O batom nosso de cada dia
Nós, mulheres contemporâneas, queremos a beleza real, a liberdade para colorir, mas sem filtro
Guilherme Dearo
Publicado em 27 de abril de 2020 às 12h31.
Última atualização em 27 de abril de 2020 às 12h32.
Há mais de uma década realizo pesquisas de mercado no campo da beleza . Na maior parte das vezes, são estudos antropológicos baseados na vida cotidiana de mulheres pertencentes as camadas populares do país, a chamada classe C. No entanto, apesar do enorme interesse das empresas do ramo nesse contingente populacional, também tive o prazer de conhecer a relação das mulheres de classe média e média alta com o universo do autocuidado e cosmética.
Apesar das diferenças de contexto, acesso, estilos de vida, condições socioeconômicas e culturais o que mais chama atenção foi que em todas as casas que visitei com cada entrevistada que tive contato, assim como nécessaires e banheiros que tive o prazer de analisar é que todas as mulheres possuem preocupação com a sua autoimagem. Acredito que isto não seja surpresa pra ninguém, é quase uma regra irrefutável, como a uma lei da gravidade, que mulheres não vivem sem alimentar e construir uma relação com o que entendemos por beleza.
Pois é, desde que nascemos aprendemos quase que naturalmente (como comer, andar pra frente e respirar) a importância da aparência em nossas vidas. O “ser mulher” está relacionado a alguns elementos, mas o primeiro de todos, bem antes da relevância da maternidade, do papel feminino no núcleo familiar ou da responsabilização na criação dos filhos, a expressão estética feminina nos é imposta como uma condição de existência. Pra “ser mulher” precisamos de certos cuidados e atenção a elementos que compõem uma grande lista de produtos, serviços, tutoriais, expertises, escolhas e investimentos que vão permanecer em nossas vidas até a morte, ou quase isso.
Se não obedecemos às normas somos coagidas abertamente, todos, amigos, familiares, propagandas, influenciadores, artistas , as marcas em geral nos dizem o que ser, como ser, o que fazer, é uma ditadura que nem é sentida e que obedece a um inconsciente coletivo invisível e implacável. O “tem que ser bonita e se cuidar” se torna presente e influencia o mercado de trabalho, afinal, precisamos zelar a nossa imagem para conseguir um emprego, ou nos garante um parceiro no mercado matrimonial, precisamos estar adequadamente sedutoras, ou pelo menos expressar higiene e autocuidado para sermos valorizadas – e admiradas - pelo possível pretendente.
O embelezamento proporcionado pelas maquiagens, cremes, perfumes, tinturas indica e emite a sociedade sinais de que somos limpas, estamos aptas ao convívio e mais, todo esforço e investimento nesta relação de construção da nossa “melhor versão” é valorizada, símbolo de poder e riqueza.
Este cenário histórico e amplamente difundido nos fez crer que toda esse sistema é um imperativo da verdade, uma crença indubitável para o ser e estar no mundo, afinal de contas, quando estamos com a nossa melhor roupa, com o cabelo e unhas pintadas e o batom na boca, nos diferenciamos, nos distinguimos, e mais, alcançamos admiração dos outros, introjetando em nós mesmas a certeza de este modus operandi é o correto e regulamentar.
As invisibilidades do “ser mulher ”
Muitas mulheres ao longo desses anos me relataram de forma indireta (ou às vezes diretamente em desabafos emocionados) a dificuldade em se “ver mulher”, em se perceber bonita, em enxergar beleza nelas mesmas. Conheci muitas mulheres que se sentiam invisíveis, pois dentro de seus cenários e vida, os filhos vêm em primeiro lugar, depois a casa, depois o marido, depois a família e quando “sobra” um pouco de tempo conseguiam se cuidar, dessa forma, tentavam cuidar do cabelo e apelavam para os “caquinhos” de maquiagem jogado pela casa, guardados no armário do banheiro, em “penteadeiras” improvidas no banheiro (em cima do cesto de roupa suja por exemplo) ou no quarto dividindo espaço com a TV, o porta-retratos e o material escolar dos filhos, junto com a montanha de roupa pra passar.
