Exame Logo

O absurdo das guerras comerciais dos EUA

O déficit comercial dos EUA é uma medida do desequilíbrio macroeconômico que as políticas peculiares de Trump trouxeram

TRUMP E XI: o déficit comercial dos EUA não é indicador de práticas desleais de outros| Jonathan Ernst/Reuters / (Jonathan Ernst/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 25 de março de 2019 às 17h14.

NOVA YORK – Don Quixote lutava contra moinhos de vento. O presidente dos EUA, Donald Trump, luta contra os déficits comerciais. Ambas as batalhas são absurdas, mas pelo menos a de D.  Quixote era matizada pelo idealismo. Trump está mergulhado numa enraivecida ignorância.

Na semana passada, foi anunciado que o déficit internacional dos EUA em bens e serviços havia aumentado para US$ 621 bilhões, apesar da promessa de Trump de que as duras políticas comerciais vis-à-vis Canadá e México, Europa e China reduziriam o déficit. Trump acredita que o déficit comercial dos EUA reflete as práticas injustas de suas contrapartes. Ele prometera acabar com essas práticas injustas e negociar acordos comerciais mais justos com esses países.

No entanto, o déficit comercial dos EUA não é indicador de práticas desleais de outros, e as negociações de Trump não irão reverter seu crescimento. O déficit é, ao contrário, uma medida do desequilíbrio macroeconômico, que as políticas peculiares de Trump – especialmente o corte de impostos em 2017 – serviu para exacerbar. Sua persistência – na verdade, sua ampliação – era totalmente previsível por qualquer um que tenha chegado à segunda semana de um curso de graduação em macroeconomia internacional.

Consideremos um indivíduo que ganha renda X e gasta Y. Se considerarmos que os ganhos do indivíduo são suas “exportações” de bens e serviços e o gasto, suas “importações” de bens e serviços, fica muito claro que esse indivíduo gera um excedente de exportações sobre importações caso sua renda seja maior que seus gastos. Um déficit significa que ele gasta mais do que ganha.

O mesmo ocorre quando se adicionam rendimentos e gastos numa economia, incluindo os setores privado e público. Uma economia apresenta superávit em sua conta corrente (a medida mais ampla de seu saldo internacional) quando a renda nacional bruta (RNB) excede os gastos domésticos; um déficit quando os gastos domésticos excedem a RNB. Os economistas usam o termo “absorção doméstica” para o gasto total, somando tanto o consumo doméstico quanto os gastos com investimento doméstico. A conta corrente pode então ser definida como saldo da RNB e absorção interna.

É importante notar que o excesso de renda sobre o consumo é o mesmo que a poupança doméstica. Portanto, o excesso de renda sobre absorção pode ser declarado de forma equivalente ao excesso de poupança doméstica sobre o investimento doméstico. Quando uma economia poupa, mais do que investe gera um superávit em conta corrente; quando economiza menos do que investe, gera um déficit em conta corrente.

Observe-se que a política comercial está ausente de toda a equação. Um déficit na conta corrente é puramente uma medida macroeconômica: a falta de poupança em relação ao investimento. O déficit externo dos EUA não é de forma alguma, indicador de práticas comerciais desleais do Canadá e do México, da União Européia ou da China.

Trump pensa assim porque ele é ignorante. E sua ignorância ocupa um lugar central no discurso público dos EUA principalmente por causa da pusilanimidade dos conselheiros de Trump (que, reconhecidamente, tem perdido seus empregos quando o contrariam), do Partido Republicano e dos CEOs americanos (que se recusam a rejeitar os absurdos de Trump).

Os EUA passaram de superávits em conta corrente para déficits crônicos a partir da década de 1980, principalmente como resultado de uma série de cortes de impostos sob os governos dos presidentes Ronald Reagan, George W. Bush e Trump. Cortes em impostos não atrelados a cortes no consumo do governo reduzem a poupança do governo. Uma queda na poupança do governo pode ser parcialmente compensada por um aumento na poupança privada – por exemplo, quando empresas e lares entendem os cortes de impostos como temporários. No entanto, tal compensação geralmente será incompleta. Os cortes de impostos, portanto, tendem a reduzir a poupança doméstica, o que, por sua vez, leva a conta corrente a um déficit mais profundo.

