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No atual mundo dos games, todo celular pode ser um joystick

Jogos migram cada vez mais dos consoles e PCs para celulares e ganham público adulto; mercado deve crescer 15,5% no Brasil, 4 pontos acima da média global

 (DircinhaSW/Getty Images)
(DircinhaSW/Getty Images)
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Opinião

Publicado em 5 de fevereiro de 2022 às, 09h00.

Última atualização em 7 de fevereiro de 2022 às, 14h44.

Por Luis Cerqueira e Tiago Barduchi*

Os games são um fenômeno cultural e estético essencial do nosso tempo e, entre pessoas com menos de 30 anos, é cada vez mais um ponto-chave de socialização. O tamanho imponente desse mercado global, maior que os mercados mundiais de cinema (120 bi) e música (60 bi), causa surpresa para muitos. Mas não devemos culpá-los de desinformação: os meandros da linguagem mostram que, há muito tempo, jogo não é considerado coisa séria — “ludus”, ou “jogo” em latim, gerou em português desde lúdico até ludibriar e conluio. E “jogo” vem de “jocus”, cujo sentido era gracejo ou zombaria.

Se as palavras pregam peças, os números confirmam a seriedade desse mercado, de 161 bilhões de dólares em 2019 e crescendo 14% a.a. desde 2015. Pelas expectativas, deve continuar em franca ascensão, em uma média de 8% a.a., impulsionado pela democratização do acesso às plataformas, cada vez menos dependente de consoles, e pelo amadurecimento da indústria e ampliação do público, cada vez menos restrito às crianças. Houve também uma contribuição do isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19, que aumentou a demanda por entretenimento em casa. Dentro desse mercado, o crescimento mais expressivo  são dos jogos para celular.

Com uma plataforma que está sempre na mão da maior parte da população e um desenvolvimento mais barato, mais rápido e mais fácil de gerenciar, a tendência mundial é o mercado de jogos para celular crescer mais rápido do que os jogos de console e PC. Até 2023, os jogos para celular devem alcançar cerca de 60% do mercado mundial. Nas regiões em desenvolvimento, como América Latina e Brasil, essa tendência é ainda mais forte.

Embora a América Latina ainda represente uma fatia pequena das receitas, com USD 5,4 bi, ou cerca de 3% do global, as projeções apontam que os números na região crescerão mais do que o resto do mundo, impulsionados sobretudo pelo mercado brasileiro. Com ~1% do mercado global, o Brasil ainda tem receitas menores que seus pares, mas deve crescer a cerca de 10% a.a. Só o mercado de jogos para celular deve crescer 15,5% e ultrapassar o crescimento global, que deve girar em 11,7%. Para quem estiver disposto a investir nesse potencial, apresentamos neste artigo um panorama geral do mercado e das estratégias mais promissoras.

Fatores que contribuem para crescimento do mercado de games em celulares no Brasil:

- 60% da população brasileira tem entre 15 e 54 anos (~ 125 milhões)

- temos uma ampla penetração de acesso à internet — cerca de 82% dos brasileiros (~150 milhões) com mais de 10 anos têm acesso à internet;

- a penetração do smartphone chegou a ~80% no final de 2020, em um crescimento de 12% a.a. entre 2014-20

- 83% dos jogadores (~52 milhões de pessoas) usam o celular como principal plataforma de jogos

- o número de entusiastas do e-sport — ou pessoas que assistem a competições organizadas de jogos eletrônicos, da mesma forma como esportes na TV — cresceu no Brasil de 7,6 milhões em 2018 para 12,6 milhões em 2021 (~ 18% a.a.)

- depreciação da moeda encarece a venda de consoles no país

Os desafios do cenário brasileiro incluem:

- A penetração da banda larga é de apenas 35%, apesar da alta presença de smartphones

- ~70% dos smartphones são de gama média, com recursos básicos

- Proficiência limitada em inglês

- Apenas 20% dos cartões de crédito brasileiros permitem compras internacionais

- Baixo poder de compra médio: PIB per capita do Brasil de ~USD 8.96K  está abaixo da média global de ~USD 11.86K e está classificado em 95º de um total de 223

- Complexidade para abrir e fazer negócios locais, com altos custos para importação de produtos

- Alta volatilidade

Para obter sucesso no mercado de games brasileiro, os interessados em investir no país devem garantir compatibilidade entre telefones e oferecer jogos gratuitos com baixas exigências em termos de hardware e dados, além de estratégias de monetização em microtransações. Vejamos a seguir mais detalhes sobre essa abordagem.

