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Rumo ao superávit fiscal

"É importante reconhecer a revisão do déficit esperado para o ano que vem: era de -2,20% e já recuou para -1,10% do PIB"

 (thiagonori/Getty Images)
(thiagonori/Getty Images)
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Panorama Econômico

Publicado em 13 de setembro de 2021 às, 17h35.

Por Marcelo Petersen Cypriano*

Em uma lista de livros, me deparei com Narrative Economics, de R. Shiller. O ponto é simples: previsões econômicas são difíceis e sujeitas a vieses, portanto, a compreensão da narrativa dominante ajuda a compreender melhor as previsões, e até a melhorá-las.

Algum tempo depois, li no perspicaz Faria Lima Elevator: “o sell side é o especialista em círculos e tentará te vender um quadrado alegando que é um círculo. O buy side sabe que é um quadrado, mas vai comprar por círculo porque todos estão fazendo isso e ele não pode perder para o mercado se for de fato um círculo”.

O quadrado vendido como círculo é o resultado primário do setor público consolidado neste e nos próximos anos.

É importante reconhecer a revisão do déficit esperado para o ano que vem: era de -2,20% e já recuou para -1,10% do PIB. A argumentação a seguir defende que o consenso continua errado e que novas revisões na direção de um superávit primário em 2022 se fazem necessárias. Vai mostrar também o efeito da narrativa sobre esse viés de previsão.

(Panorama Econômico/Reprodução)

As informações mais recentes

O mês de setembro trouxe os detalhes do orçamento federal enviado ao Congresso. Concordo que os parâmetros macros e a composição dos gastos em 2022 não refletem a realidade. Porém, há uma informação real: o limite constitucional de R$ 1,61 trilhão para o gasto federal em 2022.

Outra informação relevante: a receita líquida é de R$ 1,597 trilhão, portanto, o orçamento possui um déficit primário de R$ 49,6 bilhões, algo como 0,53% do PIB, após as despesas fora do teto. O relevante é estar abaixo do superávit primário dos governos regionais, atualmente em 0,92% do PIB no período de 12 meses terminado em julho.

A narrativa do déficit de -1,10% do PIB considera eventos de baixa probabilidade, entre eles o desaparecimento do superávit dos governos regionais pelo ano eleitoral.

Vemos aqui o uso de um estereótipo no lugar de evidências e probabilidades. As eleições seguintes à renegociação das dívidas estaduais, em 1997, apresentaram superávit fiscal crescente (em 2006 caiu de 1,0% para 0,8%). Somente em 2010 e 2016 houve queda do primário, mas a política em vigor era a expansão do gasto público. A União oferecia aval para captações no exterior, e havia o BNDES e a Caixa, o que não existe mais. Quem vai financiar a expansão dos gastos regionais em 2022?

(Panorama Econômico/Reprodução)

Crise e superávit

Por fim, o mais interessante é a influência da narrativa sobre o cenário para o governo federal.

Como todos sabemos, há a preponderância da visão que a inflação alta e a sua inércia exigem um aperto monetário contundente, além do estresse recente na curva de juros (pelo risco fiscal em 2022). Ambos são negativos para a atividade no curto e no médio prazo. Existem também sinais de desaceleração e a perspectiva de choque negativo na oferta de energia elétrica. O crescimento esperado para 2022 está em declínio, o que dificulta a melhora do cenário fiscal.

Sabemos que parte desse declínio vem do efeito defasado da política monetária, enquanto outra parte vem da mudança no carry do PIB do 4º trimestre para o ano seguinte, por causa da desaceleração de curto prazo. Em outras palavras, a desaceleração esperada no segundo semestre se transporta para o ano seguinte pelo ponto de partida mais baixo para a atividade.

O que falta na narrativa de déficit fiscal justificada pela falta de confiança nas instituições, baixo crescimento e a disputa eleitoral acirrada é o aumento do carry do deflator do PIB de 2020 para 2021 e, novamente, para 2022.

A análise do deflator é difícil, pois não “cointegra” bem com os índices de preços, mas o pico da inflação no atacado em 49,5% e ao consumidor em 9,7% deixam o meu best guess em 10,5% e 6,5% para 2021 e 2022, respectivamente. O valor agregado produzido no Brasil deve alcançar R$ 9,35 trilhões em 2022, segundo o consenso de crescimento e esses deflatores.

Este valor agregado promove um ajuste fiscal que não possui nada de ilusório, pois o acréscimo de R$ 1,94 trilhão sobre o PIB de 2019 produz um ganho permanente de receitas para o Tesouro Nacional. A arrecadação líquida de R$ 1,46 trilhão nos últimos 12 meses (18% do PIB) vai superar a receita de R$ 1,597 trilhão prevista no orçamento até novembro. É improvável que a arrecadação seja tão baixa em 2022 e uma âncora melhor para o cenário é de R$ 1,68 trilhão (18% do PIB), ou seja, 0,75% do PIB acima da despesa limitada pelo teto, para daí se retirar a melhor estimativa de perda de arrecadação federal com a mudança no imposto de renda ou com a soma de outros ganhos.

A narrativa das últimas semanas se concentrou nos detalhes do gasto orçado, possíveis gastos fora do teto, risco de golpe e uma suposta situação fiscal fora de controle. Passou despercebido que o gasto limitado pelo teto cresce apenas 2,1% este ano, enquanto o deflator do PIB e a arrecadação devem atingir dois dígitos.

O ajuste fiscal já aconteceu, mas a narrativa de quadrado por círculo não permitiu a sua incorporação no cenário. Quantos pontos vale o Ibovespa em 2022 com a dívida bruta em trajetória de queda?

*Marcelo Petersen Cypriano é economista-chefe e gestor da Mont Capital Asset. Entre seus interesses estão o crescimento econômico, políticas monetária e fiscal no Brasil, economia internacional, commodities, Behavioral Economics e gestão de portfólio.