Istambul Mostra Como se Conquista a Democracia
A coalizão de oposição, liderada pelo Partido Republicano do Povo, venceu nas três áreas metropolitanas mais importantes da Turquia
Da Redação
Publicado em 5 de julho de 2019 às 13h25.
ISTAMBUL – Quando o Alto Conselho Eleitoral da Turquia, dominado pelos membros nomeados pelo presidente Recep Tayyip Erdoğan, anulou a importantíssima eleição municipal de Istambul em 6 de maio, o mundo tinha razão em se preocupar. Mas agora que outra votação foi realizada, é Erdoğan quem deve se preocupar.
As eleições locais deste ano – originalmente realizadas em 31 de março – foram amplamente consideradas como referendo sobre o regime autoritário de Erdoğan. Com a nova votação em Istambul, os resultados completos entram agora em vigor. A coalizão de oposição, liderada pelo Partido Republicano do Povo (CHP), venceu nas três áreas metropolitanas mais importantes da Turquia: Ancara, Izmir e Istambul. Como capital econômica do país e cidade mais populosa, Istambul era o grande prêmio. Além de sua importância simbólica, também confere poder e significativos recursos (e oportunidades de corrupção) àqueles que a controlam. Como o próprio Erdoğan disse, “quem ganha em Istambul ganha a Turquia”.
Tal como os líderes populistas nas Filipinas, Brasil, Hungria, Polônia e outros países, Erdoğan, que começou sua própria carreira política como prefeito de Istambul na década de 1990, parecia estar preparado para fazer o que seria necessário para reverter um resultado eleitoral que não saiu do seu jeito. Mas a oposição ignorou aqueles que queriam boicotar a reeleição e, em vez disso, entrou na nova eleição com uma resolução ainda mais forte, derrotando o Partido da Justiça e Desenvolvimento de Erdoğan (AKP), que governa a Turquia desde 2002, e Istambul desde 1994. O novo prefeito, Ekrem Imamoğlu, do CHP, obteve mais de 54% dos votos contra o ex-Primeiro ministro Binali Yıldırım, do AKP.
A importância desse resultado ultrapassa os limites de Istambul e até mesmo da Turquia, porque coloca em evidência a maior fraqueza dos populistas autoritários: as urnas. Os populistas de hoje não são os mesmos homens fortes do passado na América Latina, no sul da Ásia e na Turquia, os que usavam uniformes do exército e botas de cano alto, e tomavam o poder através de golpes de estado. Aqueles inimigos da democracia, como Augusto Pinochet no Chile, mantiveram suas posições por meio de pura violência, assassinando, torturando e aprisionando sistematicamente qualquer um que se opusesse a seu regime.
Em contrapartida, os autoritários populistas das últimas duas décadas chegaram ao poder por meio de eleições e (normalmente) não matam seus oponentes. Na maioria dos casos, foram eleitos porque articularam e depois utilizaram o descontentamento público com as desigualdades econômicas e mobilizaram as divisões culturais. Uma vez no poder, legitimaram seus governos através de manifestações de apoio eleitoral, obtidas pela definição de seus partidários em contraposição aos outros membros (menos dignos) da sociedade.
Evidentemente, o problema, é que uma estratégia baseada na polarização do eleitorado não implica em compromisso com eleições livres e justas, muito menos com o respeito aos direitos civis. Ainda assim, é importante lembrar que eles, em última instância, confiam no verniz do apoio da maioria, razão pela qual sentem a necessidade de manipular as eleições a seu favor e pressionar os meios de comunicação a falar bem deles.
Erdoğan usou muito esse manual. Ele subiu ao poder explorando as reivindicações dos turcos mais religiosos, menos instruídos e menos ocidentalizados, que se sentiam desfavorecidos do ponto de vista político, economicamente marginalizados e culturalmente menosprezados. (Na verdade, representantes dessa legião haviam compartilhado o poder de várias formas por décadas, mas se tornaram cada vez mais ambiciosos no processo.)
Uma vez no poder, Erdoğan reafirmou sua popularidade entre “o povo” e desfrutou de várias vitórias eleitorais nos últimos 17 anos. Mas também foi se tornando cada vez mais autoritário. A mídia impressa e as emissoras de televisão da Turquia não têm nenhuma independência e sua burocracia, poder judiciário e forças de segurança são todas controladas por seguidores de Erdoğan.
Até recentemente, esse desequilíbrio em campo significava que Erdoğan poderia continuar ganhando eleições e firmando sua legitimidade no apoio popular. Mas quando o AKP perdeu a maioria parlamentar nas eleições gerais de junho de 2015, Erdoğan teve que se curvar. Como Presidente, bloqueou a formação de um governo de coalizão e forçou uma nova eleição em um ambiente mais polarizado e cada vez mais repressivo. Como saiu-se vitorioso nessa nova eleição, sua legitimidade e autoridade permaneceram intactas.
