicadores de controle que dependem do conhecimento ou estimativa estatística honesta do número de casos confirmados e a falta de testagem em massa, sem a qual não há como saber o R de modo minimamente confiável.

O governo riograndense já começou a implementar a testagem amostral. Segundo uma pessoa que acompanha o trabalho de Doria de perto, “não temos um plano de testagem. Dimas Covas, que deveria liderar isso, já falou publicamente que testar policiais militares servirá como ‘amostra’ da população como um todo. É ingenuidade”.

Além disso, o funcionário aponta que poderá haver uma “explosão de casos” na capital se as diferenças socioeconômicas e entre bairros não forem consideradas – por isso a necessidade de testes amostrais. “A reprodução do vírus começou com a classe alta e está rapidamente se espalhando entre os mais pobres. Ao não se considerar a transmissão entre classes, usando um R geral para a cidade inteira, há o perigo de termos uma explosão de casos”.

Mostrei, para esse funcionário, um trecho da coletiva em que a secretária Patrícia Ellen disse o seguinte: “Adicionamos quase 4 milhões de testes. Com isso o estado de São Paulo passa a ter o número de testes a cada 100 mil habitantes em linha com referência de países desenvolvidos que estão fazendo o combate ao coronavírus”. A resposta veio por figurinha de whatsapp: “Enquanto vergonha for de graça, cenas como essa serão comuns...”.

A secretária foi modesta. Caso o estado tenha 4 milhões de testes, será um para cada 10 pessoas. Ou seja, 100 mil para cada milhão de pessoas. Ganharemos, com folga, dos países recordistas até agora nesse quesito: Espanha com 76, Portugal e Bélgica com 67 mil testes para cada milhão.

Na coletiva de imprensa do governo paulista durante a coletiva, foram apresentadas cinco fases: fase 1 (alerta máximo, R acima de 2); fase 2 (controle, R entre 1 e 2); fase 3 (flexibilização, R entre 1 e 2) 4 (abertura parcial, R abaixo de 1) e fase 5 (normal controlado, R abaixo de 1).

Sob anonimato, um médico observou que “São Paulo é o primeiro local, no mundo, a flexibilizar o isolamento enquanto a curva de transmissão do vírus ainda é ascendente. “Se tivéssemos testagem ampla e o R estivesse caindo abaixo de 1, seria um bom plano.” Se a frase de Bruno Covas estiver correta, a situação na capital está sob controle, usando o linguajar do governo estadual. Ontem foram 203 mortes no estado, totalizando mais de 6 mil desde o início da pandemia.

Uma anedota para concluir. O vice-governador Rodrigo Garcia (DEM) reclamou, nos bastidores, do nome anterior: “quarentena inteligente”. Achou que jornalistas poderiam afirmar que a estratégia anterior era “burra”. Daí a mudança para “retomada consciente”.

(Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.)

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