O FMI vai finalmente aprender com a Argentina?
As deficiências políticas e de governança do país serão mostradas como evidência do que deu errado
Da Redação
Publicado em 17 de setembro de 2019 às 18h05.
SYDNEY – A crise politicamente espinhosa da dívida externa da Argentina serve como um poderoso lembrete de que o Fundo Monetário Internacional ainda não tem uma resposta para lidar com a volatilidade dos fluxos internacionais de capital para as economias emergentes. Além disso, também enfatiza a necessidade de reformas no próprio Fundo.
Uma vez que os defaults da dívida têm manchado a história da Argentina, temos de voltar pelo menos duas décadas atrás para entender a situação atual. Durante a maior parte da década de 90, a Argentina vinha implantando com sucesso uma taxa de câmbio fixa, que o FMI via como uma opção sensível para conter a inflação. A abordagem se mostrou tão bem-sucedida que a Argentina atraiu fluxos significativos de capital internacional, o que permitiu ao país financiar um grande déficit externo.
Porém, em 1998, a taxa de câmbio aparentava estar supervalorizada no contexto de termos de troca desfavoráveis, um dólar americano forte e crises de fluxos de capital na Ásia e na Rússia. Parecia necessário acrescentar uma certa flexibilidade ao regime cambial, mas não estava claro como fazer isso. Desvincular-se de um câmbio fixo é uma experiência sempre traumática, com vencedores e perdedores óbvios.
Neste intervalo, o FMI se manteve simpático às angústias da Argentina, uma vez que o país vinha seguindo as recomendações do Fundo e tinha amigos em Washington. Por desfrutar do benefício da dúvida, a Argentina se agarrou ao regime do câmbio fixo. O FMI ampliou o apoio generoso, além de propor sua receita panaceica de sempre: aperto fiscal.
A austeridade talvez tivesse funcionado se o único problema fosse uma falta de liquidez temporária. Porém, a Argentina tinha emprestado demais, e os credores dela entenderam que esse regime cambial era insustentável. Em dezembro de 2001, o FMI pôs fim a seu apoio de modo um tanto relutante. O então presidente do país, Fernando de la Rúa, fez uma dramática partida de helicóptero enquanto a economia descia rumo ao caos. Entre fechamentos de bancos, um desemprego de 20% e uma queda de 28% no PIB, o país declarou moratória de sua dívida externa.
Em 2010, a bagunça tinha sido arrumada e a dívida externa foi reescalonada. Com a chegada de um novo presidente voltado para os negócios, Mauricio Macri, em 2015, o ciclo podia recomeçar. Desta vez, por exigência do FMI, a Argentina adotou um regime de câmbio flutuante puro. Com a dívida externa enxugada graças à renegociação dos prazos, o capital estrangeiro voltou a circular. Os investidores estavam dispostos até a comprar títulos de 100 anos de um país com oito moratórias soberanas nos últimos dois séculos.
O entusiasmos dos investidores, além da lua de mel política nacional, durou enquanto o clima internacional se manteve benigno. Porém, quando os fluxos tropeçaram em 2018, o FMI precisou entrar novamente em cena, fechando a lacuna no financiamento externo com um espantoso programa de empréstimo de US$ 50 bilhões (posteriormente corrigido para US$ 57 bilhões).
Porém, mais uma vez, o problema do financiamento externo não era um fenômeno temporário, e o eleitorado argentino logo começou a se irritar com as reformas exigidas pelo FMI. Com uma dívida externa acumulada de mais de US$ 100 bilhões e a maioria do dinheiro do Fundo já paga, a Argentina anunciou um “reperfilamento” unilateral da dívida no fim do mês passado.
Para a população argentina, esta é uma notícia preocupante; para o FMI, representa um fracasso fundamental de política econômica. Agora está claro que austeridade fiscal e um regime de câmbio flutuante são inadequados para lidar com a volatilidade do fluxo de capital. A única pergunta é o que deve vir a seguir, não só para a Argentina, onde o fundo terá de penar para recuperar seu programa de empréstimos, mas para o próprio Fundo.
Para começar, o FMI tem de elaborar jeitos melhores de resolver os problemas de dívidas soberanas insustentáveis. A solução para uma dívida interna insustentável sempre pode ser um reparcelamento ou a falência. Uma dívida internacional é outro problema, e nisso o histórico do FMI deixa muito a desejar. Na crise asiática de 1998, o Fundo resistiu fortemente a uma revisão dos prazos. Na crise grega de 2010, ele permitiu que os credores (a maioria bancos de outros países) se protegessem de suas próprias tolices. E, no caso da Argentina, o FMI se recusou a usar seu peso para se contrapor aos investidores abutres que haviam subvertido a renegociação de 2010, mesmo quando implementou um amplo programa de empréstimo.
