EUA: o grande perdedor… é o email
Farhad Manjoo © 2016 New York Times News Service A cada quatro anos os especialistas tentam determinar qual a tendência tecnológica moderna é a nova força de desestabilização que vai alterar para sempre a mecânica da democracia americana. A campanha de 2016 já foi chamada de eleição do Snapchat, eleição do Periscope, eleição do Meerkat, […]
Da Redação
Publicado em 1 de novembro de 2016 às 15h45.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h48.
Farhad Manjoo
© 2016 New York Times News Service
A cada quatro anos os especialistas tentam determinar qual a tendência tecnológica moderna é a nova força de desestabilização que vai alterar para sempre a mecânica da democracia americana. A campanha de 2016 já foi chamada de eleição do Snapchat, eleição do Periscope, eleição do Meerkat, eleição do Twitter, eleição do Facebook e eleição dos memes. (Se houvesse um emoji vomitando, eu iria incluir um aqui. E aí teríamos a eleição do emoji.)
Porém, há meses esta campanha bizarra foi definida não tanto pela tecnologia de ponta, mas por uma das mais tradicionais: o e-mail. Estamos em 2016 e temos a sorte de ter um número ridículo de meios seguros e convenientes de nos comunicarmos, mas todos só querem falar sobre os malditos e-mails de Hillary Clinton.
Esta coluna não fala sobre os escândalos reais ou imaginários expostos pelas mensagens de Hillary e de sua equipe de campanha, que, graças ao Departamento de Estado, aos hackers russos, à Judicial Watch e ao WikiLeaks são agora regularmente divulgados ao público.
A intenção é examinar um mistério mais básico enterrado nos e-mails: por que todas essas pessoas falam sobre tanta coisa por e-mail para começo de conversa? Nunca ouviram falar de telefonemas? Reuniões presenciais em estacionamentos pouco iluminados de Washington? Qualquer outro lugar onde suas conversas não estivessem constantemente sendo gravadas, arquivadas e disponibilizadas para pesquisa nas próximas décadas?
A resposta, claro, é que o e-mail é tão tentador quanto inevitável, para Hillary e para nós todos. Mais de 50 anos após seu nascimento, ele exerce um estranho controle sobre todos os nossos assuntos internos.
Mas todas as coisas devem enfrentar seu criador, e para o e-mail, esse momento está próximo.
A exposição súbita do cache de mensagens da campanha de Hillary talvez seja a prova definitiva de que nós todos já estamos excessivamente comprometidos com o e-mail – investimos muito nele, esperamos muito e agora, finalmente, estamos vendo os sinais espetaculares de sua iminente destruição.
O e-mail simplesmente não está à altura dos rigores da política e da vida empresarial modernas. Ele nos dá uma sensação de segurança subterrânea que nunca consegue garantir, nos convence a contar nossos segredos mais sombrios e então os disponibiliza para qualquer hacker decente que os intercepte. Existem várias alternativas que poderiam tomar o seu lugar, sem as mesmas armadilhas, e o cache de Hillary mostra por que seria prudente adotar uma delas.
Vamos beber em homenagem ao e-mail, que está aí há muito tempo. Depois, vamos dançar sobre seu túmulo e passar para outra coisa.
Os últimos e-mails de Hillary vieram da conta invadida do Gmail de John D. Podesta, líder da campanha da candidata. Enviei uma mensagem à equipe para perguntar sobre a violação e as práticas de segurança, mas não obtive resposta. (Talvez o estejam evitando agora?) A campanha se recusou a confirmar a autenticidade das mensagens, o que mostra uma das deficiências do e-mail: ele pode ser facilmente forjado, então não dá para saber se essas mensagens que estamos vendo são realmente da campanha de Hillary.
Mas se você considerar que sejam autênticas, logo vai descobrir ainda mais defeitos da ferramenta. O mais impressionante no cache de Podesta é a importância do meio para as operações. Em 2016, as campanhas presidenciais, como todas as grandes empresas, são ações de longo alcance, com muitas pessoas em muitos lugares diferentes estão tentando planejar as coisas juntas. Se há qualquer centralidade na organização, ela está na comunicação.
