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Delações premiadas e a Lava Jato (Parte 1)

Hoje faz dois anos que o empresário Marcelo Odebrecht foi preso. Após diversas tentativas de se livrar do tempo na cadeia sem expor as entranhas dos esquemas corruptos dos quais fazia parte, Odebrecht viu-se obrigado a fazer tanto uma colaboração premiada (pessoa física) quanto um acordo de leniência (pessoa jurídica) com o Ministério Público Federal. […]

MARCELO ODEBRECHT: faz dois anos que o empresário foi preso / Divulgação (Divulgação/Divulgação)
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Da Redação

Publicado em 19 de junho de 2017 às 12h31.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h56.

Hoje faz dois anos que o empresário Marcelo Odebrecht foi preso. Após diversas tentativas de se livrar do tempo na cadeia sem expor as entranhas dos esquemas corruptos dos quais fazia parte, Odebrecht viu-se obrigado a fazer tanto uma colaboração premiada (pessoa física) quanto um acordo de leniência (pessoa jurídica) com o Ministério Público Federal. Nesta série de textos, analisaremos a implementação da delação premiada no Brasil e suas consequências para a Operação Lava Jato.

Antes de 2013, criminosos brasileiros pegos em atos corruptos podiam relaxar. Dinheiro na minha cueca? Ora, quem é você para me julgar sobre isso? Tenho bons advogados. Não é da sua conta de onde vem a grana. E daí que sou irmão de deputado federal? Tenho direitos garantidos. Conheço-os. Não vou falar nada. Deixe-me em paz e boa sorte tentando encontrar qualquer outra pessoa responsável por estufar minha calça.

Digamos que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, os dois órgãos responsáveis por investigar atos corruptos (os policiais federais mais do que os procuradores), encontrem um dos comparsas do crime. Os dois são trancados em salas diferentes. Quem já viu seriado policial norte-americano reconhece a cena. Para cada um dos suspeitos oferece-se um acordo: sua pena será reduzida, ou mesmo anulada, se você entregar o esquema todo. Não quero saber de você, quero seu chefe. É aquele otário sentado na outra sala? Bem, o outro suspeito do crime está ouvindo o mesmo clichê. Ambos sabem que a polícia não tem elementos suficientes para condená-los. Se tivesse, o encaminhamento seria outro: acordo ou julgamento. Por enquanto é blefe, negociação. Para usar termos técnicos, tanto os policiais quanto os suspeitos têm “informação privada” que ou não pode ser revelada (“não temos provas contra vocês”, diria um policial) ou não é crível (“sou inocente”, diria um suspeito).

Os policiais não têm prova alguma a respeito da origem do dinheiro na cueca. Se o volume for proveniente de um ato corrupto, os suspeitos pegarão três anos cada. Mas não há, por enquanto, como saber. E os policiais podem, nesse momento, implicá-los em um crime cuja pena será um ano – mesmo que um Toron os defenda. Não é o ideal.

Os policiais oferecem redução na pena caso o suspeito coopere. As opções, sem que os suspeitos sabiam, são cooperar sem o mesmo comportamento do comparsa, ou ambos cooperarem. Caso ambos cooperem, a pena para cada um deles será de dois anos. Se nenhum deles cooperar, como já foi descrito acima, ambos pegam um ano. Mas a negociação com os policiais é tentadora: estão dizendo que não irei para a cadeia se eu entregar meu parceiro! Opa. Mas devem ter falado o mesmo para ele. Se eu o entregar, livro-me da condenação e ele se ferra. Ou serei eu o ferrado.

A melhor opção para ambos já deve ter ficado clara: entregar o parceiro. Para chegar a esta conclusão, é preciso considerar que o custo reputacional de cooperar com a polícia será baixíssimo. Em outras palavras, o delator (“colaborador”!) não voltará para o crime. Tampouco temerá revide violento dos outros criminosos que não foram encontrados pela polícia ainda.