Em outras vezes, a falta de visibilidade vem da outra ponta da pirâmide. Mulheres que possuem acesso a mais alta tecnologia dos tratamentos dermatológicos, às inovações no campo da cosmetologia e maquiagem me contavam sobre os prazeres e dissabores em se manter cuidadas, uma obrigação doía na pele, no bolso e na alma. Conheci entrevistadas que possuem dificuldade em apenas ser elas mesmas e me diziam sem atentar para a gravidade da mensagem: “eu não sou ninguém sem maquiagem”. Ela mal conseguem lidar com a naturalidade, e se tornaram entusiastas e reféns (ao mesmo tempo) dos procedimentos, mas elas estão lá, escondidas sob camadas e camadas de produtos que escondem, contornam, inibem, reforçam, desenham seus rostos e corpos.
O autocuidado como expressão de sororidade
Na jornada da construção de feminino o batom é o pão nosso de cada dia. E apesar da pressão normalmente despercebida, e uma ditadura que se tornou habitual, todo esse conjunto de cores, cheiros e sensações trazem alegria, fantasia e mágica a todas nós, me incluo nesse grupo porque também faço parte dessa religião que nos conecta e nos une: a fé na construção da nossa melhor versão.
Aprendi nestes tantos anos de pesquisa que não podemos julgar. O elogio celebra a vida, assim como as cores nos enfeitam para o mundo. Usar batom, se sentir bonita em uma selfie pode nos salvar do esquecimento, da invisibilidade social e até mesmo da depressão (como muitas interlocutoras me afirmaram). Cuidar-se, seja lá de que maneira for, mexe com a autoestima, dá coragem para enfrentar o mundo e nos conecta com outras mulheres, já te perguntaram qual o nome e a marca do esmalte que você estava usando em alguma ocasião? E a cor do seu batom? Pois é, nesse lugar todas nós mulheres pertencemos a um grupo só, é nele que muitas vezes construímos sororidade.
Sobre ser mulher na era das redes sociais
Afinal, estamos aqui para comprar, parcelar, pagar e, finalmente, morrer. Celebrando, entre um boleto e outro, emoções e prazeres fugazes, uma ida ao shopping aqui, uma compra de indulgência acolá. Na sociedade de consumo é a fruição que nos permite lembrar que existimos. Apesar de diferentes contextos, nós mulheres, somos, em certa medida, parecidas, na culpa, na correria, na arte da viração para realizar, cumprir tarefas e nos realizar na conquista, qualquer uma nos basta, dependendo do momento.
Nós mulheres contemporâneas queremos mais, estamos ávidas por sensações, por produtos que de fato entreguem o que prometeram, e que faça diferença, estamos na era da performance, certo? Nós buscamos ludicidade para atenuar a invisibilidade da vida real, queremos garantia dos nossos direitos como consumidoras. Precisamos ser respeitadas e não mais aprisionadas em padrões inalcançáveis, queremos a beleza real, a liberdade para colorir, buscamos representatividade, mas sem filtro, apenas a verdade. Estamos cansadas de mensagens distantes que não faz eco, fica aí o alerta para marcas que continuam insistindo na boa e velha publicidade “Xuxa-usa-Monange” que impera nas redes sociais.
No era dos likes, o batom continua sendo um atrativo, mas a autenticidade vem se tornando o mais novo pão nosso de cada dia.