Segundo, o FMI deveria assumir o fato de que fluxos de capital ilimitados são voláteis demais para economias emergentes frágeis. Por ter se oposto aos controles de capital durante tanto tempo, o Fundo tardiamente – e sem entusiasmo – apoiou a “gestão de fluxos de capital”, mas apenas como último recurso quando todas as outras medidas (leia-se, uma austeridade dolorosa) foram esgotadas.
Em vez de ficar no fundo da caixa de ferramentas, restrições de fluxos deveriam ser rotina para muitas economias emergentes. O FMI deveria articular seu apoio quando os países aplicassem tais restrições a fluxos de carteira sujeitos a mudanças. As economias emergentes não deveriam ter déficits externos significativos só porque os investidores externos se sentem eufóricos. Os mesmos investidores vão partir en masse quando as condições mudarem.
Terceiro, em vez de tolerar de modo relutante uma intervenção no mercado cambial, o FMI deveria ativamente promovê-la quando a volatilidade do mercado for claramente disruptiva. Várias economias da Ásia estão demonstrando os benefícios de uma intervenção de mercado disciplinada. O Fundo deveria usar suas experiências para desenvolver uma diretriz operacional.
Quarto, os acionistas do FMI precisam revisar a governança interna da organização. O programa argentino é só o mais recente de uma série de decisões nas quais os interesses politicamente motivados dos integrantes mais importantes parecem prevalecer, enquanto a desajeitada diretoria fica em grande parte escanteada.
Tradicionalmente, a Argentina tem sido tratada de modo favorável em Washington (em comparação, digamos, aos países da crise asiática entre 1997 e 98). A aprovação rápida do programa de US$ 50 bilhões, e sua ampliação casual para US$ 57 bilhões, só aumentou a impressão de que o país recebe tratamento especial apesar de sua incapacidade crônica de administrar sua dívida.
Quando chegar a hora da autópsia, a culpa vai ser da vítima. As deficiências políticas e de governança da Argentina serão mostradas como evidência do que deu errado, e não sem motivo. Mas não é esse o ponto. O trabalho do FMI é funcionar em cenários desafiadores. Para fazê-lo de modo eficiente, ele precisa se reformar juntamente com a turbulenta economia argentina.
Stephen Grenville, ex-vice-governador do Banco Central da Austrália, é pesquisador não-residente do Instituto Lowy em Sydney.
SYDNEY – A crise politicamente espinhosa da dívida externa da Argentina serve como um poderoso lembrete de que o Fundo Monetário Internacional ainda não tem uma resposta para lidar com a volatilidade dos fluxos internacionais de capital para as economias emergentes. Além disso, também enfatiza a necessidade de reformas no próprio Fundo.
Uma vez que os defaults da dívida têm manchado a história da Argentina, temos de voltar pelo menos duas décadas atrás para entender a situação atual. Durante a maior parte da década de 90, a Argentina vinha implantando com sucesso uma taxa de câmbio fixa, que o FMI via como uma opção sensível para conter a inflação. A abordagem se mostrou tão bem-sucedida que a Argentina atraiu fluxos significativos de capital internacional, o que permitiu ao país financiar um grande déficit externo.
Porém, em 1998, a taxa de câmbio aparentava estar supervalorizada no contexto de termos de troca desfavoráveis, um dólar americano forte e crises de fluxos de capital na Ásia e na Rússia. Parecia necessário acrescentar uma certa flexibilidade ao regime cambial, mas não estava claro como fazer isso. Desvincular-se de um câmbio fixo é uma experiência sempre traumática, com vencedores e perdedores óbvios.
Neste intervalo, o FMI se manteve simpático às angústias da Argentina, uma vez que o país vinha seguindo as recomendações do Fundo e tinha amigos em Washington. Por desfrutar do benefício da dúvida, a Argentina se agarrou ao regime do câmbio fixo. O FMI ampliou o apoio generoso, além de propor sua receita panaceica de sempre: aperto fiscal.
A austeridade talvez tivesse funcionado se o único problema fosse uma falta de liquidez temporária. Porém, a Argentina tinha emprestado demais, e os credores dela entenderam que esse regime cambial era insustentável. Em dezembro de 2001, o FMI pôs fim a seu apoio de modo um tanto relutante. O então presidente do país, Fernando de la Rúa, fez uma dramática partida de helicóptero enquanto a economia descia rumo ao caos. Entre fechamentos de bancos, um desemprego de 20% e uma queda de 28% no PIB, o país declarou moratória de sua dívida externa.