Dados do Banco do Federal Reserve de Saint Louis mostram que, nos anos 70, a média de poupança do governo dos EUA era de -0,1% do RNB, enquanto a poupança privada era, em média, 22,2% do RNB. A poupança doméstica foi, portanto, 22,1% do RNB. Nos primeiros três trimestres de 2018, a poupança do governo dos EUA foi de -3,1% do RNB, enquanto a poupança privada foi de 21,8% do RNB, de modo que a poupança interna foi de 18,7% do RNB. Por sua vez, o saldo da conta corrente dos EUA passou de um pequeno excedente de 0,2% do RNB nos anos 70 para um deficit de 2,4% do RNB nos primeiros três trimestres de 2018.

Como resultado dos cortes de impostos dos EUA em 2017, a economia do governo deverá cair cerca de 1% do RNB. A poupança privada pode aumentar em talvez metade disso, em antecipação aos aumentos de impostos à frente, com um aumento marginal no investimento das empresas e um investimento em declínio na política habitacional, produzindo um modesto efeito global. O resultado líquido é, portanto, provavelmente, um aumento do déficit em conta corrente, talvez de cerca de 0,5% do RNB.

A política tributária característica de Trump é, portanto, a principal explicação do modesto aumento do desequilíbrio internacional. Mais uma vez, a política comercial torna-se bastante irrelevante para o resultado.

No entanto, a política comercial certamente não é irrelevante para a economia global. Longe disso. Enquanto Trump persegue uma ilusão, a economia mundial tornou-se mais instável e as relações entre os EUA e a maior parte do resto do mundo pioraram palpavelmente. O próprio Trump é desprezado na maioria dos lugares, e o respeito pela liderança dos Estados Unidos despencou no mundo inteiro.

É claro que as políticas comerciais de Trump não apenas buscam melhorar o equilíbrio externo dos Estados Unidos, mas também representam uma tentativa equivocada de conter a China e até enfraquecer a Europa. Esse objetivo reflete uma visão de mundo neoconservadora em que a segurança nacional reflete uma luta de soma zero entre os Estados-Nação. Os sucessos econômicos dos competidores americanos são considerados ameaças à primazia global americana e, portanto, à segurança norte-americana.

Essas visões refletem vertentes de beligerância e paranóia que têm sido uma característica da política americana. Elas são um convite para um interminável conflito internacional, e Trump e seus áulicos estão dando a eles liberdade total.  Vistas sob esse contexto, as guerras comerciais mal concebidas de Trump são quase tão previsíveis quanto os desequilíbrios macroeconômicos que elas, tão espetacularmente, falharam em administrar.

* Jeffrey Sachs é diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade Columbia

Veja também

NOVA YORK – Don Quixote lutava contra moinhos de vento. O presidente dos EUA, Donald Trump, luta contra os déficits comerciais. Ambas as batalhas são absurdas, mas pelo menos a de D.  Quixote era matizada pelo idealismo. Trump está mergulhado numa enraivecida ignorância.

Na semana passada, foi anunciado que o déficit internacional dos EUA em bens e serviços havia aumentado para US$ 621 bilhões, apesar da promessa de Trump de que as duras políticas comerciais vis-à-vis Canadá e México, Europa e China reduziriam o déficit. Trump acredita que o déficit comercial dos EUA reflete as práticas injustas de suas contrapartes. Ele prometera acabar com essas práticas injustas e negociar acordos comerciais mais justos com esses países.

No entanto, o déficit comercial dos EUA não é indicador de práticas desleais de outros, e as negociações de Trump não irão reverter seu crescimento. O déficit é, ao contrário, uma medida do desequilíbrio macroeconômico, que as políticas peculiares de Trump – especialmente o corte de impostos em 2017 – serviu para exacerbar. Sua persistência – na verdade, sua ampliação – era totalmente previsível por qualquer um que tenha chegado à segunda semana de um curso de graduação em macroeconomia internacional.

Consideremos um indivíduo que ganha renda X e gasta Y. Se considerarmos que os ganhos do indivíduo são suas “exportações” de bens e serviços e o gasto, suas “importações” de bens e serviços, fica muito claro que esse indivíduo gera um excedente de exportações sobre importações caso sua renda seja maior que seus gastos. Um déficit significa que ele gasta mais do que ganha.

O mesmo ocorre quando se adicionam rendimentos e gastos numa economia, incluindo os setores privado e público. Uma economia apresenta superávit em sua conta corrente (a medida mais ampla de seu saldo internacional) quando a renda nacional bruta (RNB) excede os gastos domésticos; um déficit quando os gastos domésticos excedem a RNB. Os economistas usam o termo “absorção doméstica” para o gasto total, somando tanto o consumo doméstico quanto os gastos com investimento doméstico. A conta corrente pode então ser definida como saldo da RNB e absorção interna.

