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Um pacto contra a desinformação

O atentado contra democracia brasileira no domingo não foi um evento que brotou por geração espontânea

Extremistas vandalizaram o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. (EDISON BUENO/PHOTOPRESS/ESTADÃO CONTEÚDO/Reprodução)
DR

Da Redação

Publicado em 10 de janeiro de 2023 às 15h43.

Por Marcelo Rech, presidente-executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ)

O atentado contra democracia brasileira a que o mundo assistiu no domingo, 8 de janeiro, quando uma horda de fanáticos de extrema-direita invadiu e depredou as sedes dos três poderes em Brasília não foi um evento que brotou por geração espontânea. Os milhares de baderneiros que marcharam para o coração da democracia brasileira com a intenção de estrangulá-la representam a ponta de um fenômeno de extensão global que ameaça a própria estabilidade do planeta.

Por anos, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, derrotado nas urnas em 30 de outubro, vêm sendo alimentados com teorias da conspiração, falseamentos da realidade ou simples crendices. Dos efeitos supostamente milagrosos de medicamentos contra a Covid-19 à denúncia de fraude nas urnas eletrônicas, jamais comprovada, milhões de brasileiros passaram a viver em um mundo paralelo. Neste universo do absurdo, o espírito de seita é fermentado pelas redes sociais e por grupos de mensagens. Seus seguidores são instados a ignorar ou desprezar os relatos da imprensa e acreditar sem questionamentos em seus líderes, que, por sua vez, fornecem a seus apoiadores um intoxicante coquetel de teorias estapafúrdias com rancores e medos que acabam por transformar em extremistas pessoas até então de índole e convicções moderadas e equilibradas.

No Brasil, a desordem de 8 de janeiro em Brasília foi o ápice de um movimento que começou logo após a eleição de 30 de outubro. Incentivadas por influenciadores de redes sociais, milhares de pessoas deixaram suas casas e famílias e foram viver em barracas diante de unidades militares em centenas de cidades brasileiras para pedir uma “intervenção federal contra a fraude nas urnas”.  Nem sequer os jogos da Seleção brasileira na Copa do Mundo no Catar tiveram a atenção nestes acampamentos, porque seus líderes consideravam o campeonato uma distração a seus objetivos. A expectativa desta multidão, crescentemente radicalizada pelas redes, era de que as Forças Armadas impediriam a posse de Luiz Inácio Lula da Sul na Presidência - uma fantasia na qual um alucinado fantasma do comunismo se mesclava a inexistentes ameaças à fé religiosa dos brasileiros. Foram destes acampamentos que saíram, enrolados em bandeiras e adereços verde-amarelos, os radicais que invadiram as sedes da Presidência, da Suprema Corte e do Congresso munidos de celulares que alimentavam os demais membros da seita com vídeos e transmissões ao vivo.

É possível reconhecer traços desta alucinação coletiva por quase todos os lugares, incluindo aí a invasão do Capitólio norte-americano há dois anos. Em alguns países, como na Rússia, é o próprio governo que promove uma maciça campanha de desinformação com objetivo de sustentar sua guerra na Ucrânia. Em muitos outros, organizações políticas com visões radicais ganham terreno porque também manobram emoções ao desencadear revolta e indignação sobre situações falsas ou descontextualizadas. A verdade é que nenhuma nação, por mais avançada e desenvolvida, está imune a esse vírus que corrói a verdade, a pluralidade, o respeito a opiniões adversas e, portanto, a própria convivência amistosa entre contrários, base de qualquer sociedade democrática.

Diante de tais ameaças, chegou a hora de o mundo que ainda mantem sua saúde mental intacta dar um basta a essa epidemia. Assim como as Nações Unidas trouxeram para as mesas de negociações os que têm o poder de conter o aquecimento global, a mesma ONU precisa tomar a frente do combate à desinformação por meio de um grande acordo global, autorregulamentado, que reverta o desastre anunciado.

A lógica de tal pacto é simples. O aquecimento global é a maior ameaça à saúde física da Terra. A epidemia desinformativa é a maior ameaça à saúde mental do planeta, com riscos concretos à estabilidade política e social de bilhões de pessoas. Suas potenciais consequências, que vão desde a erosão das democracias e liberdades a um confronto nuclear, são tão ou mais catastróficas do que as mudanças climáticas.

