Como ser um bom líder, segundo Henry Kissinger
Seis líderes do século 20 se destacaram por ações que levam a ganhos para muito além dos seus mandatos. Recado valioso para um Brasil prestes a ir às urnas
Da Redação
Publicado em 22 de outubro de 2022 às 14h32.
Última atualização em 22 de outubro de 2022 às 14h39.
Aos 99 anos, Henry Kissinger publica “Leadership: Six Studies in World Strategy” (Penguin, 2022). O internacionalista analisa seis líderes do século 20: Konrad Adenauer (Alemanha), Margareth Thatcher (Reino Unido), Richard Nixon (Estados Unidos), Anwar Sadat (Egito), Charles de Gaulle (França) e Lee Kuan Yew (Cingapura). Todos se unem por se preocuparem com seus países a longo prazo, com ações que, segundo Kissinger, implicaram ganhos para muito além dos períodos de seus mandatos.
O principal ponto de Kissinger é que um bom líder deve balancear o que sabe sobre o passado com o que intui sobre o futuro, incerto por definição. Aliada à intuição, o líder precisa se comunicar bem, acalmar a sociedade, inspirá-la a caminhar a seu lado sem coagi-la. Isso lembra o maquiavelismo, à boca torta, de que é melhor ser temido do que amado. O florentino sabia que a paixão do povo por um líder pode facilmente se tornar contra ele. (Talvez Maquiavel tenha dito isso como parte de uma estratégia sorrateira para que o ditador Lourenço de Médici, o primeiro a receber a pequena obra, exagerasse na coerção contra o povo e por ele fosse derrubado.)
A habilidade dos líderes retratados por Kissinger vem da mistura de tenacidade com uma formação escolar humanista. Tendo passado a adolescência em colégios academicamente rigorosos, os seis líderes se acostumaram cedo à competição, sem querer agradar a todos. Uma das principais características comuns aos seis era sua capacidade de criar discórdia. “Eles queriam que seus povos seguissem o caminho que eles lideravam, mas não buscavam nem esperavam um consenso; controvérsia foi o subproduto inevitável das transformações que eles buscavam”, escreve Kissinger.
Esse é um bom ponto. Costuma-se elogiar líderes pela capacidade de negociação e persuasão. Bons “gerentes de coalizões”, que conseguem dosar distribuição de cargos e verbas para aliados com o avanço de uma agenda legislativa negociada, relativamente distante de suas preferências pessoais, são tidos como os melhores políticos em nossos tempos atuais. Mas não são presidentes assim que ficam para a história com “H” maiúsculo.
É o caso de Lyndon Johnson, presidente dos Estados Unidos entre 1963 e 1968. Alertado por assessores que a ampliação de direitos civis e políticos para negros seria malvista por aliados, em especial seus antigos colegas sulistas no Senado, Johnson se irritou: “Então para que serve essa porra?”.
Johnson foi sucedido por Richard Nixon, que contratou Kissinger para cuidar da política externa norte-americana. O êxito internacional de Nixon – aproximação com a China de Mao Zedong, fim da Guerra do Vietnã – teve um alto custo em termos de direitos humanos. Devido à ação direta da dupla, o presidente chileno Salvador Allende foi levado ao suicídio e, na estimativa mais conservadora, 150 mil pessoas foram assassinadas no Camboja.
Neste livro, Kissinger ignora o tema. Também finge que Nixon não promoveu a maior campanha ilegal contra um partido político norte-americano no século. “Caráter é a mais indispensável das qualidades de um líder político”, escreve o ex-assessor do presidente não-republicano.
Kissinger supõe que líderes jogam limpo com seus competidores. Quando perdem admitem a derrota sem exagerar na repressão aos oponentes. Pois duas das figuras mais importantes do livro, Richard Nixon e Margareth Thatcher, passaram longe de cumprir esses dois requisitos.
A partir de sua entrada na presidência norte-americana em 1969, Nixon organizou uma equipe para desorganizar, ainda mais, o dividido Partido Democrata, combalido após o mandato de Lyndon Johnson ter sido marcado por protestos contra a Guerra do Vietnã. “LBJ, how many kids did you kill today?”, era um dos gritos prediletos da esquerda democrata em 1968, chateada com a convocação de meninos brancos.
Nixon deveria ter assumido o mandato com tranquilidade. Mas, além de mentiroso e boca suja, paranoico. Seus asseclas como John Mitchell, Gordon Liddey, etc., fazem Steve Bannon parecer ingênuo. Os ratfuckers do Partido Republicano tanto atrapalharam o Partido Democrata que, em 1972, Nixon foi reeleito com a margem mais ampla de votos na história dos Estados Unidos. Renunciou em 1974, prestes a ser destituído do cargo por impeachment.
