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Trump, Putin e a Literatura

Tanto na Rússia quanto nos EUA, as mensagens populistas e divisivas dos ditadores chaplinianos poderiam ser qualificadas como qualquer coisa, exceto cômicas

PUTIN E TRUMP: os paralelos entre os presidentes e a literatura (Carlos Barria/Reuters)
PUTIN E TRUMP: os paralelos entre os presidentes e a literatura (Carlos Barria/Reuters)
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Opinião

Publicado em 17 de julho de 2020 às, 15h34.

Última atualização em 17 de julho de 2020 às, 19h27.

Somos cada vez mais governados não por pessoas, mas por personagens. O reality show da presidência de Donald Trump ou o autoritarismo dos desenhos animados do governo e Vladimir Putin lembram o filme de Charlie Chaplin de 1940, O Grande Ditador. No entanto, tanto na Rússia como nos Estados Unidos – opostos polares que se tornaram imagens quase espelhadas – as mensagens populistas e divisivas dos ditadores chaplinianos poderiam ser qualificadas como qualquer coisa, exceto cômicas.

Lidar com esses absurdos e perturbadores personagens exige que pesquisemos além do cinema clássico. Precisamos da literatura, do tipo que nos lembra por que somos o que somos. Grandes histórias oferecem roteiros morais e, quando há escassez de bom senso, o que se consegue é manter o indivíduo no meio do caos e da incerteza.

No caso dos EUA, por exemplo, há o romance de Sinclair Lewis, de 1935, Não Vai Acontecer Aqui, ou o romance de Philip Roth, de 2004, The Plot Against America (A Conspiração contra os EUA). Na história alternativa de Roth sobre as eleições presidenciais de 1940 nos EUA, Charles Lindbergh, representando o Comitê “EUA em Primeiro Lugar”, desempenha o papel do populista comum. Mas, ao contrário de Lindbergh, que no romance, derrotou o presidente dos EUA Franklin D. Roosevelt, o desempenho recente de Trump apenas o deixou mais fraco e agora está dez pontos abaixo de Joe Biden, o provável candidato democrata.

Depois de insistir inúmeras vezes que o COVID-19 simplesmente “irá desaparecer”, Trump está desesperado para começar sua campanha pela reeleição. Mas seu recente comício em Tulsa, Oklahoma (o primeiro desde o início da pandemia), foi um fracasso de público. Então, promoveu outra manifestação, comemorando o Dia da Independência no Monte Rushmore, onde deu a entender que manifestantes do movimento Black Lives Matter são "pessoas intrinsecamente más".

Desde então, Trump passou a defender o indefensável: o legado racista da Confederação, que até seu próprio Partido Republicano repudiou. Tudo isso por causa dos “EUA em Primeiro Lugar”.

Enquanto isso, na Rússia, onde o autoritarismo é um modo de vida, Putin, completando 20 anos no trono do Kremlin, está se tornando um híbrido de personagens criados por Nikolai Gogol no século 19 e por Vladimir Nabokov e Evgeny Schwartz no século 20.

Depois de organizar a própria desigual e inconsistente  resposta à pandemia, o governo russo, no final de junho, repentinamente suspendeu as medidas de quarentena para realizar um desfile pelo 75º aniversário da vitória dos Aliados sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. Não importa que o Dia da Vitória tenha sido realmente em 9 de maio, o desfile foi apenas um ato de abertura do golpe de misericórdia de Putin: um fraudulento referendo em todo o país para redefinir os limites constitucionais de seus mandatos e garantir seu poder por tempo indeterminado.

Tal como Trump, Putin não estava disposto a esperar por circunstâncias mais seguras, e fez suas aparições públicas sem máscara, sabotando as mensagens de saúde pública em nome da figura de macho. Mas a impaciência de Putin é compreensível. Sua popularidade está se esvaindo rapidamente, devido ao declínio dos padrões de vida e ao fracasso de seu regime em aprovar reformas significativas. "Quando se tem Putin, a Rússia floresce", brincam os irreverentes russos, para quem a sátira das ruas tem sido um mecanismo de enfrentamento sob regimes ditatoriais.

