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Por que as empresas não contratam mais pessoas trans?

A diversidade nas corporações já é comprovadamente lucrativa. Então por que não conseguimos furar a bolha?

Neon colorido (Artur Debat/Getty Images)
Neon colorido (Artur Debat/Getty Images)
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Opinião

Publicado em 18 de junho de 2020 às, 12h14.

Alguns estudos, como o da Ernst & Young (2018), comprovam que empresas que têm o quadro de funcionários e de liderança diversos têm maiores chances de crescer e de serem mais inovadoras.

Conseguimos explicar o porquê isso acontece de uma forma muito simples: a troca criativa é maior quando as vivências são diferentes. Se todas as pessoas têm perfis parecidos, seus repertórios são parecidos.

Se elas moram nos mesmos bairros, estudam nas mesmas escolas, viajam para os mesmos destinos, frequentam os mesmos bares e restaurantes, compram nas mesmas lojas, têm a mesma cor de pele, a mesma orientação sexual e identidade de gênero, elas tendem a pensar de um jeito muito parecido. Então, a troca criativa entre essas pessoas tende a ser bastante limitada porque elas fazem parte da mesma bolha.

Quando misturamos pessoas que têm características físicas, histórias de vida, experiências e formações bastante diferentes entre si - e criamos um ambiente respeitoso - alimentamos uma grande potência criativa.

Mas essa potência criativa incomoda. Incomoda porque você vai ter que rever alguns processos que podem ser excludentes. Vai ter que repreender alguns comportamentos que antes não eram vistos como problemáticos. Vai ter que rever algumas políticas e benefícios para que sejam mais inclusivos. E muito provavelmente vai ter que rever o seu processo de contratação e como acontecem as progressões de carreira.

Na minha experiência profissional eu já vi muita empresa dando cabeçada pra conseguir implementar a diversidade de um jeito efetivo e não só como um projeto "pra inglês ver". É difícil implementar porque é preciso sair da zona de conforto. É preciso desfazer a pose de grande salvador das minorias e ser humilde, saber escutar.

A própria Ernst & Young, em um de seus artigos mais recentes sobre diversidade propõe a chamada mentoria reversa (ou Reverse Mentoring). Sabe o que é isso? Colocar pessoas de gerações mais novas, que fazem parte de grupos identitários ou minorizados, como LGBTQI+, pessoas negras, PCDs, para ENSINAR os funcionários mais velhos. Imagina só uma empresa que consiga ter a humildade de aceitar que a estagiária tem muita coisa valiosa para ensinar à diretoria?

Eu não te contei até aqui, mas eu sou uma pessoa trans. Noventa por cento das pessoas trans no Brasil estão na prostituição. Eu tenho uma baita sorte de fazer parte dos 10% privilegiados que conseguem empregos formais. E o que me incomoda é justamente isso: não deveria ser um privilégio.

As pessoas trans podem não ter o melhor currículo porque normalmente são expulsas de casa, das escolas, das faculdades. Então se a sua empresa não conseguir rever o processo de contratação vai ser muito difícil que um de nós consiga entrar.

É preciso que as empresas entendam que a porta precisa mudar para que novas pessoas entrem. O processo de contratação precisa ser revisto para nos incluir. E a gente entrar não é um favor que a sua empresa nos faz. É um favor que nós fazemos à sua empresa, para que ela se torne menos normativa e mais criativa. É preciso ir além de criar um ambiente acolhedor para os seus funcionários já contratados. Temos que entender por qual razão quem está fora não consegue entrar.

Se a sua empresa contrata apenas olhando onde o candidato estudou, qual é o nível de inglês e em quais países aquela pessoa já morou, sinto lhe dizer mas você está contratando sempre as mesmas pessoas que fazem parte da mesma bolha. E é a sua empresa que está correndo um risco enorme de se tornar cada vez menos relevante e criativa. Ainda mais no contexto atual onde os erros são cada vez menos tolerados e não tem mais espaço para qualquer ação que seja excludente, antiquada ou preconceituosa.

Eu vou te contar uma coisa que pode ser um choque: o que a maioria das empresas acha importante em um currículo PODE SER COMPRADO. É isso mesmo que você leu, um currículo é literalmente comprado. Você já pensou nisso? O curso de inglês tem um preço, a graduação na faculdade renomada tem um preço, o intercâmbio tem um preço. Para que a sua empresa seja realmente inclusiva, é preciso entender que a maioria dos brasileiros não consegue comprar o currículo que você exige.

As empresas precisam começar a valorizar o que realmente importa, que são as competências que não têm preço. Senso de coletividade, empatia, habilidade de trabalhar em grupo, desenvoltura para se comunicar, maturidade emocional e muitas outras características que são essenciais para desenvolver um bom trabalho não estão na grade curricular de nenhuma faculdade renomada. São características conquistadas ao longo da vida e são bastante presentes em grupos não-normativos como nós, pessoas trans.

O diploma de inglês, da faculdade e o intercâmbio, caso sejam de extrema importância para a empresa, podem ser adquiridos através de um programa de formação custeado pela própria empresa. E acredite que esse investimento pode ser bem menor do que o prejuízo que pode acontecer se a sua empresa perder a relevância para o seu público ou for vista como preconceituosa.

E por último eu queria te convidar a pensar o que é a diversidade. Quando falamos sobre grupos minoritários, na verdade estamos falando da grande maioria da população. Nós somos um país com mais da metade da população negra, mais da metade da população é composta por mulheres, pelo menos 1 em cada 10 pessoas são LGBTQI+, quase 7% da nossa população é formada por pessoas com deficiência e esses são só alguns dados de muitos outros. Olhando por esse lado a norma é, na verdade, o menor grupo e o que mais ocupa espaço dentro das empresas: homens brancos hétero-cis de classe média-alta.

Para uma empresa viver de fato a diversidade, é preciso que pessoas não-normativas estejam presentes na liderança e no quadro de funcionários de forma significativa, não só um representante de cada "minoria". Então fica aqui a minha pergunta: Quantos homens brancos hetero-cis de classe média-alta vão ceder seus lugares para que a gente possa entrar?

Luca Scarpelli é publicitário, consultor e dono do canal Transdiário. É formado em Comunicação Social, pós-graduado em estratégia digital e especialista em processos criativos.