Uma revolução silenciosa: parcerias que transformam
A visão de governos que “faziam de tudo” ficou para trás – e isso é bom para os servidores públicos, cada vez mais dedicados a funções estratégicas
Publicado em 13 de outubro de 2021 às, 13h16.
Última atualização em 13 de outubro de 2021 às, 14h24.
Apenas 17,4% das casas do Piauí tinham acesso regular à internet, até bem pouco tempo atrás, segundo dados do IBGE. Não era um quadro muito diferente do que se passa em muitas regiões brasileiras. Áreas pouco atrativas em termos de mercado, baixo poder de consumo das famílias e o governo com sabidas limitações orçamentárias. Em um quadro como este, o que fazer? O governo optou pelo caminho da parceria. Em 2018, lançou uma PPP, captou um investidor privado e estabeleceu um contrato de 30 anos. O foco? um amplo planejamento de modernização digital do Estado. Está tudo ainda no começo, mas os resultados já vão aparecendo. Nos dois primeiros anos do contrato, a cobertura nacional de internet cresceu 22%. No Piauí, cresceu 125%.
É só um exemplo. Neste caso, o governo optou por uma parceria muito abrangente, num processo que envolve desde a instalação de infraestrutura de redes até o treinamento das pessoas. Alguém poderia imaginar que isto deveria ser feito pelo mercado, sem interferência pública; ou que é tarefa exclusiva do governo, que deveria gerenciar isto diretamente. As duas hipóteses eram irrealistas, no caso do Piauí. No fundo, este é o ponto de partida. Senso de realidade. Saber reconhecer os limites tanto de governos como do setor privado. A partir daí, o uso de um mecanismo institucional disponível a qualquer governo: a PPP. O governo garante segurança jurídica e um aporte de recursos; o setor privado entra com investimento e capacidade de gestão.
Outro exemplo vem de Porto Alegre. A cidade contava com uma rede de relógios digitais relativamente pequena, menos de 100 unidades. Relógios de rua são estratégicos, em qualquer cidade. Permitem instalar câmeras de vigilância, são base para acesso wi-fi, além de funcionar como veículo de informação. Mas custam caro e são de difícil manutenção. Foi então que a Prefeitura da cidade resolveu apostar na parceria. Desenhou uma concessão, captou mais de R$ 81 milhões de outorga, assinou um contrato de 20 anos e um compromisso para a instalação e manutenção de 168 relógios na cidade. Resultado: o que era um problema, virou solução. Ao invés de gastar, a prefeitura passou a receber. E o que era uma ideia de difícil execução se tornou uma ideia “óbvia”, depois de executada.
Governo garante serviço, mas não precisa executá-lo
Os exemplos são muitos. Em cidades de pequeno ou grande porte, País afora, há espaços com potencial cultural e turístico. É o caso da Ópera de Arame e da Pedreira Paulo Leminski, em Curitiba, e da Marina Beira-Mar, na Avenida Beira-Mar Norte, em Florianópolis. Nos dois casos, as perguntas a fazer eram parecidas: há potencial econômico e cultural? A cidade tem a ganhar com estas operações?
Caberia ao governo fazer a gestão, ou seria melhor contar com o setor privado? Curitiba fez a concessão de seus dois espaços há dez anos, em 2012. Além do pagamento da outorga, a empresa cuida dos espaços, investe na sua ampliação e entrega à cidade uma programação cultural robusta. Em Florianópolis, a parceria tem um ano. Uma atração focada no turismo náutico que se encaixa perfeitamente na vocação da cidade. A demanda veio da área empresarial. O governo topou a parada e usou a lei das concessões. Qualquer cidade pode, no limite, fazer a mesma coisa.
