Como fica o amor nos tempos do coronavírus
O sujeito abraça a mulher dele, e aquilo lhe parece desesperadamente lindo, porque ele sente que, de alguma forma, a vida deles está ameaçada
felipegiacomelli
Publicado em 16 de março de 2020 às 08h56.
Última atualização em 16 de março de 2020 às 12h59.
A tarde de domingo brilha como poucas neste verão chuvoso. O dia é lindo, mas paira uma expectativa sombria sobre a cidade.
Sabemos que circula entre nós, livremente, um vírus tão contagioso como a gripe e muito mais letal do que ela para grande parte da população, o novo coronavírus .
Ele surgiu na China no ano passado, causou devastação humana e econômica terríveis, e agora se espalha pela Europa. Itália e Espanha pararam tudo para evitar mais contaminações e novas mortes. Ninguém sai de casa, ninguém trabalha, todos esperam, sob uma espécie de lei marcial, que a epidemia consuma a si mesma.
Há uma atmosfera estranha de fim dos tempos nos vídeos e relatos que nos chegam desses lugares. Ruas vazias, pessoas cantando nas sacadas, proibições radicais de ir e vir. É como se o planeta tivesse retornado a tempos infinitamente mais incertos, quando as vidas eram curtas e as emoções, intensas.
Junto com a doença, se esgueira por baixo da porta um sentimento medieval de insegurança. A praga nos espreita na maçaneta da porta do prédio, na bilheteria do metrô, na máquina de ler cartões do supermercado, e isso faz com que cada momento de nossa existência vibre com o vigor extraordinário do medo.
O sujeito abraça a mulher dele, olhando a chuva do outro lado da janela, e aquilo lhe parece desesperadamente lindo, porque ele sente que, de alguma forma, a vida deles está ameaçada.
Esse é o pano de fundo das nossas emoções neste momento, o desamparo.
Todos sabemos, no interior dos nossos corações amedrontados, que um cenário semelhante ao europeu poderá se instalar nas grandes cidades brasileiras dentro de alguns dias, com consequências imprevisíveis.
Vivemos a calma antevéspera do que pode vir a ser um cataclismo.
Isso talvez explique a insistência de alguns em ir para a rua beber, confraternizar, flertar e transar, desafiando o bom-senso e as recomendações médicas. Os bares em Nova York estão cheios. Em São Paulo acontece a mesma coisa.
Negamos a realidade na mesma proporção em que ela nos serve más notícias. Ameaçados, queremos viver a qualquer custo, e danem-se as consequências.
Sair para a noite, meter-se em lugares abafados e cheios de gente e confraternizar fisicamente com estranhos – e estranhas – é uma forma agradável de ajudar o vírus a circular de forma rápida e atingir um número imenso de pessoas, muitas das quais adoecerão de forma grave e morrerão nos hospitais lotados, por falta de assistência e de maquinas de respiração artificial.
Entre os jovens, a irresponsabilidade diante do coronavírus não é uma forma de suicídio. Se parece mais com terrorismo epidemiológico.
(É mais difícil explicar o comportamento do presidente da República, um homem de 64 anos que, mesmo tendo tido contato direto com várias pessoas que adoeceram pelo vírus, saiu na rua no domingo e foi apertar as mãos de seus fãs e fazer selfies com eles. Esse gesto poderia ser descrito, objetivamente, como um esforço para espalhar o novo patógeno entre os moradores de Brasília, e não deve, de forma nenhuma, ser imitado).
Ah, sim, mas o que vamos fazer durante os próximos 45 dias, nos trancar em casa sozinhos e morrer de tédio e solidão?
Não necessariamente.
Há muitas formas de intimidade terrivelmente sensuais que podem ser compartilhadas à distância. Para quem nunca fez sexo por WhatsApp, talvez seja hora de experimentar: vídeo, texto, voz, as possibilidades são infinitas.
As pessoas devem evitar se tocar ou mesmo estar a menos de um metro uma das outras, mas isso não impede que elas estejam no mesmo aposento, um corpo nu ou vestido diante do outro, olhando e dizendo coisas, fantasiando a dois. Evitar o contágio não precisa ser uma experiência triste.
O tempo forçado de reclusão e afastamento também pode ser aproveitado para gestos românticos. Escrever cartas de amor, por exemplo, algo que as pessoas apaixonadas faziam muito no passado, quando não era possível se encontrar e muito menos transar. Talvez as cartas possam ser substituídas por vídeos sensuais.
Os casais, os crushs e os amigos podem combinar de ler o mesmo livro, ou ver os mesmos filmes e séries. Talvez, quem sabe, ouvir a discografia inteira de um artista ou de uma banda fabulosos. A imaginação e o tempo livre têm sido, desde sempre, a mãe e o pai de todos os prazeres.