De fato, essas zombarias muitas vezes deram origem à literatura irreverente, como a obra prima satírica de Gogol, O Inspetor Geral, na qual um funcionário de baixo escalão engana um bando de incompetentes e desastrados oficiais da cidade. O livro sempre ofereceu paralelos óbvios à ascensão de Putin ao poder. Mas, seguindo as ações mais recentes de Putin, o romance de Nabokov, de 1947, Bend Sinister (Sinistro Dobrado) é ainda mais relevante. Nabokov oferece uma visão aterrorizante da mente de um ditador, que por acaso é baixo, inseguro e vingativo.

Este mês, Ivan Safronov, ex-jornalista investigativo que no passado ajudou a expor as vendas de armas secretas e os abalos do Kremlin, foi preso sob a acusação de alta traição. Safronov, agora consultor de mídia da agência governamental Roscosmos, é acusado de revelar segredos militares à OTAN, mesmo sendo jornalista na época do suposto crime. Como ex-agente clandestino, Putin está comprometido em manter os assuntos de seu estado à vista do público a qualquer custo.

Da mesma forma, Schwartz, dramaturgo soviético que escreveu zombando de Hitler e Stalin disfarçados em contos de fadas infantis, poderia muito bem estar ridicularizando Putin. Em sua versão de A roupa nova do imperador (1934), ele oferece a narrativa familiar de um mesquinho e vaidoso tirano. Em A Sombra (1940), a sombra de um homem, procurando superdimensionar a própria importância, sub-repticiamente se apropria do poder dele. E em The Dragon (O Dragão) de 1944, um aterrorizante e covarde réptil compartilha seu profundo desejo de devorar seus inimigos.

Depois de 20 anos no poder, talvez fosse inevitável que Putin se tornasse uma caricatura literária. Como a literatura russa têm uma longa tradição de zombar e satirizar figuras políticas, a adesão de Putin a esse modelo não é surpresa. Menos esperado foi até que ponto o presidente dos Estados Unidos se assemelha às paródias russas, embora os americanos, acostumados caricaturas ou esquetes políticos formais no lendário programa de TV Saturday Night Live, ainda não tenham dominado a arte das espontâneas piadas de rua. Talvez os EUA ainda não sejam ruins o suficiente.

Ainda assim, Trump é um impostor do mesmo nível do inspetor geral de Gogol; e seu monstrinho, o procurador-geral William Barr, seria uma adição adequada a qualquer história gogoliana de corrupção moral. Trump é tão mesquinho e ignorante quanto o ditador de Nabokov, e tão cruel e mesquinho quanto qualquer um dos vilões de Schwartz.

Trump supera até Putin, que pelo menos é mais estratégico em seu exibicionismo populista. As explosões no Twitter de Trump – “Lamentável!” “Assédio presidencial!” – são como algo saído da obra do satirista do século 19 Mikhail Saltykov-Shchedrin. Em sua paródia de 1870, A história de uma cidade, Saltykov-Shchedrin descreve um funcionário da cidade apelidado de "O Pequeno Órgão", capaz de reunir apenas duas respostas para seus subordinados: “Vou Destruir” e “Não vou tolerar”.

Rude e antipático, O Pequeno Órgão emite intermináveis decretos e não admite oposição. No fim, o leitor descobre que seu cérebro era realmente um instrumento musical com apenas duas teclas.

Essas e outras obras clássicas oferecem algum consolo, lembrando-nos que há limites para o despotismo. O populismo e o auto engrandecimento não podem durar para sempre, especialmente quando a mensagem está tão em desacordo com a realidade.

Ainda assim, Saltykov-Shchedrin - cujo título original (censurado) era History of Foolsville (História da Cidade dos Tolos) – nos lembraria que o sofrimento sob o domínio de líderes ruins não é desculpa para agirmos de maneira imoral ou tola. A Rússia está profundamente atolada em seu passado ditatorial. Mas os Estados Unidos ainda são uma democracia – por enquanto. Em novembro, os americanos precisam mostrar que não estão dispostos a serem novamente governados por pequenos órgãos.

Nina L. Khrushcheva, Professora de Assuntos Internacionais na The New School, é bolsista sênior do World Policy Institute. Seu último livro (com Jefey Tayler) é  In Putin’s Footsteps: Searching for the Soul of an Empire Across Russia’s Eleven Time Zones. (Seguindo os passos de Putin: em busca da alma de um império através dos onze fusos horários da Rússia).