Dá para perceber por que ele pode ser útil. Ter um único lugar para trocar ideias aumenta a eficiência das equipes. Na campanha de Hillary, ele é usado como uma forma de transmitir notícias, definir táticas e estratégia, teorizar, contra-atacar, fofocar. É utilizado no lugar de telefonemas e encontros cara a cara; é usado como mensagem instantânea, calendário diário e quadro colaborativo.
“Isso sugere que eles se sentiam seguros, não se viam nem um pouco ameaçados porque uma vez que há a violação, você não volta para a realidade de escrever coisas sensíveis por e-mail. Se tem algo importante a dizer, vai usar o telefone ou atravessar o corredor”, disse Adam Segal, especialista em segurança cibernética do Conselho de Relações Exteriores e autor de “The Hacked World Order”.
Um thread do primeiro semestre de 2015 mostra muita coisa, como também sugere as vantagens do meio e suas enormes falhas. Ao longo de três dias, uma meia-dúzia de membros da campanha usou o e-mail para discutir um assunto sensível: deveriam permitir que aqueles que fazem lobby em nome de governos estrangeiros, conhecidos como agentes estrangeiros registrados, possam arrecadar doações em seu nome? Especialistas no assunto falaram sobre as implicações jurídicas e políticas e vários membros enviaram ideias – não aceitar dinheiro de agentes estrangeiros, ou avaliar caso a caso, dependendo do governo estrangeiro que represente. (Canadá, tudo bem; Coreia do Norte, não.)
No segundo dia de debate, o thread foi ficando longo e vago; foi quando Robby Mook, o gerente da campanha, propôs um rápido telefonema para falar sobre o assunto. Ele quase se desculpou ao sugerir o telefone, que achava ser muito sério, “muito trabalhoso”.
O telefonema aparentemente aconteceu, mas, na campanha de Hillary, até isso precisava ser documentado no e-mail. Então, após a chamada, outro membro da equipe informa sobre a decisão tomada durante ela: não aceitar doações de agentes estrangeiros.
Mas não acabou aí. Marc E. Elias, conselheiro geral da campanha, se intrometeu dizendo que não havia podido participar, mas que se opunha à proibição de doações estrangeiras, pois achava que soava um tanto arbitrário.
Isso desencadeou uma nova rodada de discussões, provocando a irritação entre algumas pessoas no thread. Por fim, Mook escreveu para dizer que, graças a Elias, tinha mudado de ideia e que agora estava pensando em aceitar o dinheiro estrangeiro. “Vocês concordam?” perguntou.
O que gerou a súbita mudança de opinião de Jennifer Palmieri, diretora de comunicação da campanha: “Pegue o dinheiro!”, escreveu ela de seu iPhone.
Nos dias seguintes à publicação do WikiLeaks, esse thread se tornou uma questão de campanha. Donald Trump chegou até mesmo a chamar a atenção para a frase de Jennifer recentemente em um comício.
Mas não precisava ser assim. Se estivessem usando algum outro sistema de comunicação, provavelmente teriam evitado esse problema.
Algo mais moderno, como o Slack ou o HipChat, também pode ser invadido, mas permitiria que um administrador central definisse uma política de arquivamento. Depois de alguns dias ou semanas, este tipo de conversa seria apagado. Não é tão prático no caso do e-mail, dada sua própria natureza descentralizada. Uma vez que uma mensagem é enviada, o thread reside no dispositivo de cada destinatário que o baixou.
Melhor ainda, um aplicativo como o Signal, que criptografa as mensagens (e que parece que a campanha está usando agora), dificultaria o acesso às mensagens.
Por fim, é interessante notar quanto tempo e quantos e-mails – mais de uma dúzia – foram necessários para que o grupo tomasse suas decisões. O e-mail às vezes nos engana, dando-nos uma sensação de eficiência, coisa que dificilmente é. Por causa de sua assincronicidade e porque não existem limites de espaço e de tempo, muitas vezes leva a reflexões infinitas e inúteis. Se tivessem deixado as mensagens de lado e apenas fizessem uma reunião de 15 minutos, os membros da campanha poderiam ter chegado a uma decisão sobre os agentes estrangeiros mais rapidamente e de modo privado.