Jogos pagos ou gratuitos? A resposta é: freemium

Os jogos que mais geram receita não são necessariamente os jogos mais baixados. Entre os 100 jogos de celular mais rentáveis no mundo, o jogos pagos representam hoje apenas 1%. No Brasil, são 0,1%. Nenhum jogo pago entrou na lista dos 10 jogos de maior bilheteria em usuários de Android e iPhone no mundo. Entre os usuários brasileiros de iPhone, apenas o Minecraft classificou-se em oitavo entre os 10 primeiros — usuários de iOS tendem a gastar mais, mas representam apenas 5% do mercado.

Jogos pagos de sucesso são aqueles que, além de estarem presentes em plataformas de assinatura como Google Play Pass e Apple Arcade, contam com uma base de usuários forte, geralmente consequência de serem jogos clássicos ou de marca reconhecida. É uma abordagem com muitos pré-requisitos e cuja fatia de mercado diminuiu 5% em 2019, para $ 18,9 bilhões de dólares. No Brasil, os jogos de sucessos pagos são clássicos de PC e consoles em versões para celular.

Os jogos gratuitos, por sua vez, dependem de uma grande base de jogadores, que geram monetização pela visualização de anúncios ou, no modelo conhecido como freemium, por compras dentro do aplicativo, geralmente microtransações. Em 2019, as receitas de jogos gratuitos aumentaram 6% para $ 87,1 bilhões de dólares. Para serem bem-sucedidos, jogos gratuitos precisam de um modelo de monetização alinhado com a cultura local — principalmente em jogos multiplayer freemium, os jogadores aceitam monetizações que não alterem a justiça do jogo, ou seja, não vale pagar para ganhar. Mas valem monetizações para acelerar a evolução de personagens, itens cosméticos e visuais que não favorecem diretamente o desempenho do jogador que pagou contra um usuário gratuito, mas dão alguma demonstração de status. Vendas limitadas também geram a sensação de exclusividade e tendem a trazer mais sucesso.

No Brasil, dado que 70% dos smartphones é de gama média e a penetração da banda larga é de apenas 35%, é essencial ter barreiras baixas de entrada, ou seja, baixos requisitos de hardware e dados. Isso explica, em parte, por que os jogos mais lucrativos no Brasil não são necessariamente aqueles das tendências globais — existe apenas 50% de sobreposição entre os dois rankings. O Free Fire, da SEA, é um bom exemplo. Com requisitos baixos tanto em hardware quanto em dados, ele é o mais popular no Brasil, e está em 8o lugar no resto do mundo. Mas seu sucesso não se deve apenas às barreiras baixas: também investem em conteúdo local para brasileiros, monetização em real, parcerias com influenciadores, eventos e campeonatos de eSports, valorizando e galvanizando uma comunidade coesa de jogadores.

Gamers brasileiros são bastante conscientes na hora de usar dinheiro e 80% costuma evitar gastos — 40% usam apenas conteúdo gratuito, 20% optam por assistir a anúncios e 20% compensam despesas com ganhos promocionais, como indicação de amigos ou com ganhos de competições de jogos online. Muitos preferem aguardar promoções especiais e eventos. Também mostram preferência por itens colecionáveis e possibilidades estéticas e de personalização. Por gostarem de exibir seu status e habilidades, os sistemas de rankings costumam fazer sucesso.

Perfil dos gamers brasileiros

Para fazer uma análise do potencial do mercado brasileiro de jogos para celular, a McKinsey realizou uma pesquisa quantitativa com 400 pessoas para identificar qual o perfil dos jogadores brasileiros.

Os resultados mostram três grandes arquétipos: os que jogam pelo passatempo, os casuais e os jogadores frequentes. Desses três arquétipos principais, os jogadores de passatempo e os casuais representam a maioria, com cerca de 85% do total, mas os jogadores frequentes, apesar de serem o menor grupo, representam as oportunidades de receita mais atraentes.

Os jogadores de passatempo (40% dos usuários com 10% das receitas) consideram jogos uma maneira de passar o tempo enquanto esperam ou se deslocam. Têm uma forte preferência por quebra-cabeças e jogos de palavras e se divertem sozinhos com jogos simples. Jogam em média 4h15 por semana.