Cinco anos depois, a conservadora Margareth Thatcher foi a primeira mulher eleita primeira-ministra da Inglaterra. Kissinger considera-a uma habilidosa visionária, capaz de tirar seu país do modorrento estatismo pós-guerra. Mas Thatcher teria sido mesmo uma liderança original ou apenas o produto de uma época em que o conservadorismo já tomaria conta da Inglaterra de qualquer maneira?
A melhor resposta é a de John Keeler em um artigo seminal intitulado“Opening the Window for Reform: Mandates, Crises, and Extraordinary Policymaking” (Comparative Political Studies, 1993).
Segundo Keeler, era praticamente inevitável que o Partido Conservador derrotasse o Partido Trabalhista em 1979. O fracasso dos primeiros-ministros Harold Wilson (1974-1976) e James Callaghan (1976-1979) foi exacerbado pela inflação, que fez a Inglaterra pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em 1976. Depois dessa humilhação, o Partido Conservador chegou ao poder, através de Thatcher, com bastante confiança do povo.
Até aqui, o argumento de Kissinger sobre a “excepcional” liderança da primeira-ministra não é convincente. Qualquer outra liderança conservadora poderia ter feito grandes mudanças (e ainda populares) depois do fracasso trabalhista.
Mas a rigorosa análise de Keeler reforça a visão do internacionalista. “Em 1979, Thatcher foi forçada a trabalhar inicialmente com ministros mais moderados do que ela. Começou lançando uma política de combate à inflação, fez aprovar leis limitando o poder dos sindicatos e fez movimentos cautelosos no sentido de privatizar empresas públicas”, escreve o cientista político. Thatcher ficou no comando do governo por onze anos – sucesso inegável, embora sua popularidade no período tenha sido, na média, menor do que a do seu partido. Isso é um ponto forte a favor dela. Demonstrou liderança ao ir contra a maioria do establishment na Guerra das Malvinas e ao ver, em Gorbatchev, a possibilidade de um fim pacífico ao comunismo soviético.
Além dos relatos pessoais sobre a maioria dos líderes retratados, o melhor de “Leadership” é mostrar o sucesso de políticos com instinto iconoclasta que sabem captar a vontade do povo e negociá-la com outros líderes. Sabem também os melhores momentos para ignorar os cidadãos (por definição, pouco informados sobre as consequências de decisões políticas a médio e longo prazo).
Nada mal suscitar essas discussões a sete meses de celebrar o centenário do autor. A expectativa de vida no Camboja era, em 1977, 19 anos.
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Aos 99 anos, Henry Kissinger publica “Leadership: Six Studies in World Strategy” (Penguin, 2022). O internacionalista analisa seis líderes do século 20: Konrad Adenauer (Alemanha), Margareth Thatcher (Reino Unido), Richard Nixon (Estados Unidos), Anwar Sadat (Egito), Charles de Gaulle (França) e Lee Kuan Yew (Cingapura). Todos se unem por se preocuparem com seus países a longo prazo, com ações que, segundo Kissinger, implicaram ganhos para muito além dos períodos de seus mandatos.
O principal ponto de Kissinger é que um bom líder deve balancear o que sabe sobre o passado com o que intui sobre o futuro, incerto por definição. Aliada à intuição, o líder precisa se comunicar bem, acalmar a sociedade, inspirá-la a caminhar a seu lado sem coagi-la. Isso lembra o maquiavelismo, à boca torta, de que é melhor ser temido do que amado. O florentino sabia que a paixão do povo por um líder pode facilmente se tornar contra ele. (Talvez Maquiavel tenha dito isso como parte de uma estratégia sorrateira para que o ditador Lourenço de Médici, o primeiro a receber a pequena obra, exagerasse na coerção contra o povo e por ele fosse derrubado.)
A habilidade dos líderes retratados por Kissinger vem da mistura de tenacidade com uma formação escolar humanista. Tendo passado a adolescência em colégios academicamente rigorosos, os seis líderes se acostumaram cedo à competição, sem querer agradar a todos. Uma das principais características comuns aos seis era sua capacidade de criar discórdia. “Eles queriam que seus povos seguissem o caminho que eles lideravam, mas não buscavam nem esperavam um consenso; controvérsia foi o subproduto inevitável das transformações que eles buscavam”, escreve Kissinger.
Esse é um bom ponto. Costuma-se elogiar líderes pela capacidade de negociação e persuasão. Bons “gerentes de coalizões”, que conseguem dosar distribuição de cargos e verbas para aliados com o avanço de uma agenda legislativa negociada, relativamente distante de suas preferências pessoais, são tidos como os melhores políticos em nossos tempos atuais. Mas não são presidentes assim que ficam para a história com “H” maiúsculo.
