A eterna ameaça do nazismo renasceu em 2017
Sem instituições para conter ilegalidades flagrantes de qualquer um dos poderes, eventos como o holocausto podem voltar a acontecer
Publicado em 30 de dezembro de 2017 às, 09h12.
Última atualização em 3 de janeiro de 2018 às, 10h12.
Tony Hovater é um cidadão norte-americano que mora em Ohio. Tem 25 anos e trabalha como soldador. Defende teses conservadoras e apoia o presidente republicano Donald Trump. À vontade com suas posições políticas, sente-se livre para zombar de seu próprio radicalismo. Está noivo. Ganhou notoriedade por ter seu perfil publicado pelo New York Times em novembro. Tony foi escolhido pelo jornal por representar os sentimentos que ensejaram a passeata racista de Charlottesville. Choveram e-mails de protesto na redação. Como os jornalistas podiam tratar um nazista como alguém normal?! Em sua versão online, a reportagem trazia o link para comprar uma braçadeira com estampa de suástica por 20 dólares.
Mais apologético do que na defensiva, o jornal retirou o link e atenuou o título do perfil. Um leitor exaltado descreveu a morte do tio em uma câmara de gás. Nada mais justa do que sua indignação com o nazismo. Mas as duas alternativas que o New York Times poderia ter explorado – fazer um perfil extremamente crítico de Tony ou ignorar a existência de pessoas como ele – não seriam produtivas. É óbvio que nazistas são um horror. Não é tão óbvio que sejam nossos vizinhos. O bom jornalismo explora o que há de latente e, por vezes, preocupante na sociedade. Criticar seria banal; ignorar, um desserviço. É um dos temas que, em 2017, voltaram a ficar vivíssimos no debate público.
Após a Primeira Guerra Mundial, finda em novembro de 1918, nazistas eram vizinhos, colegas de trabalho, policiais, servidores públicos e estudantes alemães. Estavam por toda a parte. Insatisfeitos com a crise econômica não resolvida pelo parlamentarismo, encontraram no Partido Nazista a possibilidade de resgatar a autoestima e resolver a injustiça das reparações impostas pelos países vencedores da guerra. Sentiam-se humilhados e impotentes, os alemães. A ideia de que o massacre de seis milhões de judeus na Europa foi organizado por líderes políticos à revelia da população não se sustenta, afirma o historiador Daniel Jonah Goldhagen em seu livro seminal “Hitler’s Willing Executioners: Ordinary Germans and the Holocaust” (Random House, 1996).
A crise econômica foi fator secundário de motivação para o nazismo. Um paralelo com o Brasil nos anos oitenta pode esclarecer. Apesar da hiperinflação no fim daquela década, nenhuma raça, religião ou gênero foi considerada culpada – muito menos destacada como merecedora de morte. Pois na Alemanha dos anos trinta a hiperinflação encontrou um profundo anti-semitismo que, de acordo com Goldhagen, foi o principal driver do genocídio. O Partido Conservador alemão captou esse sentimento trinta anos antes dos nazistas. Seu programa de 1892 culpava os judeus pelos problemas do país. No início do século XX, o partido perdeu força por conta da mudança de foco do país para a política externa, e não porque os alemães se tornaram mais tolerantes com os judeus.
Antes do genocídio, a demonstração cabal de que a sociedade alemã odiava judeus ocorreu na Kristallnacht (Noite dos Cristais), como ficou conhecida a crise de violência extrema nos dias 9 e 10 de novembro de 1938. Cerca de 7.500 lojas de comerciantes judeus foram ou apropriadas à força por outros ou destruídas. Cem judeus foram espancados até a morte e 30.000 foram transportados para campos de concentração. Naquela época, conta Erik Larson em seu “In the Garden of Beasts: Love, Terror, and an American Family in Hitler’s Berlin” (Crown, 2011), agressões verbais e físicas a estrangeiros que não erguiam as mãos em Heil Hitler! eram comuns.