Em outras palavras: limites muitas vezes ajudam. Pegue o telefone, tome uma decisão, esqueça sua caixa de entrada. O mundo ficará melhor com isso.
Farhad Manjoo
© 2016 New York Times News Service
A cada quatro anos os especialistas tentam determinar qual a tendência tecnológica moderna é a nova força de desestabilização que vai alterar para sempre a mecânica da democracia americana. A campanha de 2016 já foi chamada de eleição do Snapchat, eleição do Periscope, eleição do Meerkat, eleição do Twitter, eleição do Facebook e eleição dos memes. (Se houvesse um emoji vomitando, eu iria incluir um aqui. E aí teríamos a eleição do emoji.)
Porém, há meses esta campanha bizarra foi definida não tanto pela tecnologia de ponta, mas por uma das mais tradicionais: o e-mail. Estamos em 2016 e temos a sorte de ter um número ridículo de meios seguros e convenientes de nos comunicarmos, mas todos só querem falar sobre os malditos e-mails de Hillary Clinton.
Esta coluna não fala sobre os escândalos reais ou imaginários expostos pelas mensagens de Hillary e de sua equipe de campanha, que, graças ao Departamento de Estado, aos hackers russos, à Judicial Watch e ao WikiLeaks são agora regularmente divulgados ao público.
A intenção é examinar um mistério mais básico enterrado nos e-mails: por que todas essas pessoas falam sobre tanta coisa por e-mail para começo de conversa? Nunca ouviram falar de telefonemas? Reuniões presenciais em estacionamentos pouco iluminados de Washington? Qualquer outro lugar onde suas conversas não estivessem constantemente sendo gravadas, arquivadas e disponibilizadas para pesquisa nas próximas décadas?
A resposta, claro, é que o e-mail é tão tentador quanto inevitável, para Hillary e para nós todos. Mais de 50 anos após seu nascimento, ele exerce um estranho controle sobre todos os nossos assuntos internos.
Mas todas as coisas devem enfrentar seu criador, e para o e-mail, esse momento está próximo.
A exposição súbita do cache de mensagens da campanha de Hillary talvez seja a prova definitiva de que nós todos já estamos excessivamente comprometidos com o e-mail – investimos muito nele, esperamos muito e agora, finalmente, estamos vendo os sinais espetaculares de sua iminente destruição.
O e-mail simplesmente não está à altura dos rigores da política e da vida empresarial modernas. Ele nos dá uma sensação de segurança subterrânea que nunca consegue garantir, nos convence a contar nossos segredos mais sombrios e então os disponibiliza para qualquer hacker decente que os intercepte. Existem várias alternativas que poderiam tomar o seu lugar, sem as mesmas armadilhas, e o cache de Hillary mostra por que seria prudente adotar uma delas.
Vamos beber em homenagem ao e-mail, que está aí há muito tempo. Depois, vamos dançar sobre seu túmulo e passar para outra coisa.
Os últimos e-mails de Hillary vieram da conta invadida do Gmail de John D. Podesta, líder da campanha da candidata. Enviei uma mensagem à equipe para perguntar sobre a violação e as práticas de segurança, mas não obtive resposta. (Talvez o estejam evitando agora?) A campanha se recusou a confirmar a autenticidade das mensagens, o que mostra uma das deficiências do e-mail: ele pode ser facilmente forjado, então não dá para saber se essas mensagens que estamos vendo são realmente da campanha de Hillary.
Mas se você considerar que sejam autênticas, logo vai descobrir ainda mais defeitos da ferramenta. O mais impressionante no cache de Podesta é a importância do meio para as operações. Em 2016, as campanhas presidenciais, como todas as grandes empresas, são ações de longo alcance, com muitas pessoas em muitos lugares diferentes estão tentando planejar as coisas juntas. Se há qualquer centralidade na organização, ela está na comunicação.
Dá para perceber por que ele pode ser útil. Ter um único lugar para trocar ideias aumenta a eficiência das equipes. Na campanha de Hillary, ele é usado como uma forma de transmitir notícias, definir táticas e estratégia, teorizar, contra-atacar, fofocar. É utilizado no lugar de telefonemas e encontros cara a cara; é usado como mensagem instantânea, calendário diário e quadro colaborativo.