Hilaine Yaccoub é doutora em Antropologia do Consumo. Atua como palestrante, e consultora, realizando estudos que promovem ligação entre o mercado consumidor, o conhecimento acadêmico e as empresas. Para seguir nas redes sociais: @hilaine
Fotos de Pino Gomes. Diretor criativo de beleza, fotógrafo, especialista em efeitos especiais e maquiagem. Possui 30 anos de carreira, conheceu mais de 27 países fotografando e desenhando campanhas de marketing. Para seguir nas redes sociais: @pinogomes
Há mais de uma década realizo pesquisas de mercado no campo da beleza . Na maior parte das vezes, são estudos antropológicos baseados na vida cotidiana de mulheres pertencentes as camadas populares do país, a chamada classe C. No entanto, apesar do enorme interesse das empresas do ramo nesse contingente populacional, também tive o prazer de conhecer a relação das mulheres de classe média e média alta com o universo do autocuidado e cosmética.
Apesar das diferenças de contexto, acesso, estilos de vida, condições socioeconômicas e culturais o que mais chama atenção foi que em todas as casas que visitei com cada entrevistada que tive contato, assim como nécessaires e banheiros que tive o prazer de analisar é que todas as mulheres possuem preocupação com a sua autoimagem. Acredito que isto não seja surpresa pra ninguém, é quase uma regra irrefutável, como a uma lei da gravidade, que mulheres não vivem sem alimentar e construir uma relação com o que entendemos por beleza.
Pois é, desde que nascemos aprendemos quase que naturalmente (como comer, andar pra frente e respirar) a importância da aparência em nossas vidas. O “ser mulher” está relacionado a alguns elementos, mas o primeiro de todos, bem antes da relevância da maternidade, do papel feminino no núcleo familiar ou da responsabilização na criação dos filhos, a expressão estética feminina nos é imposta como uma condição de existência. Pra “ser mulher” precisamos de certos cuidados e atenção a elementos que compõem uma grande lista de produtos, serviços, tutoriais, expertises, escolhas e investimentos que vão permanecer em nossas vidas até a morte, ou quase isso.
Se não obedecemos às normas somos coagidas abertamente, todos, amigos, familiares, propagandas, influenciadores, artistas , as marcas em geral nos dizem o que ser, como ser, o que fazer, é uma ditadura que nem é sentida e que obedece a um inconsciente coletivo invisível e implacável. O “tem que ser bonita e se cuidar” se torna presente e influencia o mercado de trabalho, afinal, precisamos zelar a nossa imagem para conseguir um emprego, ou nos garante um parceiro no mercado matrimonial, precisamos estar adequadamente sedutoras, ou pelo menos expressar higiene e autocuidado para sermos valorizadas – e admiradas - pelo possível pretendente.
O embelezamento proporcionado pelas maquiagens, cremes, perfumes, tinturas indica e emite a sociedade sinais de que somos limpas, estamos aptas ao convívio e mais, todo esforço e investimento nesta relação de construção da nossa “melhor versão” é valorizada, símbolo de poder e riqueza.
Este cenário histórico e amplamente difundido nos fez crer que toda esse sistema é um imperativo da verdade, uma crença indubitável para o ser e estar no mundo, afinal de contas, quando estamos com a nossa melhor roupa, com o cabelo e unhas pintadas e o batom na boca, nos diferenciamos, nos distinguimos, e mais, alcançamos admiração dos outros, introjetando em nós mesmas a certeza de este modus operandi é o correto e regulamentar.
As invisibilidades do “ser mulher ”
Muitas mulheres ao longo desses anos me relataram de forma indireta (ou às vezes diretamente em desabafos emocionados) a dificuldade em se “ver mulher”, em se perceber bonita, em enxergar beleza nelas mesmas. Conheci muitas mulheres que se sentiam invisíveis, pois dentro de seus cenários e vida, os filhos vêm em primeiro lugar, depois a casa, depois o marido, depois a família e quando “sobra” um pouco de tempo conseguiam se cuidar, dessa forma, tentavam cuidar do cabelo e apelavam para os “caquinhos” de maquiagem jogado pela casa, guardados no armário do banheiro, em “penteadeiras” improvidas no banheiro (em cima do cesto de roupa suja por exemplo) ou no quarto dividindo espaço com a TV, o porta-retratos e o material escolar dos filhos, junto com a montanha de roupa pra passar.
