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Cansei do Ministério Público

A saída de Rodrigo Janot aumenta a probabilidade de o Ministério Público encontrar um novo lugar no sistema político – nem silente, nem protagonista

Posse de Raquel Dodge: há poucas coisas mais enfadonhas do que discursos institucionais (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
LG

Luísa Granato

Publicado em 22 de setembro de 2017 às 18h08.

Raramente assisto transmissões de posse de cargos públicos. A de Raquel Dodge como Procuradora-Geral da Republica, no começo desta semana, não foi exceção. Há poucas coisas mais enfadonhas do que discursos institucionais: “é importante manter a independência entre os poderes”, “todos devem seguir a Constituição”, “ninguém está acima nem abaixo da lei”. Se alguém escrevesse isso em um livro e abrisse as páginas para o céu, cairiam pássaros mortos de tédio (obrigado, Christopher Hitchens). Então vejo pouco propósito em ligar a TV para acompanhar essas cerimônias. Mas o próprio fato de ela existir, com pompa e extensa atenção pública, indica muito sobre a importância atual do Ministério Público no sistema político brasileiro.

Ao contrário do que muitos acreditam, o sistema político não colapsou, nem irá colapsar em 2018. Sim, as eleições presidenciais serão confusas e haverá, na Câmara dos Deputados, novo recorde de fragmentação partidária – mesmo que até 7 de Outubro a cláusula de barreira, limitadora das chances eleitorais de partidos recém-criados, seja aprovada). A crise, claro, é profunda. É injusto atribuir esse quadro unicamente a Rodrigo Janot e à equipe de procuradores da Lava-Jato. Antes de mais nada, os responsáveis pelos crimes são os criminosos, não os investigadores. O mandato de quatro anos de Rodrigo Janot à frente da Procuradoria-Geral da República deixa legado misto. Políticos e empresários criminosos devem ser descobertos e punidos – mas não através de acordos de colaboração premiada excessivamente generosos com quem apenas fornece áudios.

O sistema de combate à corrupção precisa ser reformado – mas não com ênfase exclusiva na parte punitiva, sem pensar na prevenção. E, finalmente, o Ministério Público não deveria ter tanta centralidade no sistema brasileiro. Trata-se de um órgão comandado por pessoas que não foram eleitas e que têm prerrogativas constitucionais mais fortes do que qualquer outro Ministério Publico no mundo. É desejável que procuradores e promotores não sejam protagonistas políticos e, muito menos, que usem seus cargos para fazer carreira política (como fez o mais relevante membro da Operação Mãos Limpas na Itália). A saída de Rodrigo Janot aumenta a probabilidade de o Ministério Público encontrar um novo lugar no sistema político – nem silente, nem protagonista.

“Equilíbrio e temperança” é o que o PSDB pede, no Facebook, para a instituição. Deveriam estar mais preocupados com a iminente prisão do senador Aécio Neves (PSDB), desequilibrado e destemperado ao pedir, em conversas interceptadas, um novo Ministro da Justiça para domar a Polícia Federal e ao confabular, com Gilmar Mendes, para limitar o poder das autoridades investigativas. Mas vale a provocação tucana: Ministérios Públicos deveriam ser “equilibrados” e agir com “temperança”? Voltemos a 1988.

Na Assembleia Constituinte que terminou naquele ano, dois grupos políticos disputavam o poder para definir as regras constitucionais: o PMDB conservador, apelidado de “Centrão” (junto com deputados do PDS e outros), e o PMDB progressista de políticos como José Serra, Mario Covas e Fernando Henrique Cardoso. (O PT ainda tinha pouquíssima relevância e o PSDB foi criado no fim da Assembleia Constituinte.) Antes de o Centrão sequestrar o processo constituinte na primeira rodada de votações em plenário, o projeto para o Ministério Publico era paradisíaco para os promotores estaduais e procuradores federais.

Além da autonomia funcional e administrativa (que acabou sendo aprovada), não havia previsão de ingerência presidencial na escolha do Procurador-Geral da Republica. Este ultimo ponto foi inventado pelo Centrão, que também desejava impor autonomia administrativa, e não funcional, para o MP. Ou seja: os políticos poderiam interferir no trabalho cotidiano do Ministério Publico influenciando, por exemplo, a escolha dos procuradores para cuidar de certos processos politicamente delicados. A definição final da Constituição resultou em empate: o Ministério Publico tem autonomia funcional, mas o presidente define, após receber lista tríplice, o Procurador-Geral da Republica.