É importante notar que o excesso de renda sobre o consumo é o mesmo que a poupança doméstica. Portanto, o excesso de renda sobre absorção pode ser declarado de forma equivalente ao excesso de poupança doméstica sobre o investimento doméstico. Quando uma economia poupa, mais do que investe gera um superávit em conta corrente; quando economiza menos do que investe, gera um déficit em conta corrente.

Observe-se que a política comercial está ausente de toda a equação. Um déficit na conta corrente é puramente uma medida macroeconômica: a falta de poupança em relação ao investimento. O déficit externo dos EUA não é de forma alguma, indicador de práticas comerciais desleais do Canadá e do México, da União Européia ou da China.

Trump pensa assim porque ele é ignorante. E sua ignorância ocupa um lugar central no discurso público dos EUA principalmente por causa da pusilanimidade dos conselheiros de Trump (que, reconhecidamente, tem perdido seus empregos quando o contrariam), do Partido Republicano e dos CEOs americanos (que se recusam a rejeitar os absurdos de Trump).

Os EUA passaram de superávits em conta corrente para déficits crônicos a partir da década de 1980, principalmente como resultado de uma série de cortes de impostos sob os governos dos presidentes Ronald Reagan, George W. Bush e Trump. Cortes em impostos não atrelados a cortes no consumo do governo reduzem a poupança do governo. Uma queda na poupança do governo pode ser parcialmente compensada por um aumento na poupança privada – por exemplo, quando empresas e lares entendem os cortes de impostos como temporários. No entanto, tal compensação geralmente será incompleta. Os cortes de impostos, portanto, tendem a reduzir a poupança doméstica, o que, por sua vez, leva a conta corrente a um déficit mais profundo.

Dados do Banco do Federal Reserve de Saint Louis mostram que, nos anos 70, a média de poupança do governo dos EUA era de -0,1% do RNB, enquanto a poupança privada era, em média, 22,2% do RNB. A poupança doméstica foi, portanto, 22,1% do RNB. Nos primeiros três trimestres de 2018, a poupança do governo dos EUA foi de -3,1% do RNB, enquanto a poupança privada foi de 21,8% do RNB, de modo que a poupança interna foi de 18,7% do RNB. Por sua vez, o saldo da conta corrente dos EUA passou de um pequeno excedente de 0,2% do RNB nos anos 70 para um deficit de 2,4% do RNB nos primeiros três trimestres de 2018.

Como resultado dos cortes de impostos dos EUA em 2017, a economia do governo deverá cair cerca de 1% do RNB. A poupança privada pode aumentar em talvez metade disso, em antecipação aos aumentos de impostos à frente, com um aumento marginal no investimento das empresas e um investimento em declínio na política habitacional, produzindo um modesto efeito global. O resultado líquido é, portanto, provavelmente, um aumento do déficit em conta corrente, talvez de cerca de 0,5% do RNB.

A política tributária característica de Trump é, portanto, a principal explicação do modesto aumento do desequilíbrio internacional. Mais uma vez, a política comercial torna-se bastante irrelevante para o resultado.

No entanto, a política comercial certamente não é irrelevante para a economia global. Longe disso. Enquanto Trump persegue uma ilusão, a economia mundial tornou-se mais instável e as relações entre os EUA e a maior parte do resto do mundo pioraram palpavelmente. O próprio Trump é desprezado na maioria dos lugares, e o respeito pela liderança dos Estados Unidos despencou no mundo inteiro.

É claro que as políticas comerciais de Trump não apenas buscam melhorar o equilíbrio externo dos Estados Unidos, mas também representam uma tentativa equivocada de conter a China e até enfraquecer a Europa. Esse objetivo reflete uma visão de mundo neoconservadora em que a segurança nacional reflete uma luta de soma zero entre os Estados-Nação. Os sucessos econômicos dos competidores americanos são considerados ameaças à primazia global americana e, portanto, à segurança norte-americana.

Essas visões refletem vertentes de beligerância e paranóia que têm sido uma característica da política americana. Elas são um convite para um interminável conflito internacional, e Trump e seus áulicos estão dando a eles liberdade total.  Vistas sob esse contexto, as guerras comerciais mal concebidas de Trump são quase tão previsíveis quanto os desequilíbrios macroeconômicos que elas, tão espetacularmente, falharam em administrar.

* Jeffrey Sachs é diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade Columbia

Acompanhe tudo sobre:Exame Hoje

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se