Em outras vezes, a falta de visibilidade vem da outra ponta da pirâmide. Mulheres que possuem acesso a mais alta tecnologia dos tratamentos dermatológicos, às inovações no campo da cosmetologia e maquiagem me contavam sobre os prazeres e dissabores em se manter cuidadas, uma obrigação doía na pele, no bolso e na alma. Conheci entrevistadas que possuem dificuldade em apenas ser elas mesmas e me diziam sem atentar para a gravidade da mensagem: “eu não sou ninguém sem maquiagem”. Ela mal conseguem lidar com a naturalidade, e se tornaram entusiastas e reféns (ao mesmo tempo) dos procedimentos, mas elas estão lá, escondidas sob camadas e camadas de produtos que escondem, contornam, inibem, reforçam, desenham seus rostos e corpos.
O autocuidado como expressão de sororidade
Na jornada da construção de feminino o batom é o pão nosso de cada dia. E apesar da pressão normalmente despercebida, e uma ditadura que se tornou habitual, todo esse conjunto de cores, cheiros e sensações trazem alegria, fantasia e mágica a todas nós, me incluo nesse grupo porque também faço parte dessa religião que nos conecta e nos une: a fé na construção da nossa melhor versão.
Aprendi nestes tantos anos de pesquisa que não podemos julgar. O elogio celebra a vida, assim como as cores nos enfeitam para o mundo. Usar batom, se sentir bonita em uma selfie pode nos salvar do esquecimento, da invisibilidade social e até mesmo da depressão (como muitas interlocutoras me afirmaram). Cuidar-se, seja lá de que maneira for, mexe com a autoestima, dá coragem para enfrentar o mundo e nos conecta com outras mulheres, já te perguntaram qual o nome e a marca do esmalte que você estava usando em alguma ocasião? E a cor do seu batom? Pois é, nesse lugar todas nós mulheres pertencemos a um grupo só, é nele que muitas vezes construímos sororidade.
Sobre ser mulher na era das redes sociais
Afinal, estamos aqui para comprar, parcelar, pagar e, finalmente, morrer. Celebrando, entre um boleto e outro, emoções e prazeres fugazes, uma ida ao shopping aqui, uma compra de indulgência acolá. Na sociedade de consumo é a fruição que nos permite lembrar que existimos. Apesar de diferentes contextos, nós mulheres, somos, em certa medida, parecidas, na culpa, na correria, na arte da viração para realizar, cumprir tarefas e nos realizar na conquista, qualquer uma nos basta, dependendo do momento.
Nós mulheres contemporâneas queremos mais, estamos ávidas por sensações, por produtos que de fato entreguem o que prometeram, e que faça diferença, estamos na era da performance, certo? Nós buscamos ludicidade para atenuar a invisibilidade da vida real, queremos garantia dos nossos direitos como consumidoras. Precisamos ser respeitadas e não mais aprisionadas em padrões inalcançáveis, queremos a beleza real, a liberdade para colorir, buscamos representatividade, mas sem filtro, apenas a verdade. Estamos cansadas de mensagens distantes que não faz eco, fica aí o alerta para marcas que continuam insistindo na boa e velha publicidade “Xuxa-usa-Monange” que impera nas redes sociais.
No era dos likes, o batom continua sendo um atrativo, mas a autenticidade vem se tornando o mais novo pão nosso de cada dia.
Hilaine Yaccoub é doutora em Antropologia do Consumo. Atua como palestrante, e consultora, realizando estudos que promovem ligação entre o mercado consumidor, o conhecimento acadêmico e as empresas. Para seguir nas redes sociais: @hilaine
Fotos de Pino Gomes. Diretor criativo de beleza, fotógrafo, especialista em efeitos especiais e maquiagem. Possui 30 anos de carreira, conheceu mais de 27 países fotografando e desenhando campanhas de marketing. Para seguir nas redes sociais: @pinogomes