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Fábrica de vacinas do Butantan: que lições ela pode nos ensinar

Com obras civis a serem finalizadas hoje, a nova fábrica de vacinas do Instituto Butantan é resultado de uma articulação entre governo e iniciativa privada

Fábrica de vacinas do Butantan, em São Paulo: financiamento com 187,8 milhões de reais captados com 41 empresas (Divulgação/Exame)
DR

Da Redação

Publicado em 25 de março de 2022 às 08h30.

Última atualização em 23 de outubro de 2024 às 17h01.

Por Regina Esteves, diretora-presidente da Comunitas, e Fernando Schuler, cientista político do Insper

A grande fronteira da gestão pública atual é o envolvimento da sociedade civil e do mercado, na resolução de problemas. O velho modelo weberiano, do Estado grande, homogêneo, burocrático, se foi. Isso não significa que os governos perderam a sua função. Significa apenas que suas funções mudaram.

A velha ideia do governo executor de tarefas e serviços deu lugar à noção de um governo que trabalha em rede, com a sociedade. Que sabe liderar processos e mobilizar recursos. Não apenas recursos financeiros. Recursos de inteligência. Isto é: buscar organizações especializadas, que sabem fazer, que aportam credibilidade a projetos complexos e trazem os cidadãos e as empresas para colaborar.

Tudo isto se viu no projeto da nova fábrica de vacinas, do Butantan . Ao invés de repetir a fórmula tradicional, pautada pelo dinheiro do orçamento, licitações e gestão estatal, o governo de São Paulo topou conduzir o processo de um jeito novo. Decidiu que os recursos seriam mobilizados a partir da sociedade. Deu certo. 75 empresas toparam participar do empreendimento. Toparam porque identificaram ali um modelo inovador. É evidente que o drama da pandemia cria um senso de urgência, convoca apoios, mas o fato é que sem modelos de governança apropriados, nada acontece.

Os investimentos atingiram, até o momento, R$ 189 milhões. Na história da filantropia brasileira, é inegavelmente uma das maiores mobilizações de recursos já realizada. Isso aponta um caminho. Havendo uma causa relevante (e há muitas), havendo um arranjo de gestão sustentável, engajamento da liderança público e privada, e confiança entre as partes, as chances de sucesso se multiplicam. E foi o que aconteceu.

Observem o arranjo de governança. A liderança coube ao governo do Estado. É este seu papel. O chamamento do governador, a clara definição de que se trata de uma prioridade, a capacidade de agregar e mobilizar parceiros. O governo atuou executivamente via a InvestSP, a Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade. A gestão institucional e técnica coube a uma instituição de longo histórico e credibilidade, que é o Instituto e Fundação Butantã.

E aqui um aspecto relevante: uma instituição que possui um braço público (o Instituto), e um braço privado sem fins lucrativos (a Fundação). Com isto, ganha agilidade na gestão de processos e serviços, em linha com muitas inovações feitas no Brasil a partir da reforma do Estado (como é o caso exemplar das organizações sociais).

Para estruturar o modelo de governança e estabelecer os elos com a sociedade civil e o universo empresarial, o governo convidou a Comunitas para participar da gestão de todo o processo. A Comunitas já é, em si mesmo, um modelo de governança compartilhada.

Nasceu do espírito dos anos 90, da ideia de que a sociedade civil deveria ter um papel de protagonismo, em políticas públicas, e ao longo do tempo firmou este perfil, com um conselho de governança plural, formado por lideranças empresariais e civis, trabalhando integralmente em rede com governos e organizações, públicas e privadas, na solução de problemas complexos que nossas cidades e estados enfrentam todos os dias.

Na governança do processo, criou-se um Conselho de Gestão, composto por representantes de entes públicos, privados e da sociedade civil. Sua formação tem um sentido político, qual seja, dar voz às partes, gerar compromissos e confiança entre as partes, e um sentido operacional. Neste plano, sua atuação se deu em comitês de recebimento de fundos, modelagem jurídica, compliance e execução da obra. A meta inicial era a captação de R$160 milhões — já passamos dos R$ 189 milhões. Sinal de que o caminho foi acertado.

