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De olho na inflação americana

"O assunto do momento e grande preocupação do mercado é que tanto o FED como o governo democrata talvez estejam pesando a mão demais nos estímulos"

(Brendan Mcdermid/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 14 de junho de 2021 às 18h47.

Por Carlos Henrique Chaves Pessoa

A epidemia do coronavírus vem deixando um rastro de destruição por todo o mundo, algo que não acontecia nessas proporções desde a gripe espanhola em 1918, há mais de 100 anos atrás. Além do grave impacto sanitário, humanitário e psicológico, a COVID-19 deixa várias outras questões na mesa, que vão além da medicina.

Podemos dizer a pandemia iniciou uma verdadeira revolução na sociedade - desde mudanças nos nossos padrões de consumo, com uma explosão do e-commerce (que talvez tenha acelerado em um ano o que se projetava para cinco) aos hábitos de trabalho, como o home-office, telemedicina e reuniões à distância, reduzindo a necessidade de deslocamentos físicos e passagens aéreas para uma simples reunião virtual. Será que vamos continuar indo a congressos para 15 mil pessoas em um grande hotel?! A resposta é incerta, mas aplicativos como Zoom, Skype e Google Meet, certamente, vieram para ficar. O mundo sairá da pandemia transformado em vários aspectos, com pontos negativos, mas também, com algumas mudanças estruturais importantes e duradouras.

No mercado financeiro não foi diferente. 2020 foi um período ímpar na história, o S&P 500 caiu em uma velocidade sem tamanho, a nossa bolsa despencou de 119.500 pontos em 24 de janeiro de 2020, para tocar o patamar de 61.700 pontos em 21 de março de 2020: uma mega desvalorização de 48,36% em apenas 39 dias úteis, sem precedentes na história recente. Outros mercados sofreram em igual magnitude. O dólar por aqui engatou uma escalada quase em linha reta da faixa dos R$ 4,00 até quase chegar a R$ 6,00 em poucos dias, em meados de maio. Essa dinâmica se refletiu mundo afora também, os mercados chacoalharam e entraram em “ panic mode ”. Nesse momento, começaram a entrar em cena os bancos centrais e governos dos países para tentar conter a sangria. Uma crise inusitada, sem precedentes, e sem padrão prévio na história relacionada aos mercados.

A grande crise de 2008 já tinha deixado uma receita de bolo: políticas Keynesianas e atuantes deveriam ser implementadas. Era preciso repetir em 2020 o protocolo de 2008: acesso a crédito para empresas e pessoas, auxílio aos mais necessitados com cheques e depósitos regulares e o famoso QE ( quantitative easing ), que é a injeção de liquidez pelos bancos centrais, comprando todo tipo de ativos financeiros e imobiliários, ações, bonds, notas estruturadas, hipotecas. Era preciso injeção de liquidez e crédito. E assim foi feito, com uma magnitude sem precedentes e uma escala muito maior até mesmo que a crise de 2008.

O resultado disso tudo, todos nós já sabemos, os mercados no primeiro momento se acalmaram e logo em seguida, o câmbio começou a ceder, as bolsas subiram e paulatinamente as coisas voltaram para o seu lugar. No meio disso, tivemos uma eleição americana conturbada, com duas propostas de governo bem distintas, na qual prevaleceu a mudança e o retorno do partido democrata à Casa Branca, com a vitória de Joe Biden. Ainda com uma pitada de emoção, o partido vencedor poderia conseguir o controle das duas casas e em janeiro. Em uma disputa acirrada no estado da Georgia, os democratas conseguiram as duas casas e carta branca para iniciar o seu novo governo, sem as limitações, ponderações e negociações com o Partido Republicano.

O novo governo Biden veio com uma agenda intensa de expansão de gastos fiscais, com auxílios para todos os americanos que possuem renda familiar abaixo de US$ 75.000,00 por ano, pacote de infraestrutura e ajuda para as empresas. O mercado financeiro comentava “é dinheiro caindo dos céus”. Do outro lado, Jay Powel e o FED continuaram injetando liquidez nos mercados e ancorando a taxa de juros americana a 0% a 0,25% ao ano até setembro de 2023, com um discurso contundente em relação a manutenção dos juros nesses patamares por muito tempo e despreocupado com a inflação de curto prazo.