É o caso de Lyndon Johnson, presidente dos Estados Unidos entre 1963 e 1968. Alertado por assessores que a ampliação de direitos civis e políticos para negros seria malvista por aliados, em especial seus antigos colegas sulistas no Senado, Johnson se irritou: “Então para que serve essa porra?”.
Johnson foi sucedido por Richard Nixon, que contratou Kissinger para cuidar da política externa norte-americana. O êxito internacional de Nixon – aproximação com a China de Mao Zedong, fim da Guerra do Vietnã – teve um alto custo em termos de direitos humanos. Devido à ação direta da dupla, o presidente chileno Salvador Allende foi levado ao suicídio e, na estimativa mais conservadora, 150 mil pessoas foram assassinadas no Camboja.
Neste livro, Kissinger ignora o tema. Também finge que Nixon não promoveu a maior campanha ilegal contra um partido político norte-americano no século. “Caráter é a mais indispensável das qualidades de um líder político”, escreve o ex-assessor do presidente não-republicano.
Kissinger supõe que líderes jogam limpo com seus competidores. Quando perdem admitem a derrota sem exagerar na repressão aos oponentes. Pois duas das figuras mais importantes do livro, Richard Nixon e Margareth Thatcher, passaram longe de cumprir esses dois requisitos.
A partir de sua entrada na presidência norte-americana em 1969, Nixon organizou uma equipe para desorganizar, ainda mais, o dividido Partido Democrata, combalido após o mandato de Lyndon Johnson ter sido marcado por protestos contra a Guerra do Vietnã. “LBJ, how many kids did you kill today?”, era um dos gritos prediletos da esquerda democrata em 1968, chateada com a convocação de meninos brancos.
Nixon deveria ter assumido o mandato com tranquilidade. Mas, além de mentiroso e boca suja, paranoico. Seus asseclas como John Mitchell, Gordon Liddey, etc., fazem Steve Bannon parecer ingênuo. Os ratfuckers do Partido Republicano tanto atrapalharam o Partido Democrata que, em 1972, Nixon foi reeleito com a margem mais ampla de votos na história dos Estados Unidos. Renunciou em 1974, prestes a ser destituído do cargo por impeachment.
Cinco anos depois, a conservadora Margareth Thatcher foi a primeira mulher eleita primeira-ministra da Inglaterra. Kissinger considera-a uma habilidosa visionária, capaz de tirar seu país do modorrento estatismo pós-guerra. Mas Thatcher teria sido mesmo uma liderança original ou apenas o produto de uma época em que o conservadorismo já tomaria conta da Inglaterra de qualquer maneira?
A melhor resposta é a de John Keeler em um artigo seminal intitulado“Opening the Window for Reform: Mandates, Crises, and Extraordinary Policymaking” (Comparative Political Studies, 1993).
Segundo Keeler, era praticamente inevitável que o Partido Conservador derrotasse o Partido Trabalhista em 1979. O fracasso dos primeiros-ministros Harold Wilson (1974-1976) e James Callaghan (1976-1979) foi exacerbado pela inflação, que fez a Inglaterra pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em 1976. Depois dessa humilhação, o Partido Conservador chegou ao poder, através de Thatcher, com bastante confiança do povo.
Até aqui, o argumento de Kissinger sobre a “excepcional” liderança da primeira-ministra não é convincente. Qualquer outra liderança conservadora poderia ter feito grandes mudanças (e ainda populares) depois do fracasso trabalhista.
Mas a rigorosa análise de Keeler reforça a visão do internacionalista. “Em 1979, Thatcher foi forçada a trabalhar inicialmente com ministros mais moderados do que ela. Começou lançando uma política de combate à inflação, fez aprovar leis limitando o poder dos sindicatos e fez movimentos cautelosos no sentido de privatizar empresas públicas”, escreve o cientista político. Thatcher ficou no comando do governo por onze anos – sucesso inegável, embora sua popularidade no período tenha sido, na média, menor do que a do seu partido. Isso é um ponto forte a favor dela. Demonstrou liderança ao ir contra a maioria do establishment na Guerra das Malvinas e ao ver, em Gorbatchev, a possibilidade de um fim pacífico ao comunismo soviético.
Além dos relatos pessoais sobre a maioria dos líderes retratados, o melhor de “Leadership” é mostrar o sucesso de políticos com instinto iconoclasta que sabem captar a vontade do povo e negociá-la com outros líderes. Sabem também os melhores momentos para ignorar os cidadãos (por definição, pouco informados sobre as consequências de decisões políticas a médio e longo prazo).
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