Para começar, as Nações Unidas deveriam convidar para se sentar à mesa as duas partes com poderes imediatos de conter e reverter a epidemia: as grandes plataformas de tecnologia e representantes do jornalismo profissional. Ressalve-que, no Brasil e no mundo, a nuvem tóxica das fake news se propaga no vácuo do jornalismo. A imprensa se viu forçada a uma contração diante de insuperáveis, até agora, dificuldades para criar um novo modelo econômico desde que suas receitas passaram a engordar os balanços das chamadas big techs.

O jornalismo está longe da perfeição, mas, como se viu durante a pandemia, ainda é o melhor antídoto para se valorizar as fontes confiáveis, restabelecer a verdade e fazer a verificação de versões que circulam por redes sociais e grupos de mensagem. Alguns países, como Austrália, Nova Zelândia e em breve o Canadá, têm aprovado leis que recuperam em boa medida o desequilíbrio financeiro dos veículos de comunicação e permitem a gradual reocupação dos chamados desertos de notícias, vastas regiões onde já não existem mais traços de jornalismo profissional e independente.

Embora representem um avanço, tais legislações não são uma solução alcançável para a maior parte do planeta. Em dezenas de países da América Latina, África e Ásia, especialmente, governos e parlamentos não gostariam de ver uma imprensa fortalecida, com mais pluralidade, diversidade e capacidade de investigação e, portanto, de confrontá-los em nome da defesa da sociedade.  Ao contrário, autocracias e mesmo democracias imaturas não compreendem o papel da imprensa livre e trabalham para enfraquecê-la e intimidá-la, nunca para torná-la uma voz cada vez mais sonora e independente.

A mesa em busca de um pacto também não seria uma alternativa sem percalços ou eventuais recuos, como se constata nas próprias discussões sobre os acordos relacionados ao aquecimento global. Mas, com o apoio de governos e sociedades democráticas, um grande pacto global contra a desinformação é possível. É também uma necessidade para o negócio e a própria existência das bigtechs, que sofrem ameaças constantes de controles de conteúdo e regulações externas por autocracias que nem sempre exibem as melhores intenções.

Chega, portanto, de procrastinação e de esconder a realidade, na esperança vã de uma cura  natural para a epidemia das fake news. O mundo livre ainda tem a capacidade de se indignar com motivos reais e concretos, como a insurreição em Brasília. Mas precisa criar o mais rápido possível a vacina contra a desinformação, antes que o vírus contamine muitas outras capitais do planeta.

Por Marcelo Rech, presidente-executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ)

O atentado contra democracia brasileira a que o mundo assistiu no domingo, 8 de janeiro, quando uma horda de fanáticos de extrema-direita invadiu e depredou as sedes dos três poderes em Brasília não foi um evento que brotou por geração espontânea. Os milhares de baderneiros que marcharam para o coração da democracia brasileira com a intenção de estrangulá-la representam a ponta de um fenômeno de extensão global que ameaça a própria estabilidade do planeta.

Por anos, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, derrotado nas urnas em 30 de outubro, vêm sendo alimentados com teorias da conspiração, falseamentos da realidade ou simples crendices. Dos efeitos supostamente milagrosos de medicamentos contra a Covid-19 à denúncia de fraude nas urnas eletrônicas, jamais comprovada, milhões de brasileiros passaram a viver em um mundo paralelo. Neste universo do absurdo, o espírito de seita é fermentado pelas redes sociais e por grupos de mensagens. Seus seguidores são instados a ignorar ou desprezar os relatos da imprensa e acreditar sem questionamentos em seus líderes, que, por sua vez, fornecem a seus apoiadores um intoxicante coquetel de teorias estapafúrdias com rancores e medos que acabam por transformar em extremistas pessoas até então de índole e convicções moderadas e equilibradas.

No Brasil, a desordem de 8 de janeiro em Brasília foi o ápice de um movimento que começou logo após a eleição de 30 de outubro. Incentivadas por influenciadores de redes sociais, milhares de pessoas deixaram suas casas e famílias e foram viver em barracas diante de unidades militares em centenas de cidades brasileiras para pedir uma “intervenção federal contra a fraude nas urnas”.  Nem sequer os jogos da Seleção brasileira na Copa do Mundo no Catar tiveram a atenção nestes acampamentos, porque seus líderes consideravam o campeonato uma distração a seus objetivos. A expectativa desta multidão, crescentemente radicalizada pelas redes, era de que as Forças Armadas impediriam a posse de Luiz Inácio Lula da Sul na Presidência - uma fantasia na qual um alucinado fantasma do comunismo se mesclava a inexistentes ameaças à fé religiosa dos brasileiros. Foram destes acampamentos que saíram, enrolados em bandeiras e adereços verde-amarelos, os radicais que invadiram as sedes da Presidência, da Suprema Corte e do Congresso munidos de celulares que alimentavam os demais membros da seita com vídeos e transmissões ao vivo.

