SC: o estado que mais recebeu imigrantes no Brasil, com 500 mil novos moradores (Leandro Fonseca /Exame)
Ex-ministro do Turismo (Governo Temer), cientista político pela Universidade Americana de Paris, Sênior Fellow do Milken Institute (EUA)
Publicado em 11 de agosto de 2025 às 12h57.
Última atualização em 11 de agosto de 2025 às 13h02.
Santa Catarina é um estado que na história recente do Brasil se destaca por unir prosperidade econômica, coesão social e gestão pública. Embora ocupe apenas 1,1% do território nacional, tornou-se uma exceção no mapa brasileiro: é o segundo estado mais competitivo e mais industrial do país, atrás apenas de São Paulo; o mais seguro; líder em indicadores de desenvolvimento humano, educação básica e geração de empregos industriais per capita — além de grande exportador.
Nos últimos anos, destacou-se também como o estado que mais recebeu imigrantes: 500 mil novos moradores, superando os 180 mil que foram para São Paulo. Santa Catarina pode parecer, aos olhos desatentos, uma anomalia — um enigma — mas é, na verdade, fruto de uma construção histórica singular e deliberada.
Ao mesmo tempo, tem sido retratado, no ambiente polarizado da política nacional, como um estado “frio” e de direita. Mas qual é, afinal, a verdade?
É nesse ponto que o chamado “excepcionalismo catarinense” se revela: não apenas como fenômeno estatístico ou econômico, mas como expressão de um etos civilizatório construído ao longo de décadas — inspirado, de forma surpreendente e deliberada, no modelo norte-americano, por ninguém menos que Dom Pedro II.
Pouco reconhecido hoje, Dom Pedro II foi um dos monarcas mais respeitados pelos Estados Unidos no século XIX. Durante sua visita à Filadélfia, em 1876, por ocasião do centenário da independência americana, foi recebido com honras por Ulysses S. Grant, então presidente dos EUA. Seu prestígio era tal que chegou a receber votos simbólicos para a presidência americana — uma curiosidade histórica que ilustra a admiração que despertava no jovem país. Nosso imperador era um republicano.
Mas a aproximação do imperador com os EUA ia além da diplomacia. Ele via naquela república em expansão um modelo de desenvolvimento distinto: baseado na liberdade econômica, na propriedade privada familiar, na disciplina social, na educação pública e no trabalho livre. O “excepcionalismo americano”, descrito por Alexis de Tocqueville em Democracia na América, oferecia um contraponto radical aos latifúndios escravocratas.
Foi no Sul do território nacional — ainda um vazio demográfico de clima temperado — que Dom Pedro II aplicou seu projeto alternativo de país. A ocupação do território com imigrantes europeus, livres da herança colonial escravista, constituiu uma tentativa concreta de implantar um novo modelo de civilização nos trópicos.
A colonização do Sul do Brasil — primeiro com açorianos, depois com italianos, alemães, eslavos e nórdicos — atendeu não apenas a interesses econômicos, mas também a preocupações geopolíticas: a defesa da fronteira frente às pretensões da Espanha e da Alemanha. Mas, acima de tudo, foi uma tentativa de fundar o “Brasil Novo”, como o chamou Darcy Ribeiro — a quem eu tive a honra de conhecer pessoalmente.
Um Brasil que não brotava das senzalas nem das oligarquias rurais, mas da pequena propriedade, do trabalho assalariado, do associativismo e de uma cultura protestante ou católica austera, voltada à educação e ao mérito. A miscigenação se deu então de forma distinta: entre europeus recém-chegados e brasileiros de origem ibérica, indígena, cabocla e afrodescendente — mas sem o peso institucional da escravidão nas estruturas produtivas. E, nem o ressentimento.
Santa Catarina foi o núcleo mais expressivo dessa construção. As colônias não escravocratas, organizadas em cooperativas, com base na pequena e média empresa, moldaram um modelo de produção descentralizado e dinâmico. Diferente do Sudeste — onde o Estado sempre teve protagonismo econômico —, em Santa Catarina o motor do progresso foi o cidadão e o empreendedor. O estado é, há anos, o que mais possui empresas per capita no Brasil.
Esse padrão cultural e econômico, compartilhado com o norte do Rio Grande do Sul e partes do Paraná, mais tarde se estenderia ao Oeste dos estados sulinos e ao Centro-Oeste — e até a partes do Norte e do Nordeste brasileiro. Esse novo vetor migratório e produtivo pode ser chamado de “Brasil Novíssimo”.
A narrativa oficial sobre a expansão do agronegócio no Centro-Oeste frequentemente enfatiza a modernização tecnológica e a ocupação de novas fronteiras. Mas há um elemento humano crucial: a migração.
Agricultores e empresários rurais vindos de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná não levaram apenas tratores e sementes, mas também um modo de vida: cooperativismo, ética do trabalho, pragmatismo e espírito comunitário. Assim como os norte-americanos conquistaram o Oeste com carroções e cowboys, os brasileiros o fizeram com caminhões e tecnologia sobre estradas de barro.