Em 2010, a bagunça tinha sido arrumada e a dívida externa foi reescalonada. Com a chegada de um novo presidente voltado para os negócios, Mauricio Macri, em 2015, o ciclo podia recomeçar. Desta vez, por exigência do FMI, a Argentina adotou um regime de câmbio flutuante puro. Com a dívida externa enxugada graças à renegociação dos prazos, o capital estrangeiro voltou a circular. Os investidores estavam dispostos até a comprar títulos de 100 anos de um país com oito moratórias soberanas nos últimos dois séculos.
O entusiasmos dos investidores, além da lua de mel política nacional, durou enquanto o clima internacional se manteve benigno. Porém, quando os fluxos tropeçaram em 2018, o FMI precisou entrar novamente em cena, fechando a lacuna no financiamento externo com um espantoso programa de empréstimo de US$ 50 bilhões (posteriormente corrigido para US$ 57 bilhões).
Porém, mais uma vez, o problema do financiamento externo não era um fenômeno temporário, e o eleitorado argentino logo começou a se irritar com as reformas exigidas pelo FMI. Com uma dívida externa acumulada de mais de US$ 100 bilhões e a maioria do dinheiro do Fundo já paga, a Argentina anunciou um “reperfilamento” unilateral da dívida no fim do mês passado.
Para a população argentina, esta é uma notícia preocupante; para o FMI, representa um fracasso fundamental de política econômica. Agora está claro que austeridade fiscal e um regime de câmbio flutuante são inadequados para lidar com a volatilidade do fluxo de capital. A única pergunta é o que deve vir a seguir, não só para a Argentina, onde o fundo terá de penar para recuperar seu programa de empréstimos, mas para o próprio Fundo.
Para começar, o FMI tem de elaborar jeitos melhores de resolver os problemas de dívidas soberanas insustentáveis. A solução para uma dívida interna insustentável sempre pode ser um reparcelamento ou a falência. Uma dívida internacional é outro problema, e nisso o histórico do FMI deixa muito a desejar. Na crise asiática de 1998, o Fundo resistiu fortemente a uma revisão dos prazos. Na crise grega de 2010, ele permitiu que os credores (a maioria bancos de outros países) se protegessem de suas próprias tolices. E, no caso da Argentina, o FMI se recusou a usar seu peso para se contrapor aos investidores abutres que haviam subvertido a renegociação de 2010, mesmo quando implementou um amplo programa de empréstimo.
Segundo, o FMI deveria assumir o fato de que fluxos de capital ilimitados são voláteis demais para economias emergentes frágeis. Por ter se oposto aos controles de capital durante tanto tempo, o Fundo tardiamente – e sem entusiasmo – apoiou a “gestão de fluxos de capital”, mas apenas como último recurso quando todas as outras medidas (leia-se, uma austeridade dolorosa) foram esgotadas.
Em vez de ficar no fundo da caixa de ferramentas, restrições de fluxos deveriam ser rotina para muitas economias emergentes. O FMI deveria articular seu apoio quando os países aplicassem tais restrições a fluxos de carteira sujeitos a mudanças. As economias emergentes não deveriam ter déficits externos significativos só porque os investidores externos se sentem eufóricos. Os mesmos investidores vão partir en masse quando as condições mudarem.
Terceiro, em vez de tolerar de modo relutante uma intervenção no mercado cambial, o FMI deveria ativamente promovê-la quando a volatilidade do mercado for claramente disruptiva. Várias economias da Ásia estão demonstrando os benefícios de uma intervenção de mercado disciplinada. O Fundo deveria usar suas experiências para desenvolver uma diretriz operacional.
Quarto, os acionistas do FMI precisam revisar a governança interna da organização. O programa argentino é só o mais recente de uma série de decisões nas quais os interesses politicamente motivados dos integrantes mais importantes parecem prevalecer, enquanto a desajeitada diretoria fica em grande parte escanteada.
Tradicionalmente, a Argentina tem sido tratada de modo favorável em Washington (em comparação, digamos, aos países da crise asiática entre 1997 e 98). A aprovação rápida do programa de US$ 50 bilhões, e sua ampliação casual para US$ 57 bilhões, só aumentou a impressão de que o país recebe tratamento especial apesar de sua incapacidade crônica de administrar sua dívida.
Quando chegar a hora da autópsia, a culpa vai ser da vítima. As deficiências políticas e de governança da Argentina serão mostradas como evidência do que deu errado, e não sem motivo. Mas não é esse o ponto. O trabalho do FMI é funcionar em cenários desafiadores. Para fazê-lo de modo eficiente, ele precisa se reformar juntamente com a turbulenta economia argentina.
Stephen Grenville, ex-vice-governador do Banco Central da Austrália, é pesquisador não-residente do Instituto Lowy em Sydney.