“Isso sugere que eles se sentiam seguros, não se viam nem um pouco ameaçados porque uma vez que há a violação, você não volta para a realidade de escrever coisas sensíveis por e-mail. Se tem algo importante a dizer, vai usar o telefone ou atravessar o corredor”, disse Adam Segal, especialista em segurança cibernética do Conselho de Relações Exteriores e autor de “The Hacked World Order”.
Um thread do primeiro semestre de 2015 mostra muita coisa, como também sugere as vantagens do meio e suas enormes falhas. Ao longo de três dias, uma meia-dúzia de membros da campanha usou o e-mail para discutir um assunto sensível: deveriam permitir que aqueles que fazem lobby em nome de governos estrangeiros, conhecidos como agentes estrangeiros registrados, possam arrecadar doações em seu nome? Especialistas no assunto falaram sobre as implicações jurídicas e políticas e vários membros enviaram ideias – não aceitar dinheiro de agentes estrangeiros, ou avaliar caso a caso, dependendo do governo estrangeiro que represente. (Canadá, tudo bem; Coreia do Norte, não.)
No segundo dia de debate, o thread foi ficando longo e vago; foi quando Robby Mook, o gerente da campanha, propôs um rápido telefonema para falar sobre o assunto. Ele quase se desculpou ao sugerir o telefone, que achava ser muito sério, “muito trabalhoso”.
O telefonema aparentemente aconteceu, mas, na campanha de Hillary, até isso precisava ser documentado no e-mail. Então, após a chamada, outro membro da equipe informa sobre a decisão tomada durante ela: não aceitar doações de agentes estrangeiros.
Mas não acabou aí. Marc E. Elias, conselheiro geral da campanha, se intrometeu dizendo que não havia podido participar, mas que se opunha à proibição de doações estrangeiras, pois achava que soava um tanto arbitrário.
Isso desencadeou uma nova rodada de discussões, provocando a irritação entre algumas pessoas no thread. Por fim, Mook escreveu para dizer que, graças a Elias, tinha mudado de ideia e que agora estava pensando em aceitar o dinheiro estrangeiro. “Vocês concordam?” perguntou.
O que gerou a súbita mudança de opinião de Jennifer Palmieri, diretora de comunicação da campanha: “Pegue o dinheiro!”, escreveu ela de seu iPhone.
Nos dias seguintes à publicação do WikiLeaks, esse thread se tornou uma questão de campanha. Donald Trump chegou até mesmo a chamar a atenção para a frase de Jennifer recentemente em um comício.
Mas não precisava ser assim. Se estivessem usando algum outro sistema de comunicação, provavelmente teriam evitado esse problema.
Algo mais moderno, como o Slack ou o HipChat, também pode ser invadido, mas permitiria que um administrador central definisse uma política de arquivamento. Depois de alguns dias ou semanas, este tipo de conversa seria apagado. Não é tão prático no caso do e-mail, dada sua própria natureza descentralizada. Uma vez que uma mensagem é enviada, o thread reside no dispositivo de cada destinatário que o baixou.
Melhor ainda, um aplicativo como o Signal, que criptografa as mensagens (e que parece que a campanha está usando agora), dificultaria o acesso às mensagens.
Por fim, é interessante notar quanto tempo e quantos e-mails – mais de uma dúzia – foram necessários para que o grupo tomasse suas decisões. O e-mail às vezes nos engana, dando-nos uma sensação de eficiência, coisa que dificilmente é. Por causa de sua assincronicidade e porque não existem limites de espaço e de tempo, muitas vezes leva a reflexões infinitas e inúteis. Se tivessem deixado as mensagens de lado e apenas fizessem uma reunião de 15 minutos, os membros da campanha poderiam ter chegado a uma decisão sobre os agentes estrangeiros mais rapidamente e de modo privado.
Em outras palavras: limites muitas vezes ajudam. Pegue o telefone, tome uma decisão, esqueça sua caixa de entrada. O mundo ficará melhor com isso.