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Sem plano, não há gás para crescer

O recurso não renovável será a ponte para a economia de baixo carbono e a nova petroquímica, além de contribuir para universalizar a eletricidade

gás (André Valentim/ Petrobras/Reprodução)
DR

Da Redação

Publicado em 4 de julho de 2019 às 10h43.

Última atualização em 4 de julho de 2019 às 11h52.

Primo enjeitado do petróleo, o gás natural ganhou importância na mídia, no governo e no congresso nessa nova legislatura. Já estava na hora! Pelas próprias petroleiras, que o desdenharam por tempos, ele é considerado como a ponte para a transição em direção à economia de baixo carbono. Abundante no pré-sal, no mundo, o recurso experimenta uma revolução apoiada no tripé liquefação, gás de folhelho e aproveitamento químico. Diante do atraso brasileiro, não faltam motivos para que se preste atenção, mas, é mister sublinhar cuidado, precaução e precisão; afinal, ele não foi desprezado à toa.

A menor densidade energética, associada ao custo de transporte e armazenamento, determina uma significativa desvantagem comparativa frente ao petróleo. Depois da década de 1970, o progresso tecnológico tratou de reduzir a distância, mas ela ainda persiste. Os meios para movimentá-lo são delicados, caros e, acima de tudo, indivisíveis: sem gás, um gasoduto para nada serve, assim como um terminal de regaseificação ou uma unidade de tratamento; separados, os três ativos são inconcebíveis.

Para complicar, até alcançar seu uso final, ele se desloca numa extensa cadeia de adição de valor, em sucessivas etapas de transformação, com numerosas variações, alguns desvios e utilizações as mais diversas. Algumas vezes elas são concorrentes, outras, complementares, muitas vezes, fonte de energia, ou calor, algumas não. Após colocar as atividades em sequência, uma após outra, a cada elo da cadeia ocorre uma transação, com uma correspondente despesa que os economistas denominam “custo-transação”. De forma a assegurar o controle do fluxo, de evitar interrupções de qualquer natureza, a propriedade integral dos ativos (que compõem a cadeia) reduz riscos, maximiza o lucro e, portanto, viabiliza a expansão. A verticalização diminui o custo da oferta.

À valorização a cada etapa da cadeia, alia-se o ganho proporcionado pela infraestrutura em rede do negócio. Trata-se de um serviço: o acesso para uso final, não apenas a venda do produto. Ao contrário do convencional, nos serviços em rede, na oferta de mais uma unidade, o custo de fornecê-la tende a zero e o benefício de adquirir a unidade adicional tende ao infinito. Em termos práticos, o vendedor captura o comprador, não há como substituí-lo. Boa questão para o pensamento econômico do século XXI.

Tudo fica ainda mais difícil quando se considera a proteção ambiental e as mudanças climáticas, o uso do gás exige, então, planejamento minucioso. O recurso não renovável será a ponte para a economia de baixo carbono e a nova petroquímica, além de contribuir para universalizar a eletricidade. Contudo, não é panaceia, nem existe solução de pronto-uso. Além do mais, acreditar que o livre-mercado vai dar conta da defesa do consumidor e da proteção ambiental contra oligopólios articulados em cadeias não tem respaldo nem histórico, nem teórico.

Posto isto, em junho de 2019, àquele interessado no assunto, salta aos olhos a aposta na competição, sugerindo que a concorrência baixará o preço. Abstendo-se de precisar o conceito, os fundamentos teóricos e a aderência à realidade (afinal são monopólios e oligopólios, ambientes de competição imperfeita), esse tratamento da indústria do gás natural merece três críticas: é demasiadamente sintético, ignora a complexidade; é parcial, privilegia o setor elétrico; é limitado, dispensa qualquer menção à avaliação econômica das mudanças.

A busca pela transparência se revela na mais importante contribuição da proposta do governo. Não se trata de assimetria, vai além, é desinformação. Sobre custo e preços, as estatísticas são pobres, são médias que nem ponderadas são. Os valores das transações encontram-se protegidos pelo sigilo contratual. O preço de compra e venda do gás, fixado pela empresa em situação de monopólio e monopsônio, não está subordinado à regulação alguma. Pelo menos até aqui.

O monopólio e a plena concorrência são modelos simples, facilmente compreensíveis no que se refere à conduta e ao desempenho dos atores, o que não se verifica com os oligopólios, por natureza, instáveis e, quando concentrados, particularmente imprevisíveis, assim ensina a microeconomia elementar. A experiência europeia, continente dotado de larga infraestrutura, demonstra em quanto a práxis reflete a teoria: há trinta anos, eivada de tentativas, erros e acertos, a política de abertura teve impacto reduzido nos preços e no poder de mercado das empresas.

Embora essencialmente acadêmica, o que pouco ajuda hoje em dia, vale ressaltar a inquietude quanto ao conteúdo da “nova” política de gás natural, do qual pouco se sabe, mas, muito se fala. Não são conhecidas as premissas, condições, medidas, etapas, alternativas e, principalmente, a avaliação dos impactos econômicos e sociais. Em se tratando de gás natural e de suas particularidades, é um mau começo, talvez precipitado e pode acabar em nada; o que é muito ruim para o Brasil.

