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A confusa geração de Otto Lara Resende

No perfil de João Goulart, o autor confessa: “Não queria a queda de Jango: queria a certeza de eleições em 1965”

GETÚLIO VARGAS: conversas com o ex-presidente aparecem em livro de perfis do jornalista Otto Lara Resende /
GETÚLIO VARGAS: conversas com o ex-presidente aparecem em livro de perfis do jornalista Otto Lara Resende /
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Sérgio Praça

Publicado em 2 de janeiro de 2018 às, 13h47.

Um jovem Otto Lara Resende, então jornalista, viu-se à frente de Getúlio Vargas para entrevistá-lo. Recorda a conversa, ocorrida em meados dos anos 40, em “O príncipe e o sabiá – e outros perfis”, reeditado pela Companhia das Letras. “A certa altura, vi-me de repente a acusar o todo-poderoso Vargas de não ter sabido usar o péssimo arbítrio para o que nos pareciam ótimas causas.”

Vargas respondeu que um ditador não pode tudo. Lara Resende refletiu: “O que me impressionou, de maneira especial, foi o fato de ele ter se referido a si mesmo como ditador. A palavra tinha (e tem) uma conotação pejorativa insuportável, injuriosa. De repente, na boca do próprio Getúlio, era quase lamento, num timbre taciturno”. No perfil de João Goulart, o autor confessa: “Não queria a queda de Jango: queria a certeza de eleições em 1965”.

Essas posições contraditórias definem a geração de Otto Lara Resende, nascido em 1922 e morto em 1992. Seu livro mostra retratos curtos, instigantes, de quase todas as grandes figuras políticas brasileiras do século XX pré-Lula sindicalista: Getúlio, Jango, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Carlos Lacerda – e, de lambuja, adiciona um Artur da Costa e Silva, ditador de dimensão inequívoca. Uma passagem deliciosa resume esta última figura. Amigo de Lara Resende, o poeta Augusto Frederico Schmidt “deliciava-se ao recitar na intimidade, com a sua bela voz redonda, um poema de Costa e Silva que começava com este insólito verso: ‘Eu sou a abelha do amor’”.

O autor fez menos graça ao relembrar a noite do AI-5, em dezembro de 1968, quando furou o pneu de seu táxi e refugiou-se no toldo de um prédio no Flamengo. Logo lembrou que era o prédio de Carlos Lacerda. Acomodou-se no escritório do polemista e sob uma chuva “fina e irônica” ouviram o deputado Renato Archer “fazer o discurso à beira do túmulo da Frente Ampla”. A Frente Ampla era, nos ensinaram no colégio, uma reunião de três líderes políticos civis que teriam disputado as eleições presidenciais de 1965 não fosse a ditadura: Jango, JK e Lacerda. A relevância do movimento foi pequena, muito menor do que a enormidade dos nomes que a compunham permite aferir.

Juscelino, aliás, é inadvertidamente exposto por Lara Resende como um político minúsculo. (Tenho birra particular com JK. Vejo a construção de Brasília como um enorme estádio de Copa do Mundo: inútil, cara e corrupta – corrupta na construção mesmo, disse-me meu avô, um dos caminhoneiros que para lá levou material para as obras.) JK levou um político francês para as obras e Lara Resende ouviu a conversa. Sentiu cheiro de potência no vocabulário do mineiro que, 15 anos antes, havia sido um belo prefeito de Belo Horizonte. JK foi, no fim das contas, o presidente que inaugurou, sozinho, a inflação no Brasil.

Na conversa com Vargas, Lara Resende menciona a possibilidade usar o “péssimo arbítrio para ótimas causas”. Três décadas depois disso, disse ter desejado a certeza das eleições de 1965, e lamentou a morte política de Lacerda, JK e Jango. No plebiscito de 1963, votou a favor do parlamentarismo, mas compreendeu os motivos de Jango para querer ser um presidente constitucionalmente forte. Não se trata de julgar Lara Resende por suas idas e vindas, de modo algum. Mas impressiona como sua geração não sabia bem o que queria. Toleravam ditaduras com propósito inclusivo (Lara Resende admite que Getúlio trouxe o Brasil ao século XX!)?

Ou preferiam democratas ávidos por um Brasil Grande, potência em infraestrutura e a distribuição de renda que se resolva depois? Foram muito ruins as escolhas daquela geração. Mas é possível que a minha – eleitora de Lula, Dilma e Temer – seja ainda pior. Nosso presidente poeta não fez o AI-5, mas designou o deputado federal Rodrigo Rocha Loures (PMDB) para receber uma mala cheia de dinheiro em seu nome. (“Um lembrete para sua mala”, disse Jânio Quadros a Otto Lara Resende. “Se não voltar com dinheiro, volte com honras”.)