Ao ocupar esse cargo por quatro anos, Rodrigo Janot deu protagonismo inédito para a instituição. Mas esteve longe, bem longe, de liderar reformas institucionais para melhorar o órgão. Sob sua gestão, a arrogância dos procuradores foi turbinada. Quanto mais eficazes as investigações, mais vocais alguns dos integrantes da força-tarefa se tornavam em suas críticas a qualquer coisa. (Assim como Guido Mantega e Luciano Coutinho, não tiveram comportamento contra cíclico…) Poderiam ter aproveitado o andar da carruagem para criticar os outros e também efetuar mudanças como uma regra para estabelecer um tempo mínimo para que um ex-procurador trabalhasse para instituições privadas. Isso teria evitado casos como o de Marcelo Miller, participante da Lava Jato como procurador da Republica e como conselheiro de Joesley Batista.

Houve outras oportunidades perdidas pelo Ministério Publico nos últimos tempos, ignoradas por conta do sucesso (ao menos ate Joesley aparecer) da Lava-Jato. Os procuradores acreditam, por exemplo, que a prevenção à corrupção ocorre através de palestras e campanhas de conscientização. Erradíssimos. São especialistas em investigar e punir, mas sabem quase nada sobre monitoramento e auditoria de políticas públicas. Ate aí, tudo bem. Cada um tem seu papel. Mas o diálogo com auditores é precário, apesar de todos os aplausos que alguns cientistas políticos (eu inclusive!) dão para a capacidade de órgãos de controle cooperarem. Palestras servem para nada. Os testes de integridade propostos pelo MPF como medida preventiva também são bizarros. Podem ser usados, por exemplo, para testar corrupção policial.

De cada dez motoristas que um policial rodoviário federal aborda na estrada, dois são infiltrados para “ testar sua integridade”, oferecendo-lhe propina. Situação estranha, mas ok, ate faz um pouco de sentido. Apliquemos esta solução para a corrupção em empresas estatais. O que os procuradores sugeririam? Inventar uma licitação falsa e ver, ao longo do processo, quem morde a isca? Algumas das 10 medidas contra a corrupção são tolas. Mas isso não fez parte do debate. Afinal, criticar o MPF sujeita qualquer um a ser pintado como joalheiro do Sergio Cabral.

Resumindo: gosto dos procuradores e promotores que fazem seu trabalho sem medo e de modo honesto, mas cansei do Ministério Público estilo “sou-melhor-do-que-você-e-posso-tomar-cerveja-com-quem-eu-quiser”.

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Raramente assisto transmissões de posse de cargos públicos. A de Raquel Dodge como Procuradora-Geral da Republica, no começo desta semana, não foi exceção. Há poucas coisas mais enfadonhas do que discursos institucionais: “é importante manter a independência entre os poderes”, “todos devem seguir a Constituição”, “ninguém está acima nem abaixo da lei”. Se alguém escrevesse isso em um livro e abrisse as páginas para o céu, cairiam pássaros mortos de tédio (obrigado, Christopher Hitchens). Então vejo pouco propósito em ligar a TV para acompanhar essas cerimônias. Mas o próprio fato de ela existir, com pompa e extensa atenção pública, indica muito sobre a importância atual do Ministério Público no sistema político brasileiro.

Ao contrário do que muitos acreditam, o sistema político não colapsou, nem irá colapsar em 2018. Sim, as eleições presidenciais serão confusas e haverá, na Câmara dos Deputados, novo recorde de fragmentação partidária – mesmo que até 7 de Outubro a cláusula de barreira, limitadora das chances eleitorais de partidos recém-criados, seja aprovada). A crise, claro, é profunda. É injusto atribuir esse quadro unicamente a Rodrigo Janot e à equipe de procuradores da Lava-Jato. Antes de mais nada, os responsáveis pelos crimes são os criminosos, não os investigadores. O mandato de quatro anos de Rodrigo Janot à frente da Procuradoria-Geral da República deixa legado misto. Políticos e empresários criminosos devem ser descobertos e punidos – mas não através de acordos de colaboração premiada excessivamente generosos com quem apenas fornece áudios.

O sistema de combate à corrupção precisa ser reformado – mas não com ênfase exclusiva na parte punitiva, sem pensar na prevenção. E, finalmente, o Ministério Público não deveria ter tanta centralidade no sistema brasileiro. Trata-se de um órgão comandado por pessoas que não foram eleitas e que têm prerrogativas constitucionais mais fortes do que qualquer outro Ministério Publico no mundo. É desejável que procuradores e promotores não sejam protagonistas políticos e, muito menos, que usem seus cargos para fazer carreira política (como fez o mais relevante membro da Operação Mãos Limpas na Itália). A saída de Rodrigo Janot aumenta a probabilidade de o Ministério Público encontrar um novo lugar no sistema político – nem silente, nem protagonista.