*Luís Eduardo Duque Dutra é Doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris XIII, Mestre em Planejamento Energético pela COPPE e Professor Adjunto da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Primo enjeitado do petróleo, o gás natural ganhou importância na mídia, no governo e no congresso nessa nova legislatura. Já estava na hora! Pelas próprias petroleiras, que o desdenharam por tempos, ele é considerado como a ponte para a transição em direção à economia de baixo carbono. Abundante no pré-sal, no mundo, o recurso experimenta uma revolução apoiada no tripé liquefação, gás de folhelho e aproveitamento químico. Diante do atraso brasileiro, não faltam motivos para que se preste atenção, mas, é mister sublinhar cuidado, precaução e precisão; afinal, ele não foi desprezado à toa.

A menor densidade energética, associada ao custo de transporte e armazenamento, determina uma significativa desvantagem comparativa frente ao petróleo. Depois da década de 1970, o progresso tecnológico tratou de reduzir a distância, mas ela ainda persiste. Os meios para movimentá-lo são delicados, caros e, acima de tudo, indivisíveis: sem gás, um gasoduto para nada serve, assim como um terminal de regaseificação ou uma unidade de tratamento; separados, os três ativos são inconcebíveis.

Para complicar, até alcançar seu uso final, ele se desloca numa extensa cadeia de adição de valor, em sucessivas etapas de transformação, com numerosas variações, alguns desvios e utilizações as mais diversas. Algumas vezes elas são concorrentes, outras, complementares, muitas vezes, fonte de energia, ou calor, algumas não. Após colocar as atividades em sequência, uma após outra, a cada elo da cadeia ocorre uma transação, com uma correspondente despesa que os economistas denominam “custo-transação”. De forma a assegurar o controle do fluxo, de evitar interrupções de qualquer natureza, a propriedade integral dos ativos (que compõem a cadeia) reduz riscos, maximiza o lucro e, portanto, viabiliza a expansão. A verticalização diminui o custo da oferta.

À valorização a cada etapa da cadeia, alia-se o ganho proporcionado pela infraestrutura em rede do negócio. Trata-se de um serviço: o acesso para uso final, não apenas a venda do produto. Ao contrário do convencional, nos serviços em rede, na oferta de mais uma unidade, o custo de fornecê-la tende a zero e o benefício de adquirir a unidade adicional tende ao infinito. Em termos práticos, o vendedor captura o comprador, não há como substituí-lo. Boa questão para o pensamento econômico do século XXI.

Tudo fica ainda mais difícil quando se considera a proteção ambiental e as mudanças climáticas, o uso do gás exige, então, planejamento minucioso. O recurso não renovável será a ponte para a economia de baixo carbono e a nova petroquímica, além de contribuir para universalizar a eletricidade. Contudo, não é panaceia, nem existe solução de pronto-uso. Além do mais, acreditar que o livre-mercado vai dar conta da defesa do consumidor e da proteção ambiental contra oligopólios articulados em cadeias não tem respaldo nem histórico, nem teórico.

Posto isto, em junho de 2019, àquele interessado no assunto, salta aos olhos a aposta na competição, sugerindo que a concorrência baixará o preço. Abstendo-se de precisar o conceito, os fundamentos teóricos e a aderência à realidade (afinal são monopólios e oligopólios, ambientes de competição imperfeita), esse tratamento da indústria do gás natural merece três críticas: é demasiadamente sintético, ignora a complexidade; é parcial, privilegia o setor elétrico; é limitado, dispensa qualquer menção à avaliação econômica das mudanças.

A busca pela transparência se revela na mais importante contribuição da proposta do governo. Não se trata de assimetria, vai além, é desinformação. Sobre custo e preços, as estatísticas são pobres, são médias que nem ponderadas são. Os valores das transações encontram-se protegidos pelo sigilo contratual. O preço de compra e venda do gás, fixado pela empresa em situação de monopólio e monopsônio, não está subordinado à regulação alguma. Pelo menos até aqui.

O monopólio e a plena concorrência são modelos simples, facilmente compreensíveis no que se refere à conduta e ao desempenho dos atores, o que não se verifica com os oligopólios, por natureza, instáveis e, quando concentrados, particularmente imprevisíveis, assim ensina a microeconomia elementar. A experiência europeia, continente dotado de larga infraestrutura, demonstra em quanto a práxis reflete a teoria: há trinta anos, eivada de tentativas, erros e acertos, a política de abertura teve impacto reduzido nos preços e no poder de mercado das empresas.

Embora essencialmente acadêmica, o que pouco ajuda hoje em dia, vale ressaltar a inquietude quanto ao conteúdo da “nova” política de gás natural, do qual pouco se sabe, mas, muito se fala. Não são conhecidas as premissas, condições, medidas, etapas, alternativas e, principalmente, a avaliação dos impactos econômicos e sociais. Em se tratando de gás natural e de suas particularidades, é um mau começo, talvez precipitado e pode acabar em nada; o que é muito ruim para o Brasil.

*Luís Eduardo Duque Dutra é Doutor em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris XIII, Mestre em Planejamento Energético pela COPPE e Professor Adjunto da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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