Aluguel: preço anunciado é diferente do valor de fechamento do negócio (Krisanapong detraphiphat/Getty Images)
Ex-ministro do Turismo (Governo Temer), cientista político pela Universidade Americana de Paris, Sênior Fellow do Milken Institute (EUA)
Publicado em 27 de setembro de 2025 às 09h38.
Última atualização em 27 de setembro de 2025 às 09h41.
O capitalismo clássico nasceu para organizar a produção, elevar a produtividade, gerar poupança, remunerar capitais, criar salários melhores, empregos de qualidade e, a partir disso, construir capital para o maior número de pessoas. Daí a sua popularidade. É um regime de mercado imperfeito, como todos, mas seus princípios básicos são claros: a poupança financia o investimento, o investimento eleva a produtividade, a produtividade amplia salários e o conjunto cria riqueza.
No Brasil, porém, produzimos uma metamorfose. Fizemos com o capitalismo o que Oswald de Andrade descreveu como antropofagia: devoramos a ideia estrangeira e a transformamos em algo nosso, único, inédito, mas também, por vezes, esquisito. Inventamos o estranho caso do descapitalismo brasileiro.
É uma jabuticaba social e econômica: parece muito com capitalismo de massa, usa a mesma linguagem, ostenta shoppings reluzentes, grandes supermercados e publicidade premiada em Cannes. Mas, por dentro, funciona de forma antitética: em vez de acumular, dissolve; em vez de multiplicar, consome; em vez de capitalizar o trabalhador, a empresa ou a família, descapitaliza todos eles.
O ciclo aqui é perverso. Para cada R$ 5 mil que o trabalhador recebe, o empregador desembolsa quase R$ 10 mil em custos. No supermercado, boa parte do valor pago é imposto. No crédito, o juro transforma a compra do mês em dívida eterna: rotativo do cartão a 400% ao ano, cheque especial acima de 300%, consignado a 30%, mesmo sendo risco quase zero. Ao fim, sobra pouco do que se chama consumo real e, de poupança, menos ainda.
Não se trata de detalhe técnico. É um modelo. O descapitalismo brasileiro foi sendo adaptado como obra nossa. Ele concentra renda no Estado, em crescente desequilíbrio fiscal, e, por consequência, no sistema financeiro impelido a financiá-lo, impedindo que famílias poupem e empresas invistam. Um imenso crowding out, de mais de 700 bilhões por ano, segundo Paulo Rabelo de Castro. Enquanto, nos EUA, a classe média vive com US$ 70 mil anuais — mais de R$ 25 mil por mês — e consegue poupar, investir e acumular, aqui chamamos de “classe média” famílias que vivem com R$ 2,8 mil a R$ 8,4 mil mensais. Lá, o capitalismo gera capital. Aqui, o descapitalismo gera dívidas. A massa salarial é a base do capitalismo norte-americano, em crescente produtividade, enquanto no Brasil estagnamos.
Um exemplo emblemático é a casa própria. Nas democracias liberais, adquirir a primeira casa é rito de passagem e símbolo de estabilidade. Nos Estados Unidos, uma hipoteca de 30 anos com juros de 6% ao ano permite a milhões de famílias realizar esse sonho, mesmo em tempos de debate sobre perda de poder de compra. No Brasil, o crédito imobiliário comum cobra mais de 11% a 12% ao ano — no mínimo o dobro —, com prazos menores e custos adicionais de cartório, ITBI e registro. O efeito é devastador: o imóvel torna-se mais caro, a prestação pesa mais no orçamento e a segurança patrimonial, que deveria capitalizar a família, acaba descapitalizando-a. É o contrário do que o capitalismo liberal promete: em vez de patrimônio, endividamento; em vez de liberdade, aprisionamento. Por isso, no capitalismo o mercado financia a casa própria, enquanto aqui dependemos de crédito oficial. No final das contas, geramos favelas que, no descapitalismo, chamamos candidamente de “comunidades”.
Esse descapitalismo se revela também nos preços dos automóveis, celulares, brinquedos, roupas, remédios: todos carregam cargas tributárias de 40% a 60%, contra menos de 10% nos EUA. Energia elétrica é taxada como luxo, gasolina é metade imposto. A conta final é brutal: 70 milhões de brasileiros estão negativados no Serasa.
O descapitalismo brasileiro é, portanto, um modelo invertido. E, enquanto não lhe dermos esse nome, continuaremos a culpar o “capitalismo brasileiro” por problemas que ele não pode resolver. Porque aqui ainda não temos o sentido do capitalismo: existe sua paródia tropical, nosso estranho caso.
No fundo, a maior crueldade é que essa invenção não é acidental. É sistêmica. O verbo aqui se conjuga em todas as pessoas: eu descapitalizo, tu descapitalizas, ele descapitaliza, nós descapitalizamos, vós e eles também. O descapitalismo gera insegurança e desconfiança, não gera autonomias e paz, porque não promove a afluência social, mas sim o populismo e o clientelismo.
Mas a porta de saída existe e sempre esteve logo ali. Agora ainda mais perto, pois tem o mundo inteiro querendo investir aqui. O “luxo” estará em experimentar, pela primeira vez, o verdadeiro capitalismo: juros em linha com o mundo, impostos simples e transparentes, segurança jurídica, estímulo à poupança e ao investimento. Esse seria o verdadeiro movimento antropofágico: transformar, agora de modo positivo, as ideias de fora em algo nosso, funcional e inclusivo.
Contudo, antes mesmo das reformas econômicas, precisaríamos definir a filosofia. Quem queremos ser? Um país capitalista? Porque isso vem antes da política e da economia. Daí decorrem os aspectos estratégicos, táticos e operacionais. Sem essa decisão de rumo, de um plano de país capitalista, as reformas, como as de Temer, FHC e Paulo Guedes, são descontinuadas.
Com a implementação do capitalismo no Brasil, poderemos, aí sim, erigir um Estado de bem-estar social aprimorado e digno, já que nosso caminho, a partir da redemocratização — nosso sonho europeu —, foi o inverso. Vamos logo deixar de ser a pátria do descapitalismo para nos tornarmos, enfim, um país capitalista completo, com excedentes de produtividade, de onde se derivam mais resultados; um país eficiente, que gere excedentes para as inversões sociais necessárias. A revolução precisa ocorrer no modelo mental que influencia o país. Afinal, o Brasil já conta com ângulos de evolução capitalista avançada em curso, como o mercado de capitais, a modernização bancária, o crédito imobiliário e sistemas complexos de inovação, produção e distribuição. Mas tudo isso ainda não produziu os resultados que adviriam de uma evolução completa e madura do nosso capitalismo. Falta o mais simples: liberdade para trabalhar.