Opinião: por que a vacinação privada pode virar problema público
Setor empresarial brasileiro deveria se engajar maciçamente em iniciativas para ajudar na logística e comunicação de vacinas
Thiago Lavado
Publicado em 2 de abril de 2021 às 14h51.
Última atualização em 7 de abril de 2021 às 07h03.
O presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arthur Lira, declarou o seu apoio ao projeto de compra de vacinas pelo setor privado com a seguinte afirmação: “A iniciativa privada pode ter uma agilidade por outros caminhos que possam trazer outras vacinas para o Brasil. Qualquer brasileiro vacinado neste momento é um a menos na estatística que pode correr risco de contrair o novo vírus“. O projeto tem como grande patrono o empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan e que carrega uma grande simbologia política no Brasil.
Antes de embarcarmos na defesa da ideia, que pode ter certo apelo das soluções simples para problemas complexos — um estado de espírito que parece ter virado endêmico no Brasil — é fundamental refletir sobre os desdobramentos da potencial autorização em face da nossa realidade estrutural. Para fazer essa análise, vou deixar de lado considerações de justiça social, e outras no campo da ética, que são importantes, mas demasiadamente complexas e seria necessário um longo artigo dedicado apenas ao tema. A esse respeito, não vou comentar sobre os potenciais impactos de não seguir a ordem de vacinação pelo grau de vulnerabilidade, pois é uma questão para especialistas. Neste artigo vou me restringir às questões objetivas dos riscos de origem e, por conseguinte, da eficiência das vacinas.
Nessa linha de análise pragmática, não podemos imaginar apenas os potenciais efeitos positivos na luta pela volta a alguma normalidade que essa liberação poderia ter ao acelerar a vacinação. É imperioso considerar também o risco potencial de descontrole nas origens das vacinas: não podemos fechar os olhos à possibilidade de ter milhares de empresas de todos os portes buscando distribuidores e intermediários de toda espécie. Vejamos o caso recente de um grupo de empresários em Minas Gerais, que, segundo a Polícia Federal, podem ter comprado vacinas falsas para uso neles próprios e nos amigos.
A opção de fazer uma lei que restrinja o porte da empresa que se qualificaria para usufruir da autorização — ou limitar de quem poderia comprar, como por exemplo só de fabricantes ou distribuidores nomeados por estes — não é de aplicação factível. Conhecemos a realidade brasileira para ter um bom grau de certeza de que teríamos incontáveis liminares autorizando exceções. Importante destacar que liminares de liberação para compra e uso privado já estão acontecendo, baseadas em lei já aprovada que autoriza a compra pelo setor privado, desde que 100% fosse doado ao SUS. Isso mostra o risco de abrirmos brechas em um assunto de relevância existencial para o País.
Rapidamente uma parte significativa das vacinas compradas por meio dessa autorização viria por meios de “outros caminhos”, como abertamente destacou o presidente da Câmara, como sendo o objetivo da lei. Diante desse risco, não é desprezível o cenário de termos uma parte da população vacinada com doses falsas, ou verdadeiras, mas eventualmente com problemas de efetividade por terem sofridos armazenagem e transporte inadequado. Isso seria um desastre sem proporções, não só em vidas, mas em ter que identificar e revacinar essas pessoas, além do potencial explosivo de corrosão da nossa já combalidíssima imagem no exterior. Seria péssimo o setor privado ser envolvido diretamente nesse viés de imagem negativa.
A Indonésia e as Filipinas, até agora, parecem ser os únicos países de grande porte que flertam com essa possibilidade de compra de vacinas pelo setor privado, entretanto os dois programas têm restrições. Na Indonésia é preciso a empresa se inscrever previamente e o governo vai monitorar as importações. Nas Filipinas, o Ministério de Saúde e a Força-Tarefa Nacional contra COVID-19 esclareceram há 15 dias que “as empresas do setor privado têm permissão para adquirir vacinas, desde que celebrem acordos tripartidos com o Governo Nacional das Filipinas e os fabricantes de vacinas”. Ou seja, pode comprar, mas o governo participa da compra e assina o contrato junto. Isso daria muito mais garantia da origem, mas, claro, não resolve o problema da agilidade. Lembrando que existem problemas em que é impossível resolver satisfatoriamente o equilíbrio para duas variáveis.
Ao invés de flertar com essa perigosa aventura, o setor empresarial brasileiro deveria se engajar mais maciçamente em iniciativas como o Unidos pela Vacina, comandado por Luiza Trajano, e que ajuda na logística e comunicação, e explorar a colaboração conjunta com entidades como a GAVI, Aliança pela Vacinas, uma entidade não governamental responsável pela COVAX e que é presidida pelo ex-presidente da Comunidade Europeia José Manuel Barroso, um grande amigo do Brasil. Tem-se percebido que o segredo do sucesso no enfrentamento do COVID são ações coordenadas e conectadas internacionalmente, e não o voluntarismo. O que funciona são parcerias entre o governo e o setor privado, mas sem que o primeiro abra mão da função de garantir a segurança sanitária no seu território.
A GAVI existe há pouco mais de vinte anos e nesse período vacinou quase um bilhão de pessoas no mundo. Entre 2000 e 2020, arrecadou um pouco mais de USD 20 bilhões de governos e entidades privadas, sendo que o Brasil contribuiu com apenas USD 3 milhões, ou 0,015%, e só com fundos públicos. É hora de um maior engajamento do empresariado nacional sim, mas de forma consistente e estruturada.
