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O que o COVID-19 significa para a cooperação internacional

A crise pode desencadear medidas para reduzir a conexão global, inclusive em termos de viagens, comércio e fluxos financeiros, digitais e de dados

CORONAVÍRUS: mais de 130 mil pessoas e 4 mil mortes foram registradas em todo o mundo. (Eric Gaillard/Reuters)
CORONAVÍRUS: mais de 130 mil pessoas e 4 mil mortes foram registradas em todo o mundo. (Eric Gaillard/Reuters)
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Opinião

Publicado em 13 de março de 2020 às, 14h26.

WASHINGTON, DC – Ao longo da história, crise e evolução humana frequentemente andam de mãos dadas. Embora a crescente pandemia do COVID-19 possa fortalecer o nacionalismo e o isolacionismo e acelerar o recuo da globalização, o surto também pode estimular uma nova onda de cooperação internacional semelhante ao que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial.

O COVID-19 pode se tornar não apenas uma enorme crise de saúde, mas também uma crise de globalização e governança global. Obviamente, coloca a questão de como o mundo deve se organizar contra a ameaça de pandemias. Mas também tem implicações em como a globalização é percebida e o que essa percepção significa para o futuro da cooperação internacional.

Cinco décadas de crescente interconectividade abriram o mundo a volumosos fluxos de bens, serviços, dinheiro, ideias, dados e pessoas para além das fronteiras. Embora a globalização em si não seja novidade, a enorme escala e o escopo da versão atual tornaram o mundo interdependente de maneira sem precedentes – e portanto, frágil.

A atual infraestrutura socioeconômica global parece e funciona como uma rede hub-and-spoke na qual todos os elos são separados por distâncias muito curtas e as funções essenciais são centralizadas em grandes hubs. A atividade financeira está concentrada nos Estados Unidos, por exemplo, enquanto a China é o centro mundial da fabricação. Essa estrutura é voltada para maximizar a eficiência, capturando os benefícios de economias de escala e especialização. De fato, ajudou a tirar milhões de pessoas da pobreza (embora em muitos países também tenha levado a uma maior desigualdade de renda e problemas sociais inerentes).

Todavia, a conectividade também cria um enorme – mas muitas vezes oculto – risco de catástrofe. Isso ocorre porque a conectividade aumenta o que os estatísticos chamam de “cauda gorda” ou assimétrica, que é a probabilidade de eventos extremos inerentemente não quantificáveis, como crises financeiras, holocausto nuclear, inteligência artificial hostil, aquecimento global, biotecnologia destrutiva e pandemias.

Como as finalidades funcionais críticas estão hiper concentradas e toda a rede está tão fortemente ligada, choques em um hub central como os EUA ou a China podem rapidamente se tornar sistêmicos e paralisantes. A própria dependência nos hubs centrais gera risco sistêmico, porque esses hubs constituem pontos únicos de falha e a estreita interconectividade entre hubs e nós amplifica o potencial de erros em cascata. É por isso que o colapso financeiro de 2008, que se originou nos EUA, foi tão destrutivo e o motivo pelo qual o surto de COVID-19 que começou na China rapidamente se tornou uma crise econômica e de saúde global.

É provável que duas diferentes tendências políticas surjam dessa catástrofe em andamento.

Primeiro, a crise pode desencadear medidas para reduzir a conexão global, inclusive em termos de viagens, comércio e fluxos financeiros, digitais e de dados. As pessoas podem instintivamente exigir mais isolamento em muitas esferas. Buscar proteção através do isolacionismo geral seria equivocado e contraproducente. Mas, neste caso, as comunidades podem de fato ajudar a conter a ameaça COVID-19, reduzindo de modo adaptativo sua conectividade por meio de medidas de mitigação que aumentam a distância social, como fechamento de escolas e empresas, proibições de reuniões e eventos públicos e limitações no transporte público enquanto durar a crise.

Essas medidas drásticas terão altos custos econômicos e sociais a curto prazo e implicam inegáveis ​​desafios práticos e éticos. Em retrospectiva, elas podem se tornar desnecessárias. Mas é justamente porque não podemos prever a disseminação do COVID-19 que a crise exige ações agressivas desde o início. Como aponta o matemático e especialista em risco Nassim Nicholas Taleb, como o crescimento exponencial em princípio parece enganosamente linear, a reação exagerada por parte dos formuladores de políticas não é apenas justificada, mas necessária.

Essa é uma consideração tática, não estratégica: o objetivo não é promover a desglobalização, mas criar maior robustez. Quando os riscos são potencialmente devastadores, a sobrevivência sistêmica deve substituir as considerações de eficiência. É por isso que, por exemplo, buffers ou reservas macro prudenciais, como maiores exigências de capital no setor financeiro, são desejáveis.

Um claro paralelo entre a pandemia do COVID-19 e a mudança climática está se tornando aparente. Ambos apresentam emergência, dependência histórica, loops de feedback, pontos de inflexão e não linearidade. Ambos envolvem riscos catastróficos de cauda gorda, governados por uma incerteza radical e pedem que se evite a análise tradicional de custo-benefício – que se baseia em conhecidas distribuições de probabilidade – em favor de mitigação drástica para reduzir a exposição. E, importante, ambos destacam a necessidade de uma cooperação internacional muito mais próxima voltada para o futuro para gerenciar ameaças globais.

De fato, uma demanda por maior cooperação global é a segunda e mais importante tendência política que poderia surgir da atual crise. Embora isso possa parecer inconsistente à primeira vista com a crescente suspeita de desglobalização, as reformas necessárias podem de fato sintetizar as duas tendências. A prevenção e a contenção pandêmica são um bem público global e demandam maior coordenação global, bem como dissociação adaptativa, temporária e coordenada.

Para começar, há uma necessidade e uma oportunidade de introduzir “disjuntores” globais que podem isolar riscos sistêmicos desde o início e impedir que eles se espalhem. Esses mecanismos serão mais eficazes se forem claros, transparentes, projetados com antecedência e incorporados a um sistema de governança global que os legitime e os atualize continuamente. Por exemplo, os governos poderiam elaborar e adotar protocolos comuns para restrições temporárias de viagens e comércio no caso de uma possível pandemia, acompanhadas por sistemas de alerta antecipado e limites de ação acordados em nível global.

Além disso, a comunidade internacional pode desejar incorporar redundância funcional em sistemas complexos – incluindo finanças, cadeias de valor, suprimento de alimentação e saúde pública – para impedir que os hubs centrais se tornem pontos de estrangulamento e garantir que falhas únicas não desencadeiem colapsos sistêmicos em cadeia. Embora isso implique algum repatriamento e desconcentração às custas da eficiência, economias de escala e vantagem comparativa, o objetivo não é a autarquia, mas a redução de risco por meio da diversificação.

A humanidade precisa se organizar para mitigar os riscos associados às mudanças climáticas, pandemias, terror biológico e IA não gerenciada. Embora isso exija um salto histórico, grandes crises muitas vezes abrem espaço político para reformas radicais. Precisamente no momento em que o multilateralismo baseado em regras está recuando, talvez o medo e as perdas decorrentes do COVID-19 incentivem os esforços para criar um melhor modelo de globalização.

Kemal Derviş, ex-ministro de Assuntos Econômicos da Turquia e ex-administrador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), é membro sênior da Brookings Institution.

Sebastián Strauss é Analista Sênior de Pesquisa e Coordenador de Compromissos Estratégicos da Brookings Institution.