A Kristallnacht consolidou, para os comandados imediatos de Hitler, a noção de que a sociedade alemã estava pronta para mais violência antissemita. Pior do que isso: cidadãos comuns faziam questão de ir além do “necessário” para ostracizar o povo judaico. Matavam mesmo sabendo que não eram obrigados a fazê-lo. Goldhagen cita dezenas de exemplos, documentados em diários nos anos trinta e quarenta, de chefes nazistas oferecendo oportunidades de saída para alemães que não quisessem participar do massacre. Não houve, segundo Goldhagen, mais do que vinte recusas. Na Itália, Mussolini também culpou os judeus e incentivou os italianos a denunciarem-nos. Não foi bem-sucedido.
A discussão iniciada pelo historiador joga luz também sobre a contribuição de Hannah Arendt para entender o autoritarismo no século XX – especialmente a conclusão de sua brilhante análise (e reportagem, mais do que qualquer outra coisa) sobre Adolf Eichmann, publicada na revista The New Yorker em 1963. Ao assistir o julgamento de Eichmann em Jerusalém, Arendt espantou-se com a mediocridade do nazista. Não lhe parecia monstruoso. Tinha cara de burocrata em sua acepção mais banal: um apertador de botões, um carimbador de protocolos. Para a filósofa, Eichmann representava a “banalidade do mal”. Suas ações eram fruto de uma tendência universal de obediência à autoridade, inserida em um complexo sistema burocrático. Essa visão não é contraditória à de Goldhagen se considerarmos que o modo como governos se organizam resulta, ao menos em parte, das preocupações sociais de suas épocas.
Para que o desejo latente da sociedade alemã se concretizasse, um líder político carismático completava o quadro. Hitler não era um fanático qualquer. Era um homem doente e com excepcional capacidade para organizar pessoas em torno de suas ideias. O cerne delas, de acordo com o historiador Timothy Snyder em “Black Earth: The Holocaust as History and Warning” (Tim Dugan Books, 2015), era sua concepção biológica da política. A política resume-se à luta por recursos naturais escassos. Não há pensamento político necessário. Para Hitler, qualquer proposta teórica de sistema político – capitalista ou comunista – seria fruto de uma conspiração judaica para impor ética às relações sociais. E essa ética ignora a biologia e a natureza como fundamentos básicos das relações interpessoais. Hitler regressou, portanto, à Idade Média.
A noção de cidadania trazida pelos iluministas do século 18 foi substituída, na Alemanha dos anos trinta, pela ideia de que a competição entre indivíduos ocorre pela sobrevivência, e não por poder político. Os parâmetros morais definidos por autores como Jean-Jacques Rousseau e John Locke inexistem. Quem defende direitos civis e direitos de propriedade, na concepção de Hitler, faz parte da conspiração judaica para dominar a economia e humilhar os outros. Este argumento de Snyder é muito útil para colocar o ditador em seu devido contexto. Hitler não era apenas um ditador radical. Era também um psicopata com uma concepção atraente, para os alemães antissemitas, sobre as lutas sociais e as causas da hiperinflação do país.
Algo como o holocausto pode ocorrer novamente? Snyder acredita que sim. Seu argumento é persuasivo. A escassez de recursos naturais motivava a política de Hitler. Estava preocupado com a autossuficiência nutritiva da Alemanha. Sua luta por novos territórios tinha, portanto, dupla justificativa: eliminar os judeus do resto do mundo e garantir recursos abundantes para seu país. As mudanças climáticas do início do século XXI podem ensejar disputas mortais por terra. Sem água e comida suficiente para a população, líderes políticos poderão justificar genocídios de povos e raças “culpadas” pela escassez. Parece algo longínquo? Snyder mostra que o genocídio de Ruanda em 1994 foi mais letal em regiões nas quais havia disputa por terra entre Tutsis e Hutus. Em seu clássico “We Wish to Inform You That Tomorrow We Will be Killed With Our Families: Stories from Rwanda” (Picador, 1999), o jornalista Philip Gourevitch descreve como cidadãos comuns matavam outros a machadadas. Hitler foi desnecessário.
A boa notícia é que apenas em estados falidos os governantes fanáticos encontram condições para prosperarem. Ser ditador é condição necessária, não suficiente, para que o político fanático amealhe seguidores assassinos. Sem instituições para conter ilegalidades flagrantes de qualquer um dos poderes, nazismos serão possíveis. Cuidemos bem delas.