*Paulo Dalla Nora Macedo é economista, investidor em inovação e vice-presidente do Instituto Política Viva
O presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arthur Lira, declarou o seu apoio ao projeto de compra de vacinas pelo setor privado com a seguinte afirmação: “A iniciativa privada pode ter uma agilidade por outros caminhos que possam trazer outras vacinas para o Brasil. Qualquer brasileiro vacinado neste momento é um a menos na estatística que pode correr risco de contrair o novo vírus“. O projeto tem como grande patrono o empresário Luciano Hang, dono das lojas Havan e que carrega uma grande simbologia política no Brasil.
Antes de embarcarmos na defesa da ideia, que pode ter certo apelo das soluções simples para problemas complexos — um estado de espírito que parece ter virado endêmico no Brasil — é fundamental refletir sobre os desdobramentos da potencial autorização em face da nossa realidade estrutural. Para fazer essa análise, vou deixar de lado considerações de justiça social, e outras no campo da ética, que são importantes, mas demasiadamente complexas e seria necessário um longo artigo dedicado apenas ao tema. A esse respeito, não vou comentar sobre os potenciais impactos de não seguir a ordem de vacinação pelo grau de vulnerabilidade, pois é uma questão para especialistas. Neste artigo vou me restringir às questões objetivas dos riscos de origem e, por conseguinte, da eficiência das vacinas.
Nessa linha de análise pragmática, não podemos imaginar apenas os potenciais efeitos positivos na luta pela volta a alguma normalidade que essa liberação poderia ter ao acelerar a vacinação. É imperioso considerar também o risco potencial de descontrole nas origens das vacinas: não podemos fechar os olhos à possibilidade de ter milhares de empresas de todos os portes buscando distribuidores e intermediários de toda espécie. Vejamos o caso recente de um grupo de empresários em Minas Gerais, que, segundo a Polícia Federal, podem ter comprado vacinas falsas para uso neles próprios e nos amigos.
A opção de fazer uma lei que restrinja o porte da empresa que se qualificaria para usufruir da autorização — ou limitar de quem poderia comprar, como por exemplo só de fabricantes ou distribuidores nomeados por estes — não é de aplicação factível. Conhecemos a realidade brasileira para ter um bom grau de certeza de que teríamos incontáveis liminares autorizando exceções. Importante destacar que liminares de liberação para compra e uso privado já estão acontecendo, baseadas em lei já aprovada que autoriza a compra pelo setor privado, desde que 100% fosse doado ao SUS. Isso mostra o risco de abrirmos brechas em um assunto de relevância existencial para o País.
Rapidamente uma parte significativa das vacinas compradas por meio dessa autorização viria por meios de “outros caminhos”, como abertamente destacou o presidente da Câmara, como sendo o objetivo da lei. Diante desse risco, não é desprezível o cenário de termos uma parte da população vacinada com doses falsas, ou verdadeiras, mas eventualmente com problemas de efetividade por terem sofridos armazenagem e transporte inadequado. Isso seria um desastre sem proporções, não só em vidas, mas em ter que identificar e revacinar essas pessoas, além do potencial explosivo de corrosão da nossa já combalidíssima imagem no exterior. Seria péssimo o setor privado ser envolvido diretamente nesse viés de imagem negativa.
A Indonésia e as Filipinas, até agora, parecem ser os únicos países de grande porte que flertam com essa possibilidade de compra de vacinas pelo setor privado, entretanto os dois programas têm restrições. Na Indonésia é preciso a empresa se inscrever previamente e o governo vai monitorar as importações. Nas Filipinas, o Ministério de Saúde e a Força-Tarefa Nacional contra COVID-19 esclareceram há 15 dias que “as empresas do setor privado têm permissão para adquirir vacinas, desde que celebrem acordos tripartidos com o Governo Nacional das Filipinas e os fabricantes de vacinas”. Ou seja, pode comprar, mas o governo participa da compra e assina o contrato junto. Isso daria muito mais garantia da origem, mas, claro, não resolve o problema da agilidade. Lembrando que existem problemas em que é impossível resolver satisfatoriamente o equilíbrio para duas variáveis.
Ao invés de flertar com essa perigosa aventura, o setor empresarial brasileiro deveria se engajar mais maciçamente em iniciativas como o Unidos pela Vacina, comandado por Luiza Trajano, e que ajuda na logística e comunicação, e explorar a colaboração conjunta com entidades como a GAVI, Aliança pela Vacinas, uma entidade não governamental responsável pela COVAX e que é presidida pelo ex-presidente da Comunidade Europeia José Manuel Barroso, um grande amigo do Brasil. Tem-se percebido que o segredo do sucesso no enfrentamento do COVID são ações coordenadas e conectadas internacionalmente, e não o voluntarismo. O que funciona são parcerias entre o governo e o setor privado, mas sem que o primeiro abra mão da função de garantir a segurança sanitária no seu território.
A GAVI existe há pouco mais de vinte anos e nesse período vacinou quase um bilhão de pessoas no mundo. Entre 2000 e 2020, arrecadou um pouco mais de USD 20 bilhões de governos e entidades privadas, sendo que o Brasil contribuiu com apenas USD 3 milhões, ou 0,015%, e só com fundos públicos. É hora de um maior engajamento do empresariado nacional sim, mas de forma consistente e estruturada.
*Paulo Dalla Nora Macedo é economista, investidor em inovação e vice-presidente do Instituto Política Viva