Por que, afinal, um criminoso deveria confiar no outro? Conforme o sociólogo Diego Gambetta afirma no excelente “Codes of the Underworld: how criminals communicate” (Princeton University Press, 2011) criminosos têm mais dificuldade em se estabelecer como confiáveis para seus parceiros. Afinal, um criminoso traído pelo comparsa no dia-a-dia não tem a quem recorrer. Não há, é claro, um contrato entre criminosos a ser garantido pela justiça. Dois métodos, ao menos, podem ser utilizados para aumentar a confiança e viabilizar crimes. O primeiro, menos comum, é estabelecer-se como “incompetente”, pouco ambicioso. Posso entrar no esquema porque não sou ganancioso, nem quero uma posição além da que tenho hoje. Só quero um pouco mais de dinheiro. Nem conseguiria fazer outro esquema que não fosse este aqui, então pode confiar em mim. O segundo é revelar informações sobre meus crimes passados. Já estou no esquema da Copa faz tempo. Conheço gente na Planam e fizemos muitos negócios juntos.

A confiança entre criminosos encontrará fértil terreno em lugares nos quais não há possibilidade de se verem no “dilema dos prisioneiros” descrito acima. Até 2 de agosto de 2013, o Brasil era um desses lugares. Em junho daquele ano, protestos de cidadãos tornaram-se comuns em capitais. O motivo inicial para organizá-los foi o possível aumento na tarifa de ônibus. Em pouco tempo, a raiva se espalhou e as manifestações ganharam força. Uma decorrência natural disso foi a heterogeneidade das demandas, expressas em faixas e cartazes que pediam tudo, até nada. (Meu favorito: “Estou tão puto que fiz um cartaz”.)

Um estudo dos cientistas políticos Matthew Winters e Rebecca Weitz-Shapiro mostra algumas coisas surpreendentes sobre as manifestações de 2013. A pedido dos pesquisadores, o Ibope conduziu duas pesquisas – uma em maio, outra em julho – com os participantes das passeatas e outros cidadãos.

O primeiro achado, e talvez o mais esquisito para quem acompanhou os protestos em São Paulo, é que simpatizantes do Partido Verde e do PSOL compuseram uma parte relevante das manifestações. Ou seja, elas foram muito menos antipartidárias (e apartidárias) do que a mídia relatou. Ao serem perguntados sobre o principal motivo para os protestos, 43% dos manifestantes citou o aumento da tarifa de ônibus (contra 36% dos não-participantes). A corrupção foi lembrada como principal motivo por apenas 18% dos manifestantes (contra 27% de quem não foi às passeatas), indicando que o sentimento “todos são corruptos” estava mais fraco nas manifestações do que se imagina.

O estudo mostra que a mobilização tornou a população menos simpática aos partidos políticos. Em maio, 52% dos cidadãos afirmavam não se identificar com nenhum partido – este percentual subiu para 57% em julho. A rejeição ao PT foi o que motivou isso, segundo os autores. Havia 32% de simpatizantes do PT em São Paulo e 34% no Rio de Janeiro. Após as manifestações, os números abaixaram, respectivamente, para 18% e 16%.

Políticos dependem de apoio popular para serem reeleitos em qualquer democracia. Se as circunstâncias mudam, eles se adaptam. Nos Estados Unidos, as passeatas organizadas por simpatizantes da “Tea Party”, facção do Partido Republicano, tiveram um efeito real no comportamento parlamentar, mostra o estudo “Do political protests matter? Evidence from the Tea Party movement”, de Andreas Madestam, Daniel Shoag, Stan Veuger e David Yanagizawa-Drott, publicado em 2013 no Quarterly Journal of Economics. Deputados federais que representavam distritos nos quais grandes protestos foram organizados acabaram votando de maneira mais conservadora.

No Brasil, a resposta dos parlamentares foi a aprovação de duas leis. A Lei 12.846/2013, apelidada de “Lei Anticorrupção”, e a Lei 12.850/2013, chamada de “Lei das Organizações Criminosas”. O projeto de lei que resultou nessa última foi apresentado pela senadora Serys Slhessarenko (PT) em 2006, chegou à Câmara dos Deputados em 2009 e lá adormeceu até dezembro de 2012, quando foi aprovado. Voltou para o Senado Federal que, com a pressão das ruas, aprovou a proposta.