Os jogadores casuais (45% dos usuários com 37% das receitas) se divertem com jogos engraçados e populares, sozinhos ou com amigos. Também valorizam jogos simples e de apenas um jogador, mas exploram outras categorias, como esportes e aventura. Jogam em média 5h por semana.

Por fim, os jogadores frequentes (15% dos usuários com 53% das receitas) dedicam tempo e atenção aos games, participam de grupos, criam personagens de jogos imersivos, entre outras atividades. Valorizam a qualidade do jogo e a jogabilidade, com preferência por temas de aventura ou sobrevivência. É a única categoria com maioria de homens e jogam em média 6h40 por semana.

Os não-jogadores também foram analisados. Cerca de 38% deles poderiam se interessar em jogos para celular, especialmente quebra-cabeças e jogos de palavras.

Oportunidades de crescimento no mercado brasileiro

Com base nas pesquisas da McKinsey, os interessados em investir no mercado brasileiro podem aproveitar os exemplos de sucesso e replicar suas estratégias com foco em gêneros e perfis específicos. A fatia mais promissora são os jogadores frequentes nas categorias de aventura, esportes e tiro. Essas categorias representam um mercado potencial total de cerca de 225-310 milhões de reais em receitas mensais. Conquistar uma fatia de 10% deste mercado total representaria uma oportunidade anual de cerca de 270-375 milhões de reais. Só o perfil de jogadores frequentes representa uma oportunidade anual de cerca de 2,3-2,9 bilhões de reais.

A monetização dentro do jogo é cada vez mais usada para geração de receita e tem sido a estratégia de sucesso dos desenvolvedores líderes – uma equipe local dedicada à monetização pode organizar eventos dentro do jogo e ajustar os preços de acordo com a demanda local. Como não existem limites para monetização – bens virtuais custam pouco ou nenhum dinheiro para serem criados – isso vale até para os jogos já conhecidos e estabelecidos, que também estão adotando microtransações e o modelo de “Games As A Service”. No Brasil, além dos baixos requisitos de sistema e uso de dados, é importante ter foco em atividades sociais, na competição e socialização, reforçando os laços da comunidade de jogadores.

Entre as abordagens possíveis estão criar recompensas para jogadores que convidam amigos para jogar junto, parcerias com influenciadores e sites de jogos para divulgação – a rede social Twitch, dedicada ao tema de games, é hoje um canal incontornável – além de criação de conteúdo, eventos locais e até criação de ligas regionais e nacionais para campeonatos de eSports com streaming ao vivo. Tudo para reforçar o boca-a-boca e reduzir ao máximo o custo de marketing e de aquisição de clientes: cerca de 56% das pessoas que jogam em celular recebem recomendações de jogos de amigos, família, influenciadores ou sites de jogos.

Por fim, para guiar a implementação de uma estratégia de produto bem-sucedida no universo dos games, propomos aqui uma reflexão sobre três variáveis fundamentais:

Insights sobre os gamers e segmentação

  1. Para empresas que já estão no mercado, você sabe quem são seus jogadores? Quantos deles querem que você mude seu modelo de negócios?
  2. Como você pretende competir com outras ofertas free-to-play (F2P) sem criar uma oferta “me-too”, ou seja, algo praticamente idêntico a um produto reconhecido?
  3. Como você pode redefinir o mercado potencial almejado?

Cultura de testes e analytics

  1. Quão sensíveis são os seus clientes às mudanças de preços?
  2. Por quais elementos do jogo os seus clientes estão mais dispostos a pagar, e em que momento?
  3. Qual é o ponto ideal para equilibrar, de forma eficaz, aquisição de usuários versus perda de receita com distribuição gratuita de conteúdo?

Alinhando proposta de valor e precificação

  1. Você quer alterar a proposta de valor/monetização de jogos importantes ou investir em novas franquias que ofereçam uma proposta de valor diferente?
  2. Como você pode garantir conteúdo relevante para os diferentes modelos de monetização e evitar a canibalização?

Conquistar uma participação no mercado de games brasileiro exigirá segmentação de jogadores e investir em categorias específicas, implantando conteúdo local. No entanto, uma piora do desemprego (atualmente em 12,1%) pode afetar a disposição do consumidor em pagar. Os tempos são incertos, mas é hora de fazer apostas.

Luis Cerqueira é sócio da McKinsey & Copmany e Tiago Barduchi é sócio associado da McKinsey.