O projeto da Fábrica de Vacinas nasce na pandemia, mas sua visão se projeta muito mais além. A ideia é que ele tenha alcance nacional, forte articulação externa, e se consolide como uma instituição de ponta na ciência brasileira. Seu foco será a criação de soluções múltiplas em matéria de imunizante. Por isso seu nome: Centro de Produção Multipropósito da Vacinas do Butantan (CPMV). Terá capacidade para gerar 100 milhões de doses de vacinas por ano, em uma estrutura de 7.885 metros quadrados, e vai abrigar a produção de parte dos imunizantes já desenvolvidos pelo Butantan, incluindo a CoronaVac.

O projeto inédito ajuda a quebrar a antiga ideia de que exista uma contradição entre a solução pública e a intensa participação do setor privado. A nova gestão pública veio para dizer que esta contradição não existe. Mas com uma condição: que se produza um modelo adequado de regulação e governança. Os recursos têm origem no setor privado, mas sua gestão é pública. Pública, mas não necessariamente estatal. A própria existência da Fundação Butantan, trabalhando ombro a ombro com o Instituto, sinaliza esta direção.

Outra quebra de paradigma diz respeito à ideia de que não somos um País de doadores. O Brasil ainda está muito atrás de países de matriz anglo-saxônica, com os Estados Unidos, em que a cultura da doação e do engajamento cívico está enraizada na sociedade. Mas já há sinalizações positivas nesta direção que dizem o seguinte: havendo bons projetos, as pessoas e as empresas tendem a participar.

Pode-se dizer que o Brasil vive um momento novo. Não por obra deste ou daquele governo, mas resultado de um amadurecimento da sociedade. Lentamente, vamos migrando de um modelo de governo autárquico e centralizador, ainda herdeiro do Estado Novo e do ciclo autoritário, para modelos mais flexíveis, onde o governo faz o que melhor sabe fazer, liderar, mobilizar, apresentar a visão estratégica, e aceita compartilhar responsabilidades com a sociedade civil e o setor privado.

Permite que estes setores também façam o que sabem fazer melhor: mobilizar energias, engajar os cidadãos, gerar empatia nas pessoas, além de executar a gestão de serviços com mais agilidade, como é próprio das organizações privadas. De nenhuma forma, isto retira o compromisso público das iniciativas, nem a responsabilidade última dos governos em relação ao bem-estar social. Apenas otimiza recursos. Na expressão de David Osborne e Ted Gaebler, faz com que o governo passe a navegar, ao invés de remar.

Temos uma história de sucesso para celebrar e aprender. Aprender que é possível a participação ativa das empresas, que também podemos ser uma terra de doadores, e que a governança compartilhada, bem regulada, feita da confiança entre os diferentes atores, públicos e privados, pode fazer toda a diferença.

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Por Regina Esteves, diretora-presidente da Comunitas, e Fernando Schuler, cientista político do Insper

A grande fronteira da gestão pública atual é o envolvimento da sociedade civil e do mercado, na resolução de problemas. O velho modelo weberiano, do Estado grande, homogêneo, burocrático, se foi. Isso não significa que os governos perderam a sua função. Significa apenas que suas funções mudaram.

A velha ideia do governo executor de tarefas e serviços deu lugar à noção de um governo que trabalha em rede, com a sociedade. Que sabe liderar processos e mobilizar recursos. Não apenas recursos financeiros. Recursos de inteligência. Isto é: buscar organizações especializadas, que sabem fazer, que aportam credibilidade a projetos complexos e trazem os cidadãos e as empresas para colaborar.

Tudo isto se viu no projeto da nova fábrica de vacinas, do Butantan . Ao invés de repetir a fórmula tradicional, pautada pelo dinheiro do orçamento, licitações e gestão estatal, o governo de São Paulo topou conduzir o processo de um jeito novo. Decidiu que os recursos seriam mobilizados a partir da sociedade. Deu certo. 75 empresas toparam participar do empreendimento. Toparam porque identificaram ali um modelo inovador. É evidente que o drama da pandemia cria um senso de urgência, convoca apoios, mas o fato é que sem modelos de governança apropriados, nada acontece.

Os investimentos atingiram, até o momento, R$ 189 milhões. Na história da filantropia brasileira, é inegavelmente uma das maiores mobilizações de recursos já realizada. Isso aponta um caminho. Havendo uma causa relevante (e há muitas), havendo um arranjo de gestão sustentável, engajamento da liderança público e privada, e confiança entre as partes, as chances de sucesso se multiplicam. E foi o que aconteceu.