É possível reconhecer traços desta alucinação coletiva por quase todos os lugares, incluindo aí a invasão do Capitólio norte-americano há dois anos. Em alguns países, como na Rússia, é o próprio governo que promove uma maciça campanha de desinformação com objetivo de sustentar sua guerra na Ucrânia. Em muitos outros, organizações políticas com visões radicais ganham terreno porque também manobram emoções ao desencadear revolta e indignação sobre situações falsas ou descontextualizadas. A verdade é que nenhuma nação, por mais avançada e desenvolvida, está imune a esse vírus que corrói a verdade, a pluralidade, o respeito a opiniões adversas e, portanto, a própria convivência amistosa entre contrários, base de qualquer sociedade democrática.

Diante de tais ameaças, chegou a hora de o mundo que ainda mantem sua saúde mental intacta dar um basta a essa epidemia. Assim como as Nações Unidas trouxeram para as mesas de negociações os que têm o poder de conter o aquecimento global, a mesma ONU precisa tomar a frente do combate à desinformação por meio de um grande acordo global, autorregulamentado, que reverta o desastre anunciado.

A lógica de tal pacto é simples. O aquecimento global é a maior ameaça à saúde física da Terra. A epidemia desinformativa é a maior ameaça à saúde mental do planeta, com riscos concretos à estabilidade política e social de bilhões de pessoas. Suas potenciais consequências, que vão desde a erosão das democracias e liberdades a um confronto nuclear, são tão ou mais catastróficas do que as mudanças climáticas.

Para começar, as Nações Unidas deveriam convidar para se sentar à mesa as duas partes com poderes imediatos de conter e reverter a epidemia: as grandes plataformas de tecnologia e representantes do jornalismo profissional. Ressalve-que, no Brasil e no mundo, a nuvem tóxica das fake news se propaga no vácuo do jornalismo. A imprensa se viu forçada a uma contração diante de insuperáveis, até agora, dificuldades para criar um novo modelo econômico desde que suas receitas passaram a engordar os balanços das chamadas big techs.

O jornalismo está longe da perfeição, mas, como se viu durante a pandemia, ainda é o melhor antídoto para se valorizar as fontes confiáveis, restabelecer a verdade e fazer a verificação de versões que circulam por redes sociais e grupos de mensagem. Alguns países, como Austrália, Nova Zelândia e em breve o Canadá, têm aprovado leis que recuperam em boa medida o desequilíbrio financeiro dos veículos de comunicação e permitem a gradual reocupação dos chamados desertos de notícias, vastas regiões onde já não existem mais traços de jornalismo profissional e independente.

Embora representem um avanço, tais legislações não são uma solução alcançável para a maior parte do planeta. Em dezenas de países da América Latina, África e Ásia, especialmente, governos e parlamentos não gostariam de ver uma imprensa fortalecida, com mais pluralidade, diversidade e capacidade de investigação e, portanto, de confrontá-los em nome da defesa da sociedade.  Ao contrário, autocracias e mesmo democracias imaturas não compreendem o papel da imprensa livre e trabalham para enfraquecê-la e intimidá-la, nunca para torná-la uma voz cada vez mais sonora e independente.

A mesa em busca de um pacto também não seria uma alternativa sem percalços ou eventuais recuos, como se constata nas próprias discussões sobre os acordos relacionados ao aquecimento global. Mas, com o apoio de governos e sociedades democráticas, um grande pacto global contra a desinformação é possível. É também uma necessidade para o negócio e a própria existência das bigtechs, que sofrem ameaças constantes de controles de conteúdo e regulações externas por autocracias que nem sempre exibem as melhores intenções.

Chega, portanto, de procrastinação e de esconder a realidade, na esperança vã de uma cura  natural para a epidemia das fake news. O mundo livre ainda tem a capacidade de se indignar com motivos reais e concretos, como a insurreição em Brasília. Mas precisa criar o mais rápido possível a vacina contra a desinformação, antes que o vírus contamine muitas outras capitais do planeta.

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