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Por que mulheres são melhores líderes na crise

Países como Nova Zelândia e Islândia conseguiram superar a pandemia com políticas públicas elogiáveis comandadas por mulheres

JACINDA ARDERN: “Estamos reabrindo a economia, mas não a vida social das pessoas”  (Mark Mitchell - Pool/Getty Images)
JACINDA ARDERN: “Estamos reabrindo a economia, mas não a vida social das pessoas” (Mark Mitchell - Pool/Getty Images)
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Opinião

Publicado em 26 de maio de 2020 às, 17h05.

Última atualização em 26 de maio de 2020 às, 19h41.

Enquanto muitos países continuam ainda a lidar com crescentes surtos de COVID-19, dois declararam seu término definitivamente: Nova Zelândia e Islândia. Não por acaso os governos de ambos os países são liderados por mulheres.

A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, e sua colega islandesa Katrín Jakobsdóttir receberam consideráveis elogios ​​– muito merecidos – por sua liderança durante a crise do COVID-19. Mas elas não estão sozinhas: são dez os países com melhor desempenho (em termos de testes e mortalidade) e quatro deles – Estônia, Islândia, Nova Zelândia e Taiwan – são liderados por mulheres. A chanceler alemã Angela Merkel e a primeira-ministra dinamarquesa Mette Frederiksen também foram elogiadas por sua liderança durante a pandemia.

As mulheres representam menos de 7% dos líderes mundiais, por isso é notável o fato de tantas terem se destacado durante a crise do COVID-19. Mas isso não é tudo. Alguns dos países com pior desempenho são liderados por “homens-machões” antiquados e toscos. A personalidade do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, incorpora uma masculinidade retrógrada e uma opinião machista sobre as mulheres. Além disso, ainda tachou o vírus de "um resfriado simples", ostentando que "não sentiria nada" se infectado.

No Reino Unido – que registrou o maior número de mortes por COVID-19 na Europa – o primeiro-ministro Boris Johnson também tem um histórico de comentários machistas. Assim como Bolsonaro, a primeira reação de Johnson foi minimizar a ameaça que o COVID-19 representava, embora tenha mudado de ideia após ser infectado e acabar internado em uma unidade de terapia intensiva.

A mesma coisa acontece com o presidente dos EUA, Donald Trump. Líder que chegou ao poder vangloriando-se da capacidade dos homens poderosos de ridicularizar sexualmente as mulheres – aquilo que ele e seus apoiadores entendem como "piadas de vestiário" – Trump muitas vezes usa a própria misoginia como símbolo de honra. Ele também consistentemente minimizou a crise do COVID-19, concentrando-se em "culpar a China" por permitir que o vírus se espalhasse para além de suas fronteiras.

Assim como a tendência para os estereótipos masculinos parece se correlacionar com respostas pandêmicas ruins, muitos observadores parecem acreditar que o sucesso das líderes mulheres pode estar enraizado em suas qualidades tradicionalmente "femininas", como empatia, compaixão e disposição para colaborar. A Forbes considerou o discurso televisionado da primeira-ministra norueguesa Erna Solberg para os cidadãos de seu país como um exemplo das “inovações simples e humanas” possíveis sob a liderança feminina.

A leitura deles é desatualizada, reducionista e completamente errada. Trump e sua gangue podem ser durões, mas no final das contas sua liderança é uma incompetente farsa de tagarelice, vacilação e auto engrandecimento. Por outro lado, as líderes femininas de grande desempenho foram resolutas, avaliaram as evidências, deram ouvidos a conselhos de especialistas e agiram de forma decisiva.

Seguindo o mantra "vá com tudo e chegue antes", Ardern impôs um bloqueio rígido quatro dias antes da primeira morte do COVID-19 na Nova Zelândia. A presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, introduziu mais de uma centena de medidas de saúde pública em janeiro – época em que a Organização Mundial da Saúde ainda estava em dúvida sobre a possibilidade de transmissão entre humanos.

Se características tradicionalmente "femininas" não explicam o forte desempenho das líderes femininas em tempos de crise, o que explica? A resposta pode estar relacionada ao caminho percorrido pelas mulheres no poder, geralmente mais exigente do que o encontrado pelos homens. Em particular, pode estar ligado ao fenômeno do “penhasco de vidro”, segundo o qual as mulheres são mais propensas que os homens a serem designadas para cargos de liderança “arriscados e precários”.

A teoria do penhasco de vidro começou com a constatação de que, antes de nomear homens para seus conselhos, as empresas do Índice dos 100 Mais da Bolsa de Valores publicado pelo Financial Times, apresentavam geralmente preços estáveis ​​das ações. Antes de nomear uma mulher, no entanto, essas mesmas empresas geralmente passavam por cinco meses de baixo desempenho no preço das ações. Outro estudo constatou que as empresas listadas na bolsa de valores do Reino Unido tendem a aumentar a diversidade de gênero em seus conselhos após sofrerem grandes perdas.

Tendência semelhante pode ser vista na política. Margaret Thatcher tornou-se líder de um Partido Conservador em crise e primeira-ministra após o "inverno do descontentamento". A análise documentada em arquivo sobre as eleições gerais de 2005 no Reino Unido constatou que as candidatas do Partido Conservador eram propensas a disputar cadeiras que seriam significativamente mais difíceis de se conquistar (julgadas de acordo com o desempenho do rival na eleição anterior).

Ardern também teve sua chance de ser jogada de um penhasco de vidro: tornou-se a líder do Partido Trabalhista da Nova Zelândia em 2017, depois que uma fraca votação forçou seu antecessor a renunciar. Apenas dois meses depois, ela acabou por tornar-se a primeira ministra mais jovem do país em 150 anos.

Segundo os pesquisadores, o penhasco de vidro pode aparecer porque as organizações estão mais dispostas a desafiar o status quo quando o status quo não está dando certo. A visível diferença de ter uma mulher no comando também pode tranquilizar as partes interessadas de que a mudança está acontecendo. Quanto às mulheres, é mais provável que aceitem posições de liderança em tempos de crise, porque têm menos oportunidades de chegar ao topo. Elas não podem simplesmente esperar que uma posição mais simples apareça. Parte superior do formulário.

Independentemente do motivo, o fato é que, quando uma mulher chega ao topo do poder corporativo ou político, é provável que ela tenha superado obstáculos enormes. Com os homens, isso é possível, mas não garantido. Johnson (que foi demitido de vários empregos por mentir) e Trump (com seu histórico meticulosamente documentado de fracassos nos negócios, incluindo várias falências) parecem nunca desperdiçar as segundas chances. Os caminhos desses líderes para o poder são caracterizados mais por almofadas macias do que falésias de vidro – e isso é evidente.

Embora muitos fatores estejam moldando os resultados durante a pandemia do COVID-19, a liderança é sem dúvida um dos mais importantes. Não deveria ser surpresa para ninguém que, em geral, são os líderes que já tiveram que provar que valem à pena que acabam sendo os mais eficientes. Isso muitas vezes significa que tais líderes são mulheres.

Raj Persaud é psiquiatra em Londres e autor,  juntamente com Peter Bruggen, do livro The Street-wise Guide to Getting the Best Health Mental Care (Guia Urbano Para Uma Saúde Mental Melhor).