Há uma revolução silenciosa acontecendo na gestão pública, Brasil afora. São Paulo fez recentemente a Concessão do Parque do Ibirapuera. A empresa vencedora, além de uma outorga de mais de R$ 70 milhões, assumiu a gestão de outros cinco parques de menor atratividade econômica em diferentes regiões da cidade. A cidade obteve um recurso importante, deixa de gastar com o Parque, melhora os serviços para os usuários, e de quebra ainda “resolve” o problema de um conjunto de parques que dificilmente atrairiam investimentos isoladamente.
A chave de todos estes projetos inovadores é simples: o governo precisa garantir bons serviços, mas não precisa executar estes serviços. Governos estão passando por um processo de “desverticalização” semelhante ao que ocorreu no mercado, nas últimas décadas. A especialidade dos governos será cada vez mais prover a inteligência aos processos públicos. Planejar, regular, atrair investimentos e oferecer segurança jurídica para que o setor privado, sejam empresas ou organizações civis, possam também fazer a sua parte.
A visão antiga dos governos que “faziam de tudo”, que tentavam atender demandas dispersas da sociedade através da burocracia pública, criando autarquias, repartições, abrindo concursos, contratando mais e mais funcionários, ficou para trás. Ao contrário do que muitas vezes se imagina, isto é bom para os próprios servidores públicos. Eles ganham poder, no novo modelo. Eles irão cuidar do aspecto estratégico, da fixação de metas e do gerenciamento de contratos, ao invés da prestação rotineira de serviços. Para os cidadãos, por sua vez, os ganhos são evidentes: mais investimento e serviços gerenciados com padrão similar ao praticado no mercado competitivo.
"Mapa da Contratualização"
Foi para conhecer melhor esta “revolução silenciosa” que a Comunitas fez uma parceria com a ENAP, a Escola Nacional de Administração Pública, para a elaboração do “Mapa da Contratualização”. Na prática, um grande levantamento dos modelos de parcerias entre os setores público e privado, em todos o País, na prestação de serviços públicos. O foco, nesta etapa, foi pesquisar os estados, capitais e contratos em execução pela União.
É apenas o começo do trabalho, mas já há lições importantes sobre a mesa. Uma delas diz respeito à diversidade de opções e instrumentos legais à disposição dos gestores. Um mesmo serviço, seja um parque, um museu, uma escola ou hospital, pode ser gerido via uma Organização Social ou uma PPP. Em Belo Horizonte, há cinquenta escolas infantis gerenciadas pelo setor privado, num modelo misto em que a empresa comanda a parte operacional, permitindo aos professores da rede pública aumentarem seu foco no aspecto pedagógico. O Governo de Minas acaba de celebrar os primeiros termos de colaboração para o gerenciamento integral de três escolas estaduais, por uma organização privada, especializada e sem fins lucrativos.
Os modelos variam. A grande lição é que a reforma vem sendo feita de baixo para cima. Isto é, a partir da experiência real de quem está na ponta, buscando soluções para melhorar a vida das pessoas. É nesse sentido que ganhar relevo este outro ensinamento: é preciso apostar em transparência. O mínimo que se exige, em processos de parceria, é que as informações sobre os contratos, custos e resultados obtidos sejam abertas a toda a sociedade, em uma linguagem que as pessoas possam compreender. Há muito a aprender e a fazer. Um dos grandes desafios da democracia atual é mostrar para os cidadãos que os governos podem funcionar bem e produzir resultados. Isto exige que sejamos rigorosos com políticas públicas. É preciso demonstrar com clareza o impacto social de iniciativas, e valorizar cada real pago pelo contribuinte.
A boa notícia é que o Brasil construiu um caminho. À duras penas, forjamos boas legislações, como o recente Marco Regulatório da Sociedade Civil, de 2014, e muita coisa está mudando, no setor público. De um País de traço paternalista e que tendia a esperar quase tudo dos governos, estamos nos tornando um País com forte participação da sociedade civil nos assuntos públicos. De certo modo, estamos recuperando o tempo perdido. É assim que ser fará um grande País.
Artigo escrito em parceria com Fernando Schüler, cientista político e professor do Insper
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