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Os derradeiros momentos dos Estados Soviéticos da América

Como as estátuas de Lenin durante o colapso do império soviético, as estátuas dos líderes confederados estão sendo derrubadas em quase todos os lugares

EUA: o país enfrentou semanas de manifestações diárias depois do assassinato de George Floyd. (Jonathan Drake/Reuters)
EUA: o país enfrentou semanas de manifestações diárias depois do assassinato de George Floyd. (Jonathan Drake/Reuters)
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Opinião

Publicado em 7 de julho de 2020 às, 18h16.

Última atualização em 7 de julho de 2020 às, 21h45.

A União Soviética foi terreno fértil para piadas políticas, que se destacavam tanto na cultura quanto nas comédias televisivas noturnas nos Estados Unidos. Segundo uma história popular, um jovem que gritou na Praça Vermelha que o decrépito líder soviético Leonid Brezhnev era um idiota acabou sendo condenado a vinte e cinco anos e seis meses de prisão – seis meses por insultar o comandante supremo do Governo Soviético, e vinte e cinco anos por ter revelado segredos de estado.

A furiosa reação do governo Trump a um novo livro do ex-Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, seguiu roteiro semelhante. O livro é considerado perigoso, não tanto porque insulta trump, mas porque revela que o presidente é profundamente incompetente e "surpreendentemente desinformado". Se já não era óbvio, o mundo inteiro agora sabe que os EUA carecem de orientação estratégica e de coerente liderança executiva.

De fato, muitos aspectos do atual annus horribilis dos Estados Unidos lembram os anos finais da União Soviética, a começar pela intensificação dos conflitos sociais e políticos. No caso soviético, as rivalidades étnicas há muito suprimidas e concorrentes aspirações nacionais subiram rapidamente à superfície, empurrando o país inteiro para a violência, a secessão e a desintegração. Nos EUA, a resposta de Trump aos protestos nacionais contra o racismo, a brutalidade policial e a desigualdade tem sido piorar ainda mais a histórica divisão racial do país. E, como as estátuas de Lenin durante o colapso do império soviético, as estátuas dos líderes confederados estão sendo derrubadas em quase todos os lugares.

Outro paralelo diz respeito à economia. A União Soviética possuía um grande e complicado aparato de planejamento e alocação de recursos que atraía as pessoas mais instruídas da sociedade, apenas para transferi-los para atividades improdutivas e frequentemente destrutivas. Os EUA têm Wall Street. Certamente, o vasto setor de serviços financeiros dos EUA não é equivalente ao Gosplan (Comissão Soviética de Planejamento do Estado), mas frequentemente extrai valor em vez de criá-lo e, portanto, inevitavelmente fará parte de qualquer debate sobre alocação de recursos.

Até o momento em que o sistema soviético entrou em colapso, pouquíssimos pensaram que isso poderia realmente acontecer. Ao avaliar o estado do sistema americano, é importante lembrar que os economistas não são muito bons em previsões. Toda a disciplina baseia-se na extrapolação das condições contemporâneas na suposição de que os fundamentos estruturais do que está sendo analisado não serão alterados. Sabendo muito bem que essa é uma suposição irreal e absurda, os economistas geralmente imitam os teólogos medievais, vestindo seus prognósticos em jargão e linguagem arcanas. Não é necessário conhecer o latim para invocar ceteris paribus ("todo o resto sem alterações") como premissa das previsões.

Dada essa prática padrão, devemos prestar muita atenção às previsões contra intuitivas de longo prazo que efetivamente se confirmam. No final da década de 1960, o economista Robert A. Mundell fez três previsões: que a União Soviética se desintegraria; que a Europa adotaria uma moeda única; e que o dólar manteria seu status como moeda internacional dominante. Considerando-se que o sistema de valor nominal (padrão-ouro) entrou em colapso logo depois, desencadeando uma depreciação do dólar, essas pareciam previsões malucas. Mas Mundell demonstrou estar certo nas três previsões.

Mas as circunstâncias às quais o dólar deve sua hegemonia de longa data agora estão mudando. A pandemia do COVID-19 está levando a uma forma mais digitalizada de globalização. Enquanto cai o movimento internacional de pessoas e bens, as informações estão hoje fluindo como nunca, inaugurando uma economia cada vez mais ágil.

Além disso, nos últimos três anos e meio, o governo Trump tem incitado a uma definitiva reação contra a própria armamentização do dólar para fins políticos. As sanções financeiras e secundárias foram altamente eficazes em sua forma original, quando dirigidas contra pequenos e isolados maus protagonistas como a Coréia do Norte. Mas sua implantação mais abrangente contra empresas do Irã, da Rússia e da China se mostrou contraproducente. Não apenas a Rússia e a China, mas também a Europa, rapidamente tomaram medidas para desenvolver mecanismos alternativos para pagamentos e quitações internacionais.

Os sistemas de pagamentos digitais não estatais também estão passando por um rápido desenvolvimento, principalmente em locais onde o estado é fraco, não confiável ou sem credibilidade. A revolução dos pagamentos provavelmente ocorrerá mais rapidamente em países pobres, como na África ou em algumas ex-repúblicas soviéticas. As novas tecnologias digitais já oferecem a essas sociedades os meios para passar da pobreza e subdesenvolvimento institucional para a complexidade institucional e as oportunidades de inovação e prosperidade.Parte superior do formulário

A antiga dominância do dólar refletia a demanda global por um ativo seguro, profundo e líquido. Mas essa condição desaparecerá quando surgirem ativos seguros alternativos, principalmente se forem garantidos por provedores não estatais. Mais precisamente, o longo reinado do dólar sobre o sistema financeiro internacional dependia de os EUA permanecerem economicamente estáveis, financeiramente viáveis e culturalmente abertos. Agora que as disfunções do sistema americano estão sendo reveladas, o resto do mundo pode começar a questionar tanto sua competência básica como a efetividade estatal.

A crise do COVID-19 é um exemplo disso. Em termos de número de casos e mortes e eficácia para conter o vírus, os EUA exibiram fraco desempenho em relação à maioria dos outros países – e a todos os outros países desenvolvidos. Sob o presidente Donald Trump, os EUA se tornaram um constrangimento internacional.

Nessas condições, o dólar não será tão competitivo internacionalmente como antes e pode até começar a se parecer com o antigo rublo soviético, mesmo que haja uma drástica mudança na liderança e na estratégia. Afinal, Mikhail Gorbachev não sucedeu a Brejnev imediatamente, e quando chegou ao poder e introduziu a perestroika, era tarde demais. A doença havia se tornado terminal.