Enquanto a Lei 12.846 tentou (mas não conseguiu) garantir que o poder Executivo faria acordos de leniência com empresas corruptas, a Lei 12.850 teve como principal objetivo facilitar a descoberta dos crimes corruptos. Para isso, colocar os criminosos em situações análogas ao cliché (eficaz) da policia norte-americana é fundamental. Ao disciplinar a “colaboração premiada” de criminosos, a Lei 12.850 foi crucial para prender – e manter preso até hoje – Marcelo Odebrecht.

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Hoje faz dois anos que o empresário Marcelo Odebrecht foi preso. Após diversas tentativas de se livrar do tempo na cadeia sem expor as entranhas dos esquemas corruptos dos quais fazia parte, Odebrecht viu-se obrigado a fazer tanto uma colaboração premiada (pessoa física) quanto um acordo de leniência (pessoa jurídica) com o Ministério Público Federal. Nesta série de textos, analisaremos a implementação da delação premiada no Brasil e suas consequências para a Operação Lava Jato.

Antes de 2013, criminosos brasileiros pegos em atos corruptos podiam relaxar. Dinheiro na minha cueca? Ora, quem é você para me julgar sobre isso? Tenho bons advogados. Não é da sua conta de onde vem a grana. E daí que sou irmão de deputado federal? Tenho direitos garantidos. Conheço-os. Não vou falar nada. Deixe-me em paz e boa sorte tentando encontrar qualquer outra pessoa responsável por estufar minha calça.

Digamos que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, os dois órgãos responsáveis por investigar atos corruptos (os policiais federais mais do que os procuradores), encontrem um dos comparsas do crime. Os dois são trancados em salas diferentes. Quem já viu seriado policial norte-americano reconhece a cena. Para cada um dos suspeitos oferece-se um acordo: sua pena será reduzida, ou mesmo anulada, se você entregar o esquema todo. Não quero saber de você, quero seu chefe. É aquele otário sentado na outra sala? Bem, o outro suspeito do crime está ouvindo o mesmo clichê. Ambos sabem que a polícia não tem elementos suficientes para condená-los. Se tivesse, o encaminhamento seria outro: acordo ou julgamento. Por enquanto é blefe, negociação. Para usar termos técnicos, tanto os policiais quanto os suspeitos têm “informação privada” que ou não pode ser revelada (“não temos provas contra vocês”, diria um policial) ou não é crível (“sou inocente”, diria um suspeito).

Os policiais não têm prova alguma a respeito da origem do dinheiro na cueca. Se o volume for proveniente de um ato corrupto, os suspeitos pegarão três anos cada. Mas não há, por enquanto, como saber. E os policiais podem, nesse momento, implicá-los em um crime cuja pena será um ano – mesmo que um Toron os defenda. Não é o ideal.

Os policiais oferecem redução na pena caso o suspeito coopere. As opções, sem que os suspeitos sabiam, são cooperar sem o mesmo comportamento do comparsa, ou ambos cooperarem. Caso ambos cooperem, a pena para cada um deles será de dois anos. Se nenhum deles cooperar, como já foi descrito acima, ambos pegam um ano. Mas a negociação com os policiais é tentadora: estão dizendo que não irei para a cadeia se eu entregar meu parceiro! Opa. Mas devem ter falado o mesmo para ele. Se eu o entregar, livro-me da condenação e ele se ferra. Ou serei eu o ferrado.

A melhor opção para ambos já deve ter ficado clara: entregar o parceiro. Para chegar a esta conclusão, é preciso considerar que o custo reputacional de cooperar com a polícia será baixíssimo. Em outras palavras, o delator (“colaborador”!) não voltará para o crime. Tampouco temerá revide violento dos outros criminosos que não foram encontrados pela polícia ainda.

Por que, afinal, um criminoso deveria confiar no outro? Conforme o sociólogo Diego Gambetta afirma no excelente “Codes of the Underworld: how criminals communicate” (Princeton University Press, 2011) criminosos têm mais dificuldade em se estabelecer como confiáveis para seus parceiros. Afinal, um criminoso traído pelo comparsa no dia-a-dia não tem a quem recorrer. Não há, é claro, um contrato entre criminosos a ser garantido pela justiça. Dois métodos, ao menos, podem ser utilizados para aumentar a confiança e viabilizar crimes. O primeiro, menos comum, é estabelecer-se como “incompetente”, pouco ambicioso. Posso entrar no esquema porque não sou ganancioso, nem quero uma posição além da que tenho hoje. Só quero um pouco mais de dinheiro. Nem conseguiria fazer outro esquema que não fosse este aqui, então pode confiar em mim. O segundo é revelar informações sobre meus crimes passados. Já estou no esquema da Copa faz tempo. Conheço gente na Planam e fizemos muitos negócios juntos.

