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Sem desregulamentação, Europa pode repetir a Argentina nas próximas décadas

A ameaça da estagnação europeia frente ao crescimento americano e os ecos do caso argentino

 (Bússola/Acervo pessoal)

(Bússola/Acervo pessoal)

Publicado em 23 de abril de 2025 às 20h18.

A União Europeia (UE) e a América do Sul possuem algumas semelhanças, apesar de uma ser desenvolvida e a outra não. Suas populações são parecidas, cerca de 440 milhões de pessoas, e suas economias vêm se arrastando desde 2008. Naquele ano, o PIB da UE era muito próximo do americano: US$ 14,2 trilhões dos europeus, já excluindo o Reino Unido, contra US$ 14,8 trilhões dos EUA. Entre 2008 e 2024, porém, a diferença entre os dois saltou abruptamente. Enquanto os EUA passaram para um PIB de US$ 29,2 trilhões (+97%), a UE avançou lentamente para US$ 19,4 trilhões (+37%).

1-) PIB Americano e Europeu entre os anos de 2000 e 2023:

Fonte: Fundo Monetário Internacional, elaboração Azul Wealth Management.

O crescimento do PIB europeu entre 2008 e 2024 foi similar ao sul-americano.

 Enquanto a UE avançou 37%, a América do Sul andou 34% em dólares no mesmo intervalo. Esse é um dado sintomático. É verdade que não se pode comparar o estoque de riqueza da Europa e seus indicadores sociais com os da América do Sul, mas há valor em se analisar a dinâmica com a qual a UE está se arrastando. Embora a “foto” da Europa ainda seja muito bonita, o “filme” não está caminhando bem e parece indicar uma possibilidade real de a região perder seu status de desenvolvida.

A Argentina é um exemplo vivo de retorno ao subdesenvolvimento.

Países perderem o status de desenvolvidos não é uma impossibilidade, nem seria algo inédito. O Brasil possui um vizinho que talvez seja a única nação do planeta que conseguiu a façanha de se desenvolver, atingir níveis de renda próximos aos americanos, superiores aos do Canadá e de boa parte da Europa, mas que não se sustentaram. Nos anos 1920, a expressão “país subdesenvolvido” ainda não existia. Porém, se alguém falasse à época que a Argentina se tornaria um país problemático economicamente, com inflação descontrolada e miséria elevada, seria alvo de chacota.

2-) PIB per capita argentino e canadense ao longo do século XX (escala logarítmica):

Fonte: VELDE, F. – “Dollarization in Argentina”.

Até os anos 1930, a Argentina apresentou PIB per capita superior ao do Canadá em diversos anos. Era um país de primeiro mundo, que começou a ser sabotado quando seus políticos passaram a adotar respostas populistas nos anos subsequentes à crise global de 1929. Em vez de apresentarem diagnósticos e soluções verdadeiras para a sociedade, seus líderes optaram cada vez mais por um estatismo messiânico, com destaque para dois pilares problemáticos:

  1. Aumento do gasto público
  2. Criação descontrolada de regulações

Não cabe a este texto se aprofundar nos inúmeros exemplos que respaldam os dois pontos acima como pilares da degeneração econômica argentina, especialmente durante os governos Perón. Porém, apenas para ilustrá-los, pode-se citar algumas evidências de cada um dos itens, começando pelo gráfico abaixo, que é autoexplicativo sobre o gasto público:

3-) Resultado primário argentino não foi reconstruído após a década de 1930:

Fonte: Revista LatinFinance, “Argentina: The Price of Reform”.

Já com relação ao segundo item, pode-se citar como exemplos de regulação estatal excessiva:

  1. O Decreto 7.978/1945, que obrigava empregadores a pagar indenizações excessivas em caso de demissão (um mês de salário por ano trabalhado), mesmo em caso de dificuldades econômicas.
  2. Lei 13.512/19448, que congelava os aluguéis em níveis baixos e proibia seus aumentos mesmo em períodos de inflação elevada.
  3. A Constituição de 1949, que no seu artigo 37 proibia a demissão sem justa causa.

A combinação de gasto e regulação crescentes demora, mas eventualmente é bem-sucedida em destronar uma economia dinâmica e rica de seu status de desenvolvida. Essa mudança foi tão lenta que apenas na década de 1960 a Itália passou a Argentina em renda per capita, conforme gráfico abaixo.

4-) Comparação entre o pib per capita argentino e italiano em recorte do século XX (em dólares internacionais, ou Geary-Khamis dollars, GK$):

Fonte: LLUCH, A.; RINALDI, A.; SALVAJ, E.; VASTA, M. - “Directors and syndics in corporate networks of Latin economies: Argentina and Italy compared (1913-1990)”.