Observem o arranjo de governança. A liderança coube ao governo do Estado. É este seu papel. O chamamento do governador, a clara definição de que se trata de uma prioridade, a capacidade de agregar e mobilizar parceiros. O governo atuou executivamente via a InvestSP, a Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade. A gestão institucional e técnica coube a uma instituição de longo histórico e credibilidade, que é o Instituto e Fundação Butantã.

E aqui um aspecto relevante: uma instituição que possui um braço público (o Instituto), e um braço privado sem fins lucrativos (a Fundação). Com isto, ganha agilidade na gestão de processos e serviços, em linha com muitas inovações feitas no Brasil a partir da reforma do Estado (como é o caso exemplar das organizações sociais).

Para estruturar o modelo de governança e estabelecer os elos com a sociedade civil e o universo empresarial, o governo convidou a Comunitas para participar da gestão de todo o processo. A Comunitas já é, em si mesmo, um modelo de governança compartilhada.

Nasceu do espírito dos anos 90, da ideia de que a sociedade civil deveria ter um papel de protagonismo, em políticas públicas, e ao longo do tempo firmou este perfil, com um conselho de governança plural, formado por lideranças empresariais e civis, trabalhando integralmente em rede com governos e organizações, públicas e privadas, na solução de problemas complexos que nossas cidades e estados enfrentam todos os dias.

Na governança do processo, criou-se um Conselho de Gestão, composto por representantes de entes públicos, privados e da sociedade civil. Sua formação tem um sentido político, qual seja, dar voz às partes, gerar compromissos e confiança entre as partes, e um sentido operacional. Neste plano, sua atuação se deu em comitês de recebimento de fundos, modelagem jurídica, compliance e execução da obra. A meta inicial era a captação de R$160 milhões — já passamos dos R$ 189 milhões. Sinal de que o caminho foi acertado.

O projeto da Fábrica de Vacinas nasce na pandemia, mas sua visão se projeta muito mais além. A ideia é que ele tenha alcance nacional, forte articulação externa, e se consolide como uma instituição de ponta na ciência brasileira. Seu foco será a criação de soluções múltiplas em matéria de imunizante. Por isso seu nome: Centro de Produção Multipropósito da Vacinas do Butantan (CPMV). Terá capacidade para gerar 100 milhões de doses de vacinas por ano, em uma estrutura de 7.885 metros quadrados, e vai abrigar a produção de parte dos imunizantes já desenvolvidos pelo Butantan, incluindo a CoronaVac.

O projeto inédito ajuda a quebrar a antiga ideia de que exista uma contradição entre a solução pública e a intensa participação do setor privado. A nova gestão pública veio para dizer que esta contradição não existe. Mas com uma condição: que se produza um modelo adequado de regulação e governança. Os recursos têm origem no setor privado, mas sua gestão é pública. Pública, mas não necessariamente estatal. A própria existência da Fundação Butantan, trabalhando ombro a ombro com o Instituto, sinaliza esta direção.

Outra quebra de paradigma diz respeito à ideia de que não somos um País de doadores. O Brasil ainda está muito atrás de países de matriz anglo-saxônica, com os Estados Unidos, em que a cultura da doação e do engajamento cívico está enraizada na sociedade. Mas já há sinalizações positivas nesta direção que dizem o seguinte: havendo bons projetos, as pessoas e as empresas tendem a participar.

Pode-se dizer que o Brasil vive um momento novo. Não por obra deste ou daquele governo, mas resultado de um amadurecimento da sociedade. Lentamente, vamos migrando de um modelo de governo autárquico e centralizador, ainda herdeiro do Estado Novo e do ciclo autoritário, para modelos mais flexíveis, onde o governo faz o que melhor sabe fazer, liderar, mobilizar, apresentar a visão estratégica, e aceita compartilhar responsabilidades com a sociedade civil e o setor privado.

Permite que estes setores também façam o que sabem fazer melhor: mobilizar energias, engajar os cidadãos, gerar empatia nas pessoas, além de executar a gestão de serviços com mais agilidade, como é próprio das organizações privadas. De nenhuma forma, isto retira o compromisso público das iniciativas, nem a responsabilidade última dos governos em relação ao bem-estar social. Apenas otimiza recursos. Na expressão de David Osborne e Ted Gaebler, faz com que o governo passe a navegar, ao invés de remar.

Temos uma história de sucesso para celebrar e aprender. Aprender que é possível a participação ativa das empresas, que também podemos ser uma terra de doadores, e que a governança compartilhada, bem regulada, feita da confiança entre os diferentes atores, públicos e privados, pode fazer toda a diferença.

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