A tentativa de Erdoğan de reverter o resultado da eleição de Istambul seguiu a mesma lógica. Mas, tendo perdido, seu calcanhar de Aquiles ficou exposto. Quem ganha nas urnas perde pelas urnas. É onde os autoritários populistas de hoje devem ser derrotados e onde a reconstrução da democracia pode se iniciar.
A atual e óbvia exceção é a Venezuela, sob o comando do presidente Nicolás Maduro. Mas enquanto Maduro chegou ao poder inicialmente através de uma eleição, seu governo sempre foi baseado em seu controle do exército, e desde então ele desistiu de qualquer pretensão de legitimidade popular. O Brasil, as Filipinas e muitos outros países sob governo populista não estão no mesmo barco. Para eles e para os próprios turcos, a eleição de Istambul traz uma importante lição.
Durante muito tempo, o CHP não foi capaz de fornecer um eficaz contrapeso ao AKP, porque recusou-se a desenvolver uma plataforma popular, agarrando-se ao seu papel de partido do secularismo rígido. Mas isso mudou com Imamoğlu, que realizou uma campanha positiva centrada na melhoria do bem-estar social, na prestação de melhores serviços municipais, na redução do desperdício, no fim da corrupção e – no caso da nova votação – na restauração da democracia. Depois de tudo isso, ele ganhou porque se libertou dos limites das polarizadoras e retrógradas linhas ideológicas. Uma abordagem similarmente pragmática que se concentra em melhorar a vida das pessoas representaria um importante desafio para populistas em outros lugares.
Por certo, esse não é o fim do governo do AKP na Turquia. Erdoğan não precisa ser reeleito até 2023, e seu partido detém uma forte maioria parlamentar. Para reforçar sua credibilidade, o CHP deve cumprir suas promessas de campanha, o que não será fácil com Erdoğan tentando prejudicá-lo a todo instante. Mas, por fim, os populistas obtêm seu poder a partir de queixas reais. É apenas atendendo a essas reivindicações, não ignorando-as, que os partidos de oposição podem arrancar a democracia de seus usurpadores populistas.
Daron Acemoglu é Professor de Economia no MIT.
James A. Robinson é Professor de Conflitos Globais na Universidade de Chicago.
Ambos são coautores do livro Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty . (Porque Fracassam as Nações: As Origens do Poder, da Prosperidade e da Pobreza)
ISTAMBUL – Quando o Alto Conselho Eleitoral da Turquia, dominado pelos membros nomeados pelo presidente Recep Tayyip Erdoğan, anulou a importantíssima eleição municipal de Istambul em 6 de maio, o mundo tinha razão em se preocupar. Mas agora que outra votação foi realizada, é Erdoğan quem deve se preocupar.
As eleições locais deste ano – originalmente realizadas em 31 de março – foram amplamente consideradas como referendo sobre o regime autoritário de Erdoğan. Com a nova votação em Istambul, os resultados completos entram agora em vigor. A coalizão de oposição, liderada pelo Partido Republicano do Povo (CHP), venceu nas três áreas metropolitanas mais importantes da Turquia: Ancara, Izmir e Istambul. Como capital econômica do país e cidade mais populosa, Istambul era o grande prêmio. Além de sua importância simbólica, também confere poder e significativos recursos (e oportunidades de corrupção) àqueles que a controlam. Como o próprio Erdoğan disse, “quem ganha em Istambul ganha a Turquia”.
Tal como os líderes populistas nas Filipinas, Brasil, Hungria, Polônia e outros países, Erdoğan, que começou sua própria carreira política como prefeito de Istambul na década de 1990, parecia estar preparado para fazer o que seria necessário para reverter um resultado eleitoral que não saiu do seu jeito. Mas a oposição ignorou aqueles que queriam boicotar a reeleição e, em vez disso, entrou na nova eleição com uma resolução ainda mais forte, derrotando o Partido da Justiça e Desenvolvimento de Erdoğan (AKP), que governa a Turquia desde 2002, e Istambul desde 1994. O novo prefeito, Ekrem Imamoğlu, do CHP, obteve mais de 54% dos votos contra o ex-Primeiro ministro Binali Yıldırım, do AKP.
A importância desse resultado ultrapassa os limites de Istambul e até mesmo da Turquia, porque coloca em evidência a maior fraqueza dos populistas autoritários: as urnas. Os populistas de hoje não são os mesmos homens fortes do passado na América Latina, no sul da Ásia e na Turquia, os que usavam uniformes do exército e botas de cano alto, e tomavam o poder através de golpes de estado. Aqueles inimigos da democracia, como Augusto Pinochet no Chile, mantiveram suas posições por meio de pura violência, assassinando, torturando e aprisionando sistematicamente qualquer um que se opusesse a seu regime.
