EXAME Saint Paul
Publicado em 25 de junho de 2025 às 16h34.
Última atualização em 25 de junho de 2025 às 16h38.
*Por Luciana Solar
O setor público brasileiro vive um momento de profunda transformação digital. Longe da percepção comum de burocracia e lentidão, órgãos como a Receita Federal do Brasil (RFB) estão liderando uma transformação tecnológica que coloca o país entre os mais inovadores do mundo no uso de Inteligência Artificial, automação, blockchain, Big Data e Internet das Coisas (IoT).
Mas o que poucos percebem é que essa revolução depende tanto de tecnologia quanto de capital humano preparado para operá-la. Há vários anos, a RFB utiliza blockchain para garantir segurança, transparência e interoperabilidade no compartilhamento de dados. Inicialmente aplicado ao Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), o uso da tecnologia foi expandindo para as demais bases de dados, promovendo uma integração eficiente com outros órgãos da Administração Pública.
Com o apoio de ferramentas de inteligência artificial e Big Data, a RFB opera um dos maiores conjunto de dados do setor público brasileiro, processando em nuvem (“cloud”) informações fiscais, contábeis, patrimoniais e financeiras de milhões de contribuinte.
O cruzamento automatizado desses dados, com auxílio de IA e de algoritmos avançados, vem ampliando exponencialmente sua capacidade de detecção de fraudes e ilegalidades tributárias e aduaneiras, além de promover plataformas integradas em todo setor público, como “Gov.br”, “ConectaGov” e o “CadÚnico”.
Esse armazenamento de dados em larga escala implica altos investimentos, e parte desses dados, quanto não utilizados de forma estratégica, representa um ônus desnecessário aos cofres públicos. Para se ter uma ideia, algumas áreas de tecnologia e transformação digital tiveram um acréscimo de mais de 60% (sessenta por cento) no orçamento da União para o ano de 2025.
O valor da transparência
Outro exemplo da modernização em curso é a evolução da E-Financeira, sistema que obriga instituições financeiras a prestarem informações sobre movimentações de seus clientes. Criada em 2015, pela Instrução Normativa 1571, a E-financeira havia sido recentemente atualizada pela IN 2247/2025, para incorporar novos meios de pagamento como o PIX, maquininhas de cartão e moedas eletrônicas.
Apesar da existência de tecnologia para essa implementação, a reformulação foi revogada. A evolução da E-financeira está diretamente ligada ao Regime de Transparência Fiscal e ao programa de apoio à conformidade tributária junto às instituições financeiras, que encontram respaldo também na nova lei da tributação de rendimentos no exterior, “offshores” e “trusts” e está adquirindo relevância internacional por meio de Compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito do FATCA (Foreign Account Tax Compliance Act) e do CRS (Common Reporting Standard).
Instituições estão não apenas modernizando seus sistemas, mas promovendo sinergias que resultam em ganhos concretos de eficiência. A chamada Inteligência Artificial perceptiva – aquela que busca interpretar comportamentos, emoções, intenções e atitudes com base em dados, padrões e até expressões não verbais – ainda não é amplamente usada de forma declarada, no entanto, há aplicações iniciais e conceitos próximos sendo utilizados, principalmente na RFB e em áreas de segurança e justiça.
Ainda assim, para que essa transformação seja sustentável, é essencial fortalecer o capital humano. O servidor público do futuro precisa dominar linguagens de programação, ciência de dados, segurança cibernética e princípios de governança digital. A tecnologia por si só não basta- é necessário investir em pessoas capazes de interpretá-la, questioná-la e aprimorá-la.
Estudos da “McKinsey & Company” indicam que a automação e a IA têm potencial para substituir funções que envolvem tarefas repetitivas e previsíveis, cognitivas ou não, como funções administrativas e de suporte, mas por outro lado, a adoção da IA, está criando demandas por novas funções, especialmente em áreas que exigem habilidades técnicas avançadas. Profissões relacionadas a ciência, tecnologia, engenharia e matemática de alta qualificação estão em crescimento.
O desafio cultural
Apesar dos avanços expressivos na adoção de tecnologias emergentes por órgãos públicos brasileiros – como blockchain, Big Data, Inteligência Artificial e automação – a inovação disruptiva, aquela que realmente transforma modelos de negócio, estruturas organizacionais e formas de atuação do Estado ainda encontra sérios obstáculos estruturais e culturais no Setor Público.Segundo o conceito dos três horizontes da inovação, amplamente difundido pelo professor “Steve Blank”, a inovação do Horizonte 3 é aquela que rompe com o status quo, cria possibilidades e desafia modelos vigentes. No Brasil, mesmo com instituições tecnicamente sofisticadas como a Receita Federal, a inovação esbarra em grandes desafios para avançar, como o capital humano e a burocracia.
O maior entrave à inovação disruptiva no setor público não é o tecnológico – é humano. A cultura organizacional da administração pública é, em geral, hierárquica, inflexível e avessa a mudanças. Na Receita Federal, por exemplo, a rigidez dos modelos de gestão e falta de incentivos à mobilidade interna criam um ambiente estagnado, onde o aprendizado contínuo e a experimentação são exceções, não regras.
O problema se agrava com a escassez de investimentos em capacitação. A formação técnica de servidores, especialmente em áreas como ciência de dados, cibersegurança, inteligência artificial e governança digital, raramente acompanha a velocidade das transformações tecnológicas.
Qualquer programa de qualificação ou reestruturação funcional esbarra em processos burocráticos longos, que exigem múltiplas aprovações e, muitas vezes, recursos adicionais que dependem do aval do Legislativo. Além disso, a estabilidade no cargo e os salários defasados em comparação com outros “players” do setor privado criam uma dinâmica de desestímulo à atualização.
Ao contrário das empresas privadas, onde a melhoria contínua é uma questão de sobrevivência e competitividade, no setor público a ausência de uma política clara de reconhecimento e recompensa dificulta a criação de um ambiente propício ao risco calculado e à criatividade.
Projetos verdadeiramente disruptivos, com retorno de longo prazo e elevado grau de incerteza, enfrentam sérias barreiras legais e administrativas. Ideias, por exemplo, como a criação de laboratórios de inovação, parcerias com universidades, uso de “sandbox” regulatórios ou contratação de startups, exigiriam manobras, liberações de verbas e alinhamentos políticos que podem levar anos e novamente cairíamos na questão burocrática. Faltam não apenas recursos, mas também autonomia para os gestores públicos atuarem com a agilidade exigida por esses tipos de iniciativa.
Se o Brasil quiser realmente ser protagonista na transformação digital do setor público, precisa ir além da modernização de sistemas e plataformas. É preciso uma reforma Administrativa estrutural, com mudanças legais profundas, que atinjam o cerne do modelo burocrático e investimento no verdadeiro motor da inovação: pessoas capacitadas, motivadas e livres para assumirem as novas tarefas que serão trazidas pelo novo mundo da Inteligência Artificial.
*Luciana Solar, auditora na Receita Federal; Executive MBA em Gestão e Governança na Saint Paul Escola de Negócios