Vendo as notícias que chegam dos países onde a epidemia já está instalada, eu me pergunto se nós, brasileiros, estamos cultural e emocionalmente preparados para a solidão e a ansiedade de uma longa quarentena, e temo que não. Somos gregários demais, afetuosos demais, ansiosos demais por viver. Sofreremos muito.
Faz dois dias, eu estava numa festa cortando pão e passando patê com a mesma faca que meia dúzia de pessoas. Era o aniversário de um amigo e todos nos cumprimentamos com abraços e beijos. Rimos, falamos e bebemos como se nada tivesse mudado. Mas já havia mudado, radicalmente.
Esta manhã, um dos amigos presentes à festa poderia ter telefonado para contar que a garota com quem ele havia ficado um dia antes teve uma febre repentina, foi ao hospital e testou positivo para o coronavírus. Se isso acontecesse, a vida de todas as pessoas naquele encontro teria sido tocada de forma irreversível.
Ainda bem que não aconteceu. Ainda.
Agora pouco, saiu de casa a minha irmã. Nós nos despedimos à distância no portão, como se não fôssemos nos ver por muito tempo. “Quero visitar vocês agora”, ela me disse ao telefone, antes de vir. “Depois a gente não sabe como será”.
De fato, não sabemos.
Não consigo me lembrar da última vez em que o futuro pareceu tão incerto. Nossas vidas reguladas e previsíveis, dominadas até ontem por coisas que nos pareciam urgentes, agora estão sendo sacudidas por dúvidas radicais, e talvez nunca mais sejam as mesmas.
Na Europa, os filósofos especulam que a experiência coletiva de medo e solidariedade trazida pelo vírus provocará mudanças profundas na mentalidade contemporânea.
Se as sociedades sobreviverem solidariamente ao coronavírus, amparadas pelo empenho dos profissionais de saúde e pela proteção dos serviços públicos, por que deverão retornar ao discurso egoísta de que o Estado é nosso inimigo, que o mercado é a única resposta e que estamos no mundo cada um por si e danem-se os outros?
Talvez desse pesadelo epidemiológico surjam coisas boas em nossas vidas privadas e públicas. Não seria a primeira vez que o planeta saiu de uma crise criando um jeito melhor de ser. Oxalá o novo coronavírus nos sirva para encontrar uma forma menos egoísta de gozar a vida, agora que fomos lembrados de que a nossa existência depende do cuidado e do amor dos outros.
A tarde de domingo brilha como poucas neste verão chuvoso. O dia é lindo, mas paira uma expectativa sombria sobre a cidade.
Sabemos que circula entre nós, livremente, um vírus tão contagioso como a gripe e muito mais letal do que ela para grande parte da população, o novo coronavírus .
Ele surgiu na China no ano passado, causou devastação humana e econômica terríveis, e agora se espalha pela Europa. Itália e Espanha pararam tudo para evitar mais contaminações e novas mortes. Ninguém sai de casa, ninguém trabalha, todos esperam, sob uma espécie de lei marcial, que a epidemia consuma a si mesma.
Há uma atmosfera estranha de fim dos tempos nos vídeos e relatos que nos chegam desses lugares. Ruas vazias, pessoas cantando nas sacadas, proibições radicais de ir e vir. É como se o planeta tivesse retornado a tempos infinitamente mais incertos, quando as vidas eram curtas e as emoções, intensas.
Junto com a doença, se esgueira por baixo da porta um sentimento medieval de insegurança. A praga nos espreita na maçaneta da porta do prédio, na bilheteria do metrô, na máquina de ler cartões do supermercado, e isso faz com que cada momento de nossa existência vibre com o vigor extraordinário do medo.
O sujeito abraça a mulher dele, olhando a chuva do outro lado da janela, e aquilo lhe parece desesperadamente lindo, porque ele sente que, de alguma forma, a vida deles está ameaçada.
Esse é o pano de fundo das nossas emoções neste momento, o desamparo.
Todos sabemos, no interior dos nossos corações amedrontados, que um cenário semelhante ao europeu poderá se instalar nas grandes cidades brasileiras dentro de alguns dias, com consequências imprevisíveis.
Vivemos a calma antevéspera do que pode vir a ser um cataclismo.
Isso talvez explique a insistência de alguns em ir para a rua beber, confraternizar, flertar e transar, desafiando o bom-senso e as recomendações médicas. Os bares em Nova York estão cheios. Em São Paulo acontece a mesma coisa.
Negamos a realidade na mesma proporção em que ela nos serve más notícias. Ameaçados, queremos viver a qualquer custo, e danem-se as consequências.