A confiança entre criminosos encontrará fértil terreno em lugares nos quais não há possibilidade de se verem no “dilema dos prisioneiros” descrito acima. Até 2 de agosto de 2013, o Brasil era um desses lugares. Em junho daquele ano, protestos de cidadãos tornaram-se comuns em capitais. O motivo inicial para organizá-los foi o possível aumento na tarifa de ônibus. Em pouco tempo, a raiva se espalhou e as manifestações ganharam força. Uma decorrência natural disso foi a heterogeneidade das demandas, expressas em faixas e cartazes que pediam tudo, até nada. (Meu favorito: “Estou tão puto que fiz um cartaz”.)

Um estudo dos cientistas políticos Matthew Winters e Rebecca Weitz-Shapiro mostra algumas coisas surpreendentes sobre as manifestações de 2013. A pedido dos pesquisadores, o Ibope conduziu duas pesquisas – uma em maio, outra em julho – com os participantes das passeatas e outros cidadãos.

O primeiro achado, e talvez o mais esquisito para quem acompanhou os protestos em São Paulo, é que simpatizantes do Partido Verde e do PSOL compuseram uma parte relevante das manifestações. Ou seja, elas foram muito menos antipartidárias (e apartidárias) do que a mídia relatou. Ao serem perguntados sobre o principal motivo para os protestos, 43% dos manifestantes citou o aumento da tarifa de ônibus (contra 36% dos não-participantes). A corrupção foi lembrada como principal motivo por apenas 18% dos manifestantes (contra 27% de quem não foi às passeatas), indicando que o sentimento “todos são corruptos” estava mais fraco nas manifestações do que se imagina.

O estudo mostra que a mobilização tornou a população menos simpática aos partidos políticos. Em maio, 52% dos cidadãos afirmavam não se identificar com nenhum partido – este percentual subiu para 57% em julho. A rejeição ao PT foi o que motivou isso, segundo os autores. Havia 32% de simpatizantes do PT em São Paulo e 34% no Rio de Janeiro. Após as manifestações, os números abaixaram, respectivamente, para 18% e 16%.

Políticos dependem de apoio popular para serem reeleitos em qualquer democracia. Se as circunstâncias mudam, eles se adaptam. Nos Estados Unidos, as passeatas organizadas por simpatizantes da “Tea Party”, facção do Partido Republicano, tiveram um efeito real no comportamento parlamentar, mostra o estudo “Do political protests matter? Evidence from the Tea Party movement”, de Andreas Madestam, Daniel Shoag, Stan Veuger e David Yanagizawa-Drott, publicado em 2013 no Quarterly Journal of Economics. Deputados federais que representavam distritos nos quais grandes protestos foram organizados acabaram votando de maneira mais conservadora.

No Brasil, a resposta dos parlamentares foi a aprovação de duas leis. A Lei 12.846/2013, apelidada de “Lei Anticorrupção”, e a Lei 12.850/2013, chamada de “Lei das Organizações Criminosas”. O projeto de lei que resultou nessa última foi apresentado pela senadora Serys Slhessarenko (PT) em 2006, chegou à Câmara dos Deputados em 2009 e lá adormeceu até dezembro de 2012, quando foi aprovado. Voltou para o Senado Federal que, com a pressão das ruas, aprovou a proposta.

Enquanto a Lei 12.846 tentou (mas não conseguiu) garantir que o poder Executivo faria acordos de leniência com empresas corruptas, a Lei 12.850 teve como principal objetivo facilitar a descoberta dos crimes corruptos. Para isso, colocar os criminosos em situações análogas ao cliché (eficaz) da policia norte-americana é fundamental. Ao disciplinar a “colaboração premiada” de criminosos, a Lei 12.850 foi crucial para prender – e manter preso até hoje – Marcelo Odebrecht.

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