A Europa está abraçando o primeiro pilar.

Das quatro principais economias da UE remanescente (sem Reino Unido), após 2008, duas — Espanha e França — não conseguiram reconstruir seus resultados primários, e as outras duas — Alemanha e Itália — entraram para o mesmo time após a pandemia, em 2020.

5-) Resultado primário nas 4 principais economias da EU:

Fonte: Fundo Monetário Internacional, elaboração Azul Wealth Management

Porém, só o crescimento do gasto público não é suficiente para amarrar uma economia dinâmica e com moeda forte, como bem prova a Excepcionalidade Americana. No caso dos EUA, por exemplo, a despeito do fiscal desajustado hoje, há o Privilégio Exorbitante do dólar somado a um ambiente institucional extremamente livre para o capitalismo.

Nos EUA, embora o governo esteja gastando como quiser, a inciativa privada também pode fazer o que quiser.

Quando o setor privado é amarrado e os principais determinantes da atividade econômica se tornam o gasto público e a regulação, o ambiente empreendedor míngua, a fertilidade para inovações seca e a economia perde dinamismo. No final de 2024, por exemplo, o Financial Times (FT) publicou uma matéria ilustrando que — embora várias startups de IA tenham surgido na Europa — elas não prosperaram e, hoje, a região não possui nenhuma companhia avaliada em pelo menos US$ 1 trilhão, enquanto os EUA exibem várias. Ainda segundo o FT, “uma explicação comum sobre porque a Europa está atrás dos EUA é a excessiva regulação”.

Para quem achou o exemplo do controle de aluguéis argentino exagerado, hoje já existem inúmeras regulações nesse sentido na Europa. A Alemanha possui a Lei Mietpreisbremse de 2015, que limita o preço de novos aluguéis a 10% acima do aluguel local (Mietspiegel). Na Espanha, uma lei de 2023 introduziu o controle dos aluguéis em “zonas tensionadas”, limitando os reajustes a 10% do valor dos contratos anteriores e criou um índice de preços para proprietários de muitos imóveis. Na França, o controle de preços já é experimental em algumas cidades. Com base na Lei ALUR (2014) e a Lei ELAN (2018), os aluguéis são limitados por um índice de referência.

Excessos de regulação estão por toda parte na UE.

Os tentáculos da burocracia estatal não param de crescer na UE. Se você desejar iniciar um novo negócio na Alemanha, sua licença comercial poderá demorar até 120 dias para ser emitida. Se você é o dono de uma empresa francesa que está passando dificuldades e precisa demitir funcionários, boa sorte com as mais de 3.000 páginas do Code du Travali, que praticamente tornam impossível você despedir alguém. Se até Google e Amazon tiveram dificuldades recentes para ajustar sua força de trabalho na Europa, que dirá as empresas médias. Se você quiser montar sua startup de IA, fique atento à regulação. Como a própria Comissão Europeia se orgulhou em dizer: “é a primeira regulação abrangente sobre IA no mundo”. Embora não tenha grandes empresas de IA, a Europa já resolveu regular aquilo que nem possui!

A Europa está se esforçando para ficar para trás.

Parte da própria elite burocrática europeia já concorda que caminham na direção errada. Em setembro de 2024, o respeitado ex-presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, fez um extenso relatório onde reforçou que a “Inovação da Europa está sendo impedida por um lento e complexo framework regulatório”. Draghi também ressaltou que a Europa está ficando lentamente para trás e que as companhias europeias enfrentam um custo cada vez maior para cumprir com todas as regulações, e que é necessário reduzir o estoque delas.

“Nós temos muitos pesquisadores e empreendedores talentosos (na Europa) protocolando patentes. Porém, a inovação é bloqueada no próximo estágio: estamos falhando em traduzir inovação em comercialização, e companhias inovadoras que querem expandir na Europa são atrapalhadas em todas as fases por regulações inconsistentes e restritivas. Como resultado, muitos empreendedores Europeus preferem buscar recursos de capitalistas americanos e expandir no mercado americano” – Mario Draghi.

Tem se tornado comum explicar o sucesso econômico americano, e o distanciamento de seu PIB corrente do restante do mundo, incluindo da China, em anos recentes, como fruto de uma excepcionalidade. De fato, há muitas virtudes únicas no capitalismo dos EUA. Porém, o descolamento entre EUA e Europa hoje parece ser muito mais fruto de um esforço político coordenado e relevante em direção a tornar o continente mais estatal e regulado. Antes um dos centros de inovação e importância econômica do globo, a Europa caminha lentamente para o papel de coadjuvante em um novo arranjo econômico mundial, no qual a América cria, a China copia e a Europa regula.

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