Trump e a sociedade americana
Joel Pinheiro da Fonseca Podemos lamentar a ascensão de Trump como candidato do Partido Republicano e sua possível eleição a presidente dos EUA, a ignorância do eleitorado que votou nele, mas em um ponto temos que dar o braço a torcer: o republicano médio – branco, classe média, idoso – sentiu o cheiro das mentiras […]
Publicado em 29 de julho de 2016 às, 19h29.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h32.
Joel Pinheiro da Fonseca
Podemos lamentar a ascensão de Trump como candidato do Partido Republicano e sua possível eleição a presidente dos EUA, a ignorância do eleitorado que votou nele, mas em um ponto temos que dar o braço a torcer: o republicano médio – branco, classe média, idoso – sentiu o cheiro das mentiras que a elite do partido lhe tenta vender, com sucesso, há décadas. E o mesmo poderia ser dito dos milhões de democratas – brancos, classe média, jovens – que quase deram a Bernie Sanders a vaga democrata. O senso comum dentro do Partido Republicano era que a base queria candidatos sempre mais radicais – ultralibertários na economia e arquiconservadores nos valores culturais –, dos quais Ted Cruz seria um perfeito exemplo, mas Trump refutou essa tese: sem grandes amores pelo livre mercado e nenhum apego a valores evangélicos, Trump venceu com outras armas: a autoconfiança que é a resposta necessária à raiva e à insegurança do eleitorado.
O republicano médio tem bons motivos para se sentir inseguro. A estagnação da renda da classe trabalhadora nativa nos EUA é um fato incontestável, que caminha junto com o enriquecimento da elite. Essa desigualdade crescente tem inclusive tido repercussões culturais: o mundo e os hábitos da elite branca americana não têm nada a ver com os do proletariado também branco, conforme documentou o cientista político Charles Murray em “Coming Apart: the State of White America“, trabalho meticuloso de análise social publicado em 2012 que continua a guiar o entendimento do espaço que separa elites e povão, mesmo dentro do Partido Republicano. Uma vida de junk food, drogas, música country e lares instáveis são cada vez mais comuns. Às vezes o ressentimento extravasa e ganha forma na política: eis Trump.
O salto mais óbvio – errado – a se fazer com base no dado do aumento da desigualdade é o de que a elite explora as classes baixas. Na verdade, se elas não enriqueceram foi porque não foram exploradas pelo capitalismo. A narrativa maior, que a esquerda não percebe, é que a elite dos EUA e Europa não enriqueceu sozinha; para aumentar sua renda ela deu emprego e renda a centenas de milhões de miseráveis na Ásia e imigrantes em casa, promovendo a maior redução da pobreza na história da humanidade. Chineses deixaram o limiar da fome no arrozal milenar para trabalhar em fábricas (por salários que, nos EUA, seriam considerados aviltantes) e aí sim conseguiram finalmente economizar para comprar casa, carro, TV e geladeira. Se antes o problema essas massas chinesas e indianas era a falta do consumo básico, agora é o consumo em excesso que ameaça o clima mundial. Na comparação, um bom problema.
Quem saiu perdendo nesse aumento da concorrência da mão-de-obra foi o trabalhador americano. Perdendo empregos para chineses do outro lado do mundo e para mexicanos que cruzam a fronteira, viu sua renda estagnar, ainda que tenha agora acesso a muito mais bens e serviços do que tinha quatro décadas atrás. Enquanto isso, a elite de ambos os partidos só ganharam, e sua estratégia nos últimos ciclos tem sido a de enganar o povão, jurando que o que é bom para suas grandes empresas e bancos é bom para o trabalhador médio. Na verdade, e apesar de discursar em sentido contrário (republicanos combatem a imigração, democratas o outsourcing), seus reais beneficiários são os chineses e mexicanos que ela contrata e dos quais seus lucros extraordinários dependem. Agora os trabalhadores brancos vieram cobrar a conta dos anos de engodo.
As saídas possíveis para essa situação são duas. A primeira e mais óbvia, uma vez que o problema foi exposto sem subterfúgios, é fechar o país à imigração e dificultar o outsourcing e o investimento no exterior. É a saída Trump. Nesse caso, a demanda por mão-de-obra nativa pouco qualificada aumenta, mas a economia como um todo perde, tornando-se menos produtiva e participando menos da divisão internacional do trabalho e dos ganhos com mão-de-obra mais barata. No longo prazo, todos perdem, mesmo os trabalhadores que tiveram aumento salarial inicialmente, mas cujo salário compra menos bens. O mexicano pobre que gostaria de emigrar, ou o paquistanês que gostaria de trabalhar em uma fábrica americana, então, nem se fala; não terão acesso aos melhores meio de ascensão social.
A outra é inicialmente mais difícil, mas virtuosa no longo prazo. Permitir que o país siga auferindo os ganhos da entrada de imigrantes e do investimento internacional, aumentando a produção e promovendo a realocação do capital humano que antes iria para os trabalhos que os imigrantes agora desempenharão. Essa realocação de trabalhadores não é sem custo e muitas vezes não opera sobre as mesmas pessoas. É a economia de capital que uma empresa tem por demitir trabalhadores americanos caros em troca de mexicanos baratos que libera recursos para se investir em um bar ou barbearia da moda, gerando emprego para o filho do funcionário demitido.
Se a situação do trabalhador branco americano é difícil, ao menos ele vive em um ambiente democrático que o permite escolher seu futuro, não é mesmo? Não por muito tempo. Demograficamente, esse grupo, que já foi quase hegemônico no país, tornar-se-á minoritário conforme a imigração aumenta e as taxas de natalidade de imigrantes superem as nativas. O reinado do americano cristão branco está para chegar ao fim, tendência muito bem explorada por Robert P. Jones em “The End of Christian White America“, publicado este ano. Cada vez mais, a presença branca cristã no eleitorado americano tenderá a diminuir, o que apenas aumenta a insegurança dessa parcela do eleitorado quanto ao futuro de seu modo de vida, levando a afirmações da própria identidade (na oposição ao casamento gay, no porte de armas, etc.) e ao voto cada vez mais radical por alguém que dê voz à sua frustração impotente perante um mundo em mudança.
Assim, se demograficamente o Partido Republicano está em péssimos lençóis (porque seu eleitorado é basicamente o branco conservador, com poucas entradas em outros grupos), ele tem ainda chances reais de vitória se conseguir assustar ou enraivecer o eleitorado branco de meia-idade a ponto de o convencer a comparecer em peso às urnas, a taxas mais altas do que os jovens, negros, asiáticos e latinos que votarão em Hillary. Convencer o próprio simpatizante a sair de casa para votar é uma estratégia mais rentável do que buscar persuadir adversários ou indecisos.
Chegará o dia em que mesmo essa estratégia não será o bastante para eleger um republicano. O partido terá que fazer esforços mais reais para conquistar o voto latino, provavelmente abrindo mão da política nociva de barrar a imigração. Até lá, a velha classe média interiorana terá seu último momento de voz; o mundo inteiro deve preparar os ouvidos. Democracia é assim.
Pior que isso seria se os jovens, endividados até o pescoço por cursos universitários massificados que pouco os prepararam para gerar valor no mercado, também vislumbrassem um futuro incerto pela frente, sem os empregos vistosos que consideram ser compatíveis com seus longos anos de formação. O futuro desses será bem mais longo…