“Equilíbrio e temperança” é o que o PSDB pede, no Facebook, para a instituição. Deveriam estar mais preocupados com a iminente prisão do senador Aécio Neves (PSDB), desequilibrado e destemperado ao pedir, em conversas interceptadas, um novo Ministro da Justiça para domar a Polícia Federal e ao confabular, com Gilmar Mendes, para limitar o poder das autoridades investigativas. Mas vale a provocação tucana: Ministérios Públicos deveriam ser “equilibrados” e agir com “temperança”? Voltemos a 1988.

Na Assembleia Constituinte que terminou naquele ano, dois grupos políticos disputavam o poder para definir as regras constitucionais: o PMDB conservador, apelidado de “Centrão” (junto com deputados do PDS e outros), e o PMDB progressista de políticos como José Serra, Mario Covas e Fernando Henrique Cardoso. (O PT ainda tinha pouquíssima relevância e o PSDB foi criado no fim da Assembleia Constituinte.) Antes de o Centrão sequestrar o processo constituinte na primeira rodada de votações em plenário, o projeto para o Ministério Publico era paradisíaco para os promotores estaduais e procuradores federais.

Além da autonomia funcional e administrativa (que acabou sendo aprovada), não havia previsão de ingerência presidencial na escolha do Procurador-Geral da Republica. Este ultimo ponto foi inventado pelo Centrão, que também desejava impor autonomia administrativa, e não funcional, para o MP. Ou seja: os políticos poderiam interferir no trabalho cotidiano do Ministério Publico influenciando, por exemplo, a escolha dos procuradores para cuidar de certos processos politicamente delicados. A definição final da Constituição resultou em empate: o Ministério Publico tem autonomia funcional, mas o presidente define, após receber lista tríplice, o Procurador-Geral da Republica.

Ao ocupar esse cargo por quatro anos, Rodrigo Janot deu protagonismo inédito para a instituição. Mas esteve longe, bem longe, de liderar reformas institucionais para melhorar o órgão. Sob sua gestão, a arrogância dos procuradores foi turbinada. Quanto mais eficazes as investigações, mais vocais alguns dos integrantes da força-tarefa se tornavam em suas críticas a qualquer coisa. (Assim como Guido Mantega e Luciano Coutinho, não tiveram comportamento contra cíclico…) Poderiam ter aproveitado o andar da carruagem para criticar os outros e também efetuar mudanças como uma regra para estabelecer um tempo mínimo para que um ex-procurador trabalhasse para instituições privadas. Isso teria evitado casos como o de Marcelo Miller, participante da Lava Jato como procurador da Republica e como conselheiro de Joesley Batista.

Houve outras oportunidades perdidas pelo Ministério Publico nos últimos tempos, ignoradas por conta do sucesso (ao menos ate Joesley aparecer) da Lava-Jato. Os procuradores acreditam, por exemplo, que a prevenção à corrupção ocorre através de palestras e campanhas de conscientização. Erradíssimos. São especialistas em investigar e punir, mas sabem quase nada sobre monitoramento e auditoria de políticas públicas. Ate aí, tudo bem. Cada um tem seu papel. Mas o diálogo com auditores é precário, apesar de todos os aplausos que alguns cientistas políticos (eu inclusive!) dão para a capacidade de órgãos de controle cooperarem. Palestras servem para nada. Os testes de integridade propostos pelo MPF como medida preventiva também são bizarros. Podem ser usados, por exemplo, para testar corrupção policial.

De cada dez motoristas que um policial rodoviário federal aborda na estrada, dois são infiltrados para “ testar sua integridade”, oferecendo-lhe propina. Situação estranha, mas ok, ate faz um pouco de sentido. Apliquemos esta solução para a corrupção em empresas estatais. O que os procuradores sugeririam? Inventar uma licitação falsa e ver, ao longo do processo, quem morde a isca? Algumas das 10 medidas contra a corrupção são tolas. Mas isso não fez parte do debate. Afinal, criticar o MPF sujeita qualquer um a ser pintado como joalheiro do Sergio Cabral.

Resumindo: gosto dos procuradores e promotores que fazem seu trabalho sem medo e de modo honesto, mas cansei do Ministério Público estilo “sou-melhor-do-que-você-e-posso-tomar-cerveja-com-quem-eu-quiser”.

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