Em contrapartida, os autoritários populistas das últimas duas décadas chegaram ao poder por meio de eleições e (normalmente) não matam seus oponentes. Na maioria dos casos, foram eleitos porque articularam e depois utilizaram o descontentamento público com as desigualdades econômicas e mobilizaram as divisões culturais. Uma vez no poder, legitimaram seus governos através de manifestações de apoio eleitoral, obtidas pela definição de seus partidários em contraposição aos outros membros (menos dignos) da sociedade.
Evidentemente, o problema, é que uma estratégia baseada na polarização do eleitorado não implica em compromisso com eleições livres e justas, muito menos com o respeito aos direitos civis. Ainda assim, é importante lembrar que eles, em última instância, confiam no verniz do apoio da maioria, razão pela qual sentem a necessidade de manipular as eleições a seu favor e pressionar os meios de comunicação a falar bem deles.
Erdoğan usou muito esse manual. Ele subiu ao poder explorando as reivindicações dos turcos mais religiosos, menos instruídos e menos ocidentalizados, que se sentiam desfavorecidos do ponto de vista político, economicamente marginalizados e culturalmente menosprezados. (Na verdade, representantes dessa legião haviam compartilhado o poder de várias formas por décadas, mas se tornaram cada vez mais ambiciosos no processo.)
Uma vez no poder, Erdoğan reafirmou sua popularidade entre “o povo” e desfrutou de várias vitórias eleitorais nos últimos 17 anos. Mas também foi se tornando cada vez mais autoritário. A mídia impressa e as emissoras de televisão da Turquia não têm nenhuma independência e sua burocracia, poder judiciário e forças de segurança são todas controladas por seguidores de Erdoğan.
Até recentemente, esse desequilíbrio em campo significava que Erdoğan poderia continuar ganhando eleições e firmando sua legitimidade no apoio popular. Mas quando o AKP perdeu a maioria parlamentar nas eleições gerais de junho de 2015, Erdoğan teve que se curvar. Como Presidente, bloqueou a formação de um governo de coalizão e forçou uma nova eleição em um ambiente mais polarizado e cada vez mais repressivo. Como saiu-se vitorioso nessa nova eleição, sua legitimidade e autoridade permaneceram intactas.
A tentativa de Erdoğan de reverter o resultado da eleição de Istambul seguiu a mesma lógica. Mas, tendo perdido, seu calcanhar de Aquiles ficou exposto. Quem ganha nas urnas perde pelas urnas. É onde os autoritários populistas de hoje devem ser derrotados e onde a reconstrução da democracia pode se iniciar.
A atual e óbvia exceção é a Venezuela, sob o comando do presidente Nicolás Maduro. Mas enquanto Maduro chegou ao poder inicialmente através de uma eleição, seu governo sempre foi baseado em seu controle do exército, e desde então ele desistiu de qualquer pretensão de legitimidade popular. O Brasil, as Filipinas e muitos outros países sob governo populista não estão no mesmo barco. Para eles e para os próprios turcos, a eleição de Istambul traz uma importante lição.
Durante muito tempo, o CHP não foi capaz de fornecer um eficaz contrapeso ao AKP, porque recusou-se a desenvolver uma plataforma popular, agarrando-se ao seu papel de partido do secularismo rígido. Mas isso mudou com Imamoğlu, que realizou uma campanha positiva centrada na melhoria do bem-estar social, na prestação de melhores serviços municipais, na redução do desperdício, no fim da corrupção e – no caso da nova votação – na restauração da democracia. Depois de tudo isso, ele ganhou porque se libertou dos limites das polarizadoras e retrógradas linhas ideológicas. Uma abordagem similarmente pragmática que se concentra em melhorar a vida das pessoas representaria um importante desafio para populistas em outros lugares.
Por certo, esse não é o fim do governo do AKP na Turquia. Erdoğan não precisa ser reeleito até 2023, e seu partido detém uma forte maioria parlamentar. Para reforçar sua credibilidade, o CHP deve cumprir suas promessas de campanha, o que não será fácil com Erdoğan tentando prejudicá-lo a todo instante. Mas, por fim, os populistas obtêm seu poder a partir de queixas reais. É apenas atendendo a essas reivindicações, não ignorando-as, que os partidos de oposição podem arrancar a democracia de seus usurpadores populistas.
Daron Acemoglu é Professor de Economia no MIT.
James A. Robinson é Professor de Conflitos Globais na Universidade de Chicago.
Ambos são coautores do livro Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty . (Porque Fracassam as Nações: As Origens do Poder, da Prosperidade e da Pobreza)