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Como explicar o aumento salarial de funcionários públicos em meio a uma crise econômica?

Chocou muita gente a aprovação pela Câmara dos Deputados de correções expressivas dos salários de várias categorias de funcionários públicos federais (poder judiciário, ministério público, militares, Congresso, etc.) em pleno esforço do governo e da sociedade de reequilibrar as contas do país. Ao todo, foram 15 projetos aprovados e que seguem para votação no Senado. […]

EDUARDO CUNHA E RENAN CALHEIROS: todo processo de decisão federal depende de costuras que envolvem maioria nas duas casas legislativas / Evaristo Sa / Getty Images
EDUARDO CUNHA E RENAN CALHEIROS: todo processo de decisão federal depende de costuras que envolvem maioria nas duas casas legislativas / Evaristo Sa / Getty Images
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Ricardo Sennes

Publicado em 9 de junho de 2016 às, 12h00.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h37.

Chocou muita gente a aprovação pela Câmara dos Deputados de correções expressivas dos salários de várias categorias de funcionários públicos federais (poder judiciário, ministério público, militares, Congresso, etc.) em pleno esforço do governo e da sociedade de reequilibrar as contas do país. Ao todo, foram 15 projetos aprovados e que seguem para votação no Senado. Categorias no poder judiciário tiveram aumento de mais de 40%.

Vale ressaltar que nos últimos 10 anos houve avanços significativos no salário dos funcionários públicos federais, com aumentos acumulados de 300% para algumas categorias. Em 2005, os gastos com folha de pagamento do nível federal eram de 27% do total; hoje, estão em 39%. Ou seja, por trás desse aumento não há uma necessidade econômica urgente.

Como explicar então essa decisão? Por que não foram vistos focos significativos de resistência a ela?

A hipótese mais plausível para entender essa decisão é que o presidente e os parlamentares são muito vulneráveis a grupos de pressão bem organizados, mesmo que representem parcelas muito pequenas da população. Se tiverem alguma capacidade de afetar ou retardar decisões críticas do governo, a situação fica ainda mais dramática. No caso dessa semana foram os funcionários públicos, mas a mesma lógica se aplica a outros grupos sociais – de dentro e de fora da máquina do Estado.

Alguns fatores concorrem para que esse tipo de distorção de representatividade e de poder de influência ocorra. O primeiro deles, já tratado nessa coluna e por outros analistas, é a necessidade de formação de maiorias muito amplas para garantir a governabilidade. Todo processo de decisão federal depende de costuras que envolvem maioria nas duas casas legislativas, além de alinhamento com TCU, Procuradoria Geral, agências reguladoras, parte da própria burocracia, entre outros. O desafio permanente de construir e manter essas maiorias e alianças acaba por dar muito poder de barganha para os pequenos grupos, ainda mais se o apoio deles se constituir em voto minerva do processo, ou seja, se eles forem a soma final dos votos necessários para fechar o bloco majoritário sobre uma matéria.

Outro fator que contribui para fragilizar o processo decisório e para dar um peso desproporcional a grupos minoritários é a excessiva abrangência ou imprecisão (ou ambas) das atribuições de alguns órgãos de controle e fiscalização. Isso cria uma grande margem de discricionariedade para que seus dirigentes ajam além dos princípios que basearam a criação dos órgãos, inclusive barganhando sobre temas específicos. Grupos de interesses que se acercam e se articulam com esses órgãos logram influenciá-los a defender suas agendas e, com isso distorcer as decisões. Tomando o TCU como exemplo, em vários casos um ministro tem mais poder de influência em uma decisão do que autoridades eleitas pelo voto. E pior: sem ter os ônus da decisão escrutinados pela população. Eles detêm poder de influência e nenhuma obrigação de prestar contas.

Concorre ainda para um ambiente que dificulta o processo de decisão de grandes temas para país os inúmeros órgãos e agências com poderes de veto ou de protelação. Na mesma linha do argumento acima, esses atores ganham um peso desproporcional à sua importância na medida em que se veem no meio da cadeia de decisão ou com capacidade de chamarem para si processos decisórios específicos. Exemplos que se multiplicam nesse campo têm sido a atuação dos Tribunais de Contas não como auditores, e sim como definidores de padrões que os gestores devem adotar a priori. Esses tribunais acabam tendo mais capacidade de definir políticas públicas do que os próprios gestores do tema. Não raro, bloqueiam por anos, com argumentos alheios à matéria principal, políticas de governos eleitos por causa da agenda em questão. Mesma linha de atuação tem sido adotada por membros do Ministério Público que, articulados com grupos de interesses com ou sem representação social, adotam estratégia de bloqueio e postergação sistemática de decisões.

Por fim, atuação de grupos corporativos com capacidade de controlar recursos escassos estratégicos, como polícias, Receita Federal, carreiras do poder judiciário, entre outros, é o último fator que dificulta enormemente as decisões públicas, altera a vontade da maioria e blinda interesses de minorias politicamente articuladas. Essas corporações, quando decidem atuar em causa própria, em geral salários e gratificações, têm sido capazes de utilizar o privilégio de lidar com questões sensíveis para barganhar contra o próprio governo e a sociedade. Infelizmente vários exemplos têm sido recorrentes nos últimos anos. O mais explícito foi a operação-padrão da Receita Federal, que em plena crise no ano passado derrubou a arrecadação do país para pressionar o governo por aumento e bônus por performance. Ao final conquistaram o aumento que pleiteavam.

A somatória dos pontos levantados nos permite entender a lógica política do aumento dos funcionários públicos federais em processo de aprovação pelo Congresso Nacional. A articulação e uso sistemático desses fatores têm gerado um acúmulo de distorções no processo decisório brasileiro em favor de poucos grupos que, apesar de minoritários na sociedade, adotam estratégias políticas que lhe permitem privilégios não acessíveis ao restante da sociedade.

Essas distorções não são matéria para o atual governo, dada sua fragilidade e pouco tempo de mandato, mas certamente é tema central para o aperfeiçoamento do sistema representativo no país.

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