Sair para a noite, meter-se em lugares abafados e cheios de gente e confraternizar fisicamente com estranhos – e estranhas – é uma forma agradável de ajudar o vírus a circular de forma rápida e atingir um número imenso de pessoas, muitas das quais adoecerão de forma grave e morrerão nos hospitais lotados, por falta de assistência e de maquinas de respiração artificial.
Entre os jovens, a irresponsabilidade diante do coronavírus não é uma forma de suicídio. Se parece mais com terrorismo epidemiológico.
(É mais difícil explicar o comportamento do presidente da República, um homem de 64 anos que, mesmo tendo tido contato direto com várias pessoas que adoeceram pelo vírus, saiu na rua no domingo e foi apertar as mãos de seus fãs e fazer selfies com eles. Esse gesto poderia ser descrito, objetivamente, como um esforço para espalhar o novo patógeno entre os moradores de Brasília, e não deve, de forma nenhuma, ser imitado).
Ah, sim, mas o que vamos fazer durante os próximos 45 dias, nos trancar em casa sozinhos e morrer de tédio e solidão?
Não necessariamente.
Há muitas formas de intimidade terrivelmente sensuais que podem ser compartilhadas à distância. Para quem nunca fez sexo por WhatsApp, talvez seja hora de experimentar: vídeo, texto, voz, as possibilidades são infinitas.
As pessoas devem evitar se tocar ou mesmo estar a menos de um metro uma das outras, mas isso não impede que elas estejam no mesmo aposento, um corpo nu ou vestido diante do outro, olhando e dizendo coisas, fantasiando a dois. Evitar o contágio não precisa ser uma experiência triste.
O tempo forçado de reclusão e afastamento também pode ser aproveitado para gestos românticos. Escrever cartas de amor, por exemplo, algo que as pessoas apaixonadas faziam muito no passado, quando não era possível se encontrar e muito menos transar. Talvez as cartas possam ser substituídas por vídeos sensuais.
Os casais, os crushs e os amigos podem combinar de ler o mesmo livro, ou ver os mesmos filmes e séries. Talvez, quem sabe, ouvir a discografia inteira de um artista ou de uma banda fabulosos. A imaginação e o tempo livre têm sido, desde sempre, a mãe e o pai de todos os prazeres.
Vendo as notícias que chegam dos países onde a epidemia já está instalada, eu me pergunto se nós, brasileiros, estamos cultural e emocionalmente preparados para a solidão e a ansiedade de uma longa quarentena, e temo que não. Somos gregários demais, afetuosos demais, ansiosos demais por viver. Sofreremos muito.
Faz dois dias, eu estava numa festa cortando pão e passando patê com a mesma faca que meia dúzia de pessoas. Era o aniversário de um amigo e todos nos cumprimentamos com abraços e beijos. Rimos, falamos e bebemos como se nada tivesse mudado. Mas já havia mudado, radicalmente.
Esta manhã, um dos amigos presentes à festa poderia ter telefonado para contar que a garota com quem ele havia ficado um dia antes teve uma febre repentina, foi ao hospital e testou positivo para o coronavírus. Se isso acontecesse, a vida de todas as pessoas naquele encontro teria sido tocada de forma irreversível.
Ainda bem que não aconteceu. Ainda.
Agora pouco, saiu de casa a minha irmã. Nós nos despedimos à distância no portão, como se não fôssemos nos ver por muito tempo. “Quero visitar vocês agora”, ela me disse ao telefone, antes de vir. “Depois a gente não sabe como será”.
De fato, não sabemos.
Não consigo me lembrar da última vez em que o futuro pareceu tão incerto. Nossas vidas reguladas e previsíveis, dominadas até ontem por coisas que nos pareciam urgentes, agora estão sendo sacudidas por dúvidas radicais, e talvez nunca mais sejam as mesmas.
Na Europa, os filósofos especulam que a experiência coletiva de medo e solidariedade trazida pelo vírus provocará mudanças profundas na mentalidade contemporânea.
Se as sociedades sobreviverem solidariamente ao coronavírus, amparadas pelo empenho dos profissionais de saúde e pela proteção dos serviços públicos, por que deverão retornar ao discurso egoísta de que o Estado é nosso inimigo, que o mercado é a única resposta e que estamos no mundo cada um por si e danem-se os outros?
Talvez desse pesadelo epidemiológico surjam coisas boas em nossas vidas privadas e públicas. Não seria a primeira vez que o planeta saiu de uma crise criando um jeito melhor de ser. Oxalá o novo coronavírus nos sirva para encontrar uma forma menos egoísta de gozar a vida, agora que fomos lembrados de que a nossa existência depende do cuidado e do amor dos outros.