Como Biden afeta Bolsonaro?
Os americanos sinalizam que não toleram mentiras e polêmicas “culturais” – e assim o presidente brasileiro perde o guia que diz amar
Juliana Estigarríbia
Publicado em 7 de novembro de 2020 às 18h29.
É rara, no Brasil, a torcida tão explícita de um presidente pela reeleição de seu par norte-americano. Jair Bolsonaro (sem partido) não nos poupou disso. Até o último momento, apoiou Donald Trump (Partido Republicano) como se fosse amigo próximo.
Como é de costume, seu filho Eduardo Bolsonaro (PSL), deputado federal, tomou a frente das manifestações mais histéricas. Em seu perfil no Twitter, diz desconfiar que a “esquerda” fraudou as eleições nos EUA.
O presidente Bolsonaro foi um pouco mais sutil, afirmando que “há sempre uma forte suspeita de ingerência de outras potências” no processo eleitoral norte-americano. (Sim, como em 2016, quando uma ofensiva russa no Facebook foi determinante para eleger Trump. As evidências estão no livro “Cyberwar: How Russian Hackers and Trolls Helped Elect a President – What We Don’t, Can’t and Do Know”, de Kathleen H. Jamieson, publicado em 2018 pela Oxford University Press.)
De qualquer maneira, é óbvio que a vitória de Joe Biden (Partido Democrata) é ruim para a família Bolsonaro. São três os principais motivos.
1) Um indesejável rearranjo ministerial. Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente) são os ministros mais olavistas-conservadores do governo, junto com Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). Araújo passará vergonha internacional se continuar se comportando como vassalo do Partido Republicano. A área sob controle de Salles já foi criticada com força por Biden em um debate presidencial. O presidente eleito afirmou que sancionará o Brasil caso a Amazônia continue queimando. Se Bolsonaro fosse esperto, substituiria os ministros para sinalizar a Biden que teme desvantagens econômicas.
2) A mitomania começa a ser intolerável. Não gosto da afirmação de que mentiras (“fake news”) determinam preferências eleitorais. Diversos estudos negam isso. Mas mentirosos contumazes na presidência provocam danos reais. Dominam a agenda pública pelo simples fato de que ocupam o cargo mais alto do país. Perdemos tempo debatendo golden shower em vez de políticas públicas. O fato de que Donald Trump teve a transmissão de seu discurso mais paranoico interrompida pelas emissoras de TV anteontem é alvissareiro para os cidadãos e preocupante para Bolsonaro.
3) Derrota na guerra cultural. Muito da política no século XXI tem se dado em torno de batalhas “culturais” em vez de econômicas. Como o economista Branko Milanovic afirma em seu livro “Capitalism, Alone” (Harvard University Press, 2019), não há dúvidas sobre o sistema econômico vencedor do século XX – apenas se este tem formato “liberal-meritocrático” (Estados Unidos, Armínio Fraga) ou “guiado pelo Estado” (China, Arno Augustin). Parte relevante do conflito político se desloca para coisas como imigração (tangível para quem é de Governador Valadares, intangível para a maioria das pessoas), feminismo (também com claros aspectos tangíveis e outros discursivos) etc. Bolsonaro é discípulo de Trump nisso. Perdeu seu guia e terá que achar outras maneiras de conseguir a atenção que tanto precisa.
(Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.)
É rara, no Brasil, a torcida tão explícita de um presidente pela reeleição de seu par norte-americano. Jair Bolsonaro (sem partido) não nos poupou disso. Até o último momento, apoiou Donald Trump (Partido Republicano) como se fosse amigo próximo.
Como é de costume, seu filho Eduardo Bolsonaro (PSL), deputado federal, tomou a frente das manifestações mais histéricas. Em seu perfil no Twitter, diz desconfiar que a “esquerda” fraudou as eleições nos EUA.
O presidente Bolsonaro foi um pouco mais sutil, afirmando que “há sempre uma forte suspeita de ingerência de outras potências” no processo eleitoral norte-americano. (Sim, como em 2016, quando uma ofensiva russa no Facebook foi determinante para eleger Trump. As evidências estão no livro “Cyberwar: How Russian Hackers and Trolls Helped Elect a President – What We Don’t, Can’t and Do Know”, de Kathleen H. Jamieson, publicado em 2018 pela Oxford University Press.)
De qualquer maneira, é óbvio que a vitória de Joe Biden (Partido Democrata) é ruim para a família Bolsonaro. São três os principais motivos.
1) Um indesejável rearranjo ministerial. Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente) são os ministros mais olavistas-conservadores do governo, junto com Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). Araújo passará vergonha internacional se continuar se comportando como vassalo do Partido Republicano. A área sob controle de Salles já foi criticada com força por Biden em um debate presidencial. O presidente eleito afirmou que sancionará o Brasil caso a Amazônia continue queimando. Se Bolsonaro fosse esperto, substituiria os ministros para sinalizar a Biden que teme desvantagens econômicas.
2) A mitomania começa a ser intolerável. Não gosto da afirmação de que mentiras (“fake news”) determinam preferências eleitorais. Diversos estudos negam isso. Mas mentirosos contumazes na presidência provocam danos reais. Dominam a agenda pública pelo simples fato de que ocupam o cargo mais alto do país. Perdemos tempo debatendo golden shower em vez de políticas públicas. O fato de que Donald Trump teve a transmissão de seu discurso mais paranoico interrompida pelas emissoras de TV anteontem é alvissareiro para os cidadãos e preocupante para Bolsonaro.
3) Derrota na guerra cultural. Muito da política no século XXI tem se dado em torno de batalhas “culturais” em vez de econômicas. Como o economista Branko Milanovic afirma em seu livro “Capitalism, Alone” (Harvard University Press, 2019), não há dúvidas sobre o sistema econômico vencedor do século XX – apenas se este tem formato “liberal-meritocrático” (Estados Unidos, Armínio Fraga) ou “guiado pelo Estado” (China, Arno Augustin). Parte relevante do conflito político se desloca para coisas como imigração (tangível para quem é de Governador Valadares, intangível para a maioria das pessoas), feminismo (também com claros aspectos tangíveis e outros discursivos) etc. Bolsonaro é discípulo de Trump nisso. Perdeu seu guia e terá que achar outras maneiras de conseguir a atenção que tanto precisa.
(Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.)