Essa “colonização interna” gerou o milagre do Cerrado: a transformação de terras ácidas e inférteis em celeiros do mundo. O DNA produtivo da nova fronteira agrícola brasileira é essencialmente sulista — fruto das colônias idealizadas por Dom Pedro II.
Santa Catarina também é mal compreendida politicamente. Classificada como “conservadora” em razão de seus resultados eleitorais recentes, o estado teve, na verdade, uma trajetória plural. No processo de redemocratização, votou majoritariamente no MDB em oposição ao regime militar, e deu ao PT a gestão de suas principais cidades em diferentes momentos — de Florianópolis a Chapecó.
A guinada à direita após 2013 reflete mais o cansaço com os escândalos de corrupção e a ausência de retorno fiscal do que uma radicalização ideológica. Até então, o eleitorado catarinense era predominantemente socialdemocrata e reformista, com inclinação ao PSDB.
Mais do que ideologia, prevalece em Santa Catarina uma cultura de resultados. O catarinense é pragmático, cobra desempenho dos gestores públicos e rejeita centralismos ineficientes. O sentimento recorrente é de exploração por Brasília: o estado contribui dez vezes mais ao orçamento federal do que recebe em investimentos — sendo o segundo maior perdedor na balança fiscal, atrás apenas de São Paulo.
Outro traço do excepcionalismo catarinense é ter desenvolvido uma economia orientada a indústria, à exportação e à logística, e não dependente do consumo interno. Com seis portos, um setor industrial diversificado, 15 polos tecnológicos (especialmente em Florianópolis, Blumenau e Joinville) e um turismo que vai da neve à praia, Santa Catarina transformou sua escala reduzida em vantagem comparativa.
Balneário Camboriú e Itapema, com seus arranha-céus futuristas, despertam tanto admiração quanto críticas — como se sucesso e estética fossem pecados num país desigual. Mas essas cidades representam apenas 12 km de um litoral de 550 km, com reservas naturais como o Parque Estadual do Acaraí e praias ainda selvagens.
Florianópolis, por sua vez, é Capital Nacional das Startups, Cidade Criativa da Gastronomia pela Unesco, e tem mais de 60% do território composto por áreas de preservação. Segundo a Oxford Economics e o WTTC, o estado está entre os mais diversos do mundo em termos de vocações turísticas e produtivas, muitos povos e muitas geografias — o que contraria o clichê da monocultura política e econômica. Como me disse, certa vez , o querido amigo Domenico De Masi, há um atraso e um retrocesso cultural em curso que impede o reconhecimento dessa complexidade.
Empresas como WEG, Hering, Karsten, Tupy, Aurora, Tigre, Perdigão e Sadia nasceram em solo catarinense. Diferentemente de São Paulo, que contou com capital externo, mercado interno robusto e os excedentes do café, Santa Catarina construiu sua base produtiva com capital local, em comunidades a partir de micros , pequenas e médias empresas .
Mesmo com baixo crescimento vegetativo, o estado atrai migrantes do país inteiro — gaúchos, paranaenses, nordestinos, venezuelanos e haitianos — mantendo-se vibrante e em expansão.
Apesar de todos esses avanços, os gargalos são reais. A infraestrutura viária e aeroportuária é deficiente. Faltam ferrovias, rodovias estruturantes, saneamento e conectividade aérea regional. O crescimento urbano pressiona os serviços públicos. A burocracia federal, sobretudo na área ambiental, tem sido um obstáculo constante.
A previsão do IBGE indica que Santa Catarina pode ultrapassar o Rio Grande do Sul em PIB e população até 2046, e o Paraná até 2056. O que testará, na prática, a resiliência do seu modelo diante das pressões da homogeneização nacional — como alertava o eco-conomista Ignacy Sachs, criador do conceito de desenvolvimento sustentável e defensor da valorização das experiências locais. Sobre Santa Catarina, atestou: existe o experimento catarinense .
Outro desafio é a sucessão geracional das pequenas e médias empresas familiares e sua adaptação à economia verde e digital. O que funcionou até aqui pode não bastar amanhã.
Santa Catarina representa, talvez, em parte, o Brasil que poderíamos ser: um “país” dentro do país, que valoriza o trabalho, respeita o mérito, cobra resultados e cultiva coesão social. Um povo que não espera soluções mágicas do Estado, mas tampouco tolera o abandono. Um povo que aposta na produção, na educação e na dignidade.
Não é ufanismo — é constatação. Santa Catarina não se vê superior, mas sim como trabalhador e coerente com sua história. Seu povo é simples, claro, hospitaleiro — e isso decorre de um profundo auto respeito. Isso se percebe no turismo .
O “excepcionalismo catarinense” não se resume a dados: é uma construção institucional, cultural e produtiva, fruto de um projeto visionário. É uma herança viva, difícil de reproduzir, mas digna de estudo e inspiração.
Como dizia Dom Pedro II: “governar é educar”. E, neste caso, também aprender. O Brasil tem muitas lições de sucesso em suas regiões. Uma das mais consistentes — e menos compreendidas — é Santa Catarina: um estado inspirado nos EUA nos trópicos, pensado por um grande imperador, e cultivado por gerações que fizeram dele uma referência silenciosa. Mas, hoje, cada vez mais visível.