O assunto do momento e grande preocupação do mercado é que tanto o FED como o governo democrata talvez estejam pesando a mão demais nos estímulos. A economia americana já recuperou muito bem o seu mercado de trabalho, o PIB deve compensar o ano passado e crescer dois dígitos esse ano, as compras de casas novas e usadas explodiram, gastos no cartão de crédito também. Analistas, gestores e consultoras estão se questionando. O FED e o governo Biden vão ter que corrigir a rota e ajustar as expectativas, caso contrário um grande risco começa a pairar no ar. Se a tão comentada inflação americana vier com contundência, o mundo todo sofrerá e sentirá as suas consequências.

As opiniões para onde vai essa inflação ao longo de 2021 variam desde 4% até mesmo 6,5%, mas existe quase um consenso que temos um problema e as suas consequências podem ser importantes. O primeiro grande ponto de atenção são os títulos públicos americanos pré-fixados, principalmente o de 10 anos, o famoso T10, referência de mercado. Hoje, esse título embute um yield de 1,65% ao ano e com uma eventual escalada da inflação por lá, e não deve ficar por aí. Deve se valorizar, pois os investidores vão buscar proteção em uma taxa acima da inflação. Esse movimento pode levar o T10 a pagar bem mais que o atual (1,65% ao ano de yield); valores acima de 4% ou até mesmo 5% ao ano são possíveis. E aí começam os problemas: por que alguém investiria na bolsa americana com ela pagando um yield de 4% hoje? Por que um investidor estrangeiro aplicaria em SELIC no Brasil a uma taxa de 6% ao ano? Com um yield alto como esse, a atratividade do setor produtivo começa a diminuir e o investidor tende a deixar o dinheiro aplicado no título público mais seguro do mundo, evitando riscos.

Isso tudo pode modificar os preços dos ativos levando a bolsa americana a se ajustar, cair e consequentemente “pagar” um prêmio maior. Dependendo da magnitude da alta no T10 americano, pode-se esperar uma saída de dinheiro de emergentes para o porto seguro do T10. Ainda seria esperada uma desvalorização da moeda americana frente aos pares globais de referência, como euro, libra e franco suíço. Esse é o assunto do momento e foco de atenção de todos os participantes do mercado. Vamos ficar de olho na inflação americana!

Carlos Henrique Chaves Pessoa é CEO da Equity Vêneto Gestão de Recursos. Formado em Engenharia Mecânica pela UFMG e pós-graduado em Gestão de Negócios com ênfase em Finanças pela Fundação Dom Cabral. Atua no mercado financeiro desde 2008, sempre com foco em investimentos em renda fixa, fundos e ações.

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Por Carlos Henrique Chaves Pessoa

A epidemia do coronavírus vem deixando um rastro de destruição por todo o mundo, algo que não acontecia nessas proporções desde a gripe espanhola em 1918, há mais de 100 anos atrás. Além do grave impacto sanitário, humanitário e psicológico, a COVID-19 deixa várias outras questões na mesa, que vão além da medicina.

Podemos dizer a pandemia iniciou uma verdadeira revolução na sociedade - desde mudanças nos nossos padrões de consumo, com uma explosão do e-commerce (que talvez tenha acelerado em um ano o que se projetava para cinco) aos hábitos de trabalho, como o home-office, telemedicina e reuniões à distância, reduzindo a necessidade de deslocamentos físicos e passagens aéreas para uma simples reunião virtual. Será que vamos continuar indo a congressos para 15 mil pessoas em um grande hotel?! A resposta é incerta, mas aplicativos como Zoom, Skype e Google Meet, certamente, vieram para ficar. O mundo sairá da pandemia transformado em vários aspectos, com pontos negativos, mas também, com algumas mudanças estruturais importantes e duradouras.

No mercado financeiro não foi diferente. 2020 foi um período ímpar na história, o S&P 500 caiu em uma velocidade sem tamanho, a nossa bolsa despencou de 119.500 pontos em 24 de janeiro de 2020, para tocar o patamar de 61.700 pontos em 21 de março de 2020: uma mega desvalorização de 48,36% em apenas 39 dias úteis, sem precedentes na história recente. Outros mercados sofreram em igual magnitude. O dólar por aqui engatou uma escalada quase em linha reta da faixa dos R$ 4,00 até quase chegar a R$ 6,00 em poucos dias, em meados de maio. Essa dinâmica se refletiu mundo afora também, os mercados chacoalharam e entraram em “ panic mode ”. Nesse momento, começaram a entrar em cena os bancos centrais e governos dos países para tentar conter a sangria. Uma crise inusitada, sem precedentes, e sem padrão prévio na história relacionada aos mercados.

A grande crise de 2008 já tinha deixado uma receita de bolo: políticas Keynesianas e atuantes deveriam ser implementadas. Era preciso repetir em 2020 o protocolo de 2008: acesso a crédito para empresas e pessoas, auxílio aos mais necessitados com cheques e depósitos regulares e o famoso QE ( quantitative easing ), que é a injeção de liquidez pelos bancos centrais, comprando todo tipo de ativos financeiros e imobiliários, ações, bonds, notas estruturadas, hipotecas. Era preciso injeção de liquidez e crédito. E assim foi feito, com uma magnitude sem precedentes e uma escala muito maior até mesmo que a crise de 2008.

O resultado disso tudo, todos nós já sabemos, os mercados no primeiro momento se acalmaram e logo em seguida, o câmbio começou a ceder, as bolsas subiram e paulatinamente as coisas voltaram para o seu lugar. No meio disso, tivemos uma eleição americana conturbada, com duas propostas de governo bem distintas, na qual prevaleceu a mudança e o retorno do partido democrata à Casa Branca, com a vitória de Joe Biden. Ainda com uma pitada de emoção, o partido vencedor poderia conseguir o controle das duas casas e em janeiro. Em uma disputa acirrada no estado da Georgia, os democratas conseguiram as duas casas e carta branca para iniciar o seu novo governo, sem as limitações, ponderações e negociações com o Partido Republicano.

O novo governo Biden veio com uma agenda intensa de expansão de gastos fiscais, com auxílios para todos os americanos que possuem renda familiar abaixo de US$ 75.000,00 por ano, pacote de infraestrutura e ajuda para as empresas. O mercado financeiro comentava “é dinheiro caindo dos céus”. Do outro lado, Jay Powel e o FED continuaram injetando liquidez nos mercados e ancorando a taxa de juros americana a 0% a 0,25% ao ano até setembro de 2023, com um discurso contundente em relação a manutenção dos juros nesses patamares por muito tempo e despreocupado com a inflação de curto prazo.

O assunto do momento e grande preocupação do mercado é que tanto o FED como o governo democrata talvez estejam pesando a mão demais nos estímulos. A economia americana já recuperou muito bem o seu mercado de trabalho, o PIB deve compensar o ano passado e crescer dois dígitos esse ano, as compras de casas novas e usadas explodiram, gastos no cartão de crédito também. Analistas, gestores e consultoras estão se questionando. O FED e o governo Biden vão ter que corrigir a rota e ajustar as expectativas, caso contrário um grande risco começa a pairar no ar. Se a tão comentada inflação americana vier com contundência, o mundo todo sofrerá e sentirá as suas consequências.

As opiniões para onde vai essa inflação ao longo de 2021 variam desde 4% até mesmo 6,5%, mas existe quase um consenso que temos um problema e as suas consequências podem ser importantes. O primeiro grande ponto de atenção são os títulos públicos americanos pré-fixados, principalmente o de 10 anos, o famoso T10, referência de mercado. Hoje, esse título embute um yield de 1,65% ao ano e com uma eventual escalada da inflação por lá, e não deve ficar por aí. Deve se valorizar, pois os investidores vão buscar proteção em uma taxa acima da inflação. Esse movimento pode levar o T10 a pagar bem mais que o atual (1,65% ao ano de yield); valores acima de 4% ou até mesmo 5% ao ano são possíveis. E aí começam os problemas: por que alguém investiria na bolsa americana com ela pagando um yield de 4% hoje? Por que um investidor estrangeiro aplicaria em SELIC no Brasil a uma taxa de 6% ao ano? Com um yield alto como esse, a atratividade do setor produtivo começa a diminuir e o investidor tende a deixar o dinheiro aplicado no título público mais seguro do mundo, evitando riscos.

Isso tudo pode modificar os preços dos ativos levando a bolsa americana a se ajustar, cair e consequentemente “pagar” um prêmio maior. Dependendo da magnitude da alta no T10 americano, pode-se esperar uma saída de dinheiro de emergentes para o porto seguro do T10. Ainda seria esperada uma desvalorização da moeda americana frente aos pares globais de referência, como euro, libra e franco suíço. Esse é o assunto do momento e foco de atenção de todos os participantes do mercado. Vamos ficar de olho na inflação americana!

Carlos Henrique Chaves Pessoa é CEO da Equity Vêneto Gestão de Recursos. Formado em Engenharia Mecânica pela UFMG e pós-graduado em Gestão de Negócios com ênfase em Finanças pela Fundação Dom Cabral. Atua no mercado financeiro desde 2008, sempre com foco em investimentos em renda fixa, fundos e ações.

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