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De Shylock à fintech: o que mudou, e o que ainda precisa mudar, na gestão do crédito 

Mais do que uma questão técnica, trata-se de uma escolha estratégica: ou sua carteira cresce de forma estruturada, ou ela envelhece com o peso das perdas

O problema é que, sem escala, a gestão de risco perde sua eficácia e se torna mero roteiro ficcional (beast01/Getty Images)

O problema é que, sem escala, a gestão de risco perde sua eficácia e se torna mero roteiro ficcional (beast01/Getty Images)

EXAME Saint Paul
EXAME Saint Paul

EXAME Saint Paul

Publicado em 4 de novembro de 2025 às 21h17.

“Se não pagares no dia certo... cortarei uma libra da tua carne.” A ameaça do agiota Shylock em O Mercador de Veneza, de Shakespeare, retrata com perversidade o que acontece quando a gestão de crédito é baseada em decisões isoladas, pouco diversificadas e emocionalmente impulsivas. A peça, escrita no século 16, revela uma lógica de crédito que ainda hoje encontramos — não só em becos escuros, mas também, em certa medida, dentro de instituições que ainda não compreenderam a importância estratégica de uma carteira ampla, diversificada e estatisticamente tratável. 

A lógica é simples, embora negligenciada: sem volume, não há gestão de risco de crédito. A construção de uma carteira robusta permite que, ao longo do tempo, os gestores consigam extrair indicadores cruciais como a probabilidade de default (PD), a perda em caso de inadimplência (LGD) e a exposição no momento do default (EAD). Esses indicadores, exigidos por regulação prudencial como a Resolução nº 4.966/2021 do Banco Central e por normas internacionais como o IFRS 9, não servem apenas para preencher relatórios. Mais do que métricas técnicas, são instrumentos estratégicos para estimar as perdas esperadas da carteira. 

Com uma base estatística confiável, torna-se possível desenhar produtos mais ajustados ao perfil de cada tomador, modular taxas de juros com precisão e, principalmente, tomar decisões de crédito que sustentem o crescimento da empresa. Isso inclui estratégias como ampliar a base de clientes com risco controlado, competir por taxa sem comprometer o capital, eliminar correlações perigosas entre tomadores, setores e ciclos econômicos. 

O problema é que, sem escala, a gestão de risco perde sua eficácia e se torna mero roteiro ficcional, com finais dignos de Shakespeare: intensos, dramáticos e, não raro, fatais para a operação. 

A atuação do agiota — de ontem e de hoje — ilustra bem esse ponto. Operando na ilegalidade ou em ambientes pouco estruturados, esses emprestadores não conseguem escalar suas carteiras. Seus empréstimos são poucos, mal diversificados, concentrados em clientes que compartilham os mesmos riscos. O resultado? Quando um deles dá calote, o prejuízo afeta uma fatia desproporcional do capital. Com perdas recorrentes e elevadas, a 'gestão da cobrança' passa a adotar práticas, digamos, nada convencionais — e claramente desalinhadas com os princípios do Código de Defesa do Consumidor, para usar uma linguagem diplomática. 

Com um toque de ironia, é fácil perceber a diferença entre esses mundos. Um agiota não pode anunciar seu produto no intervalo da novela com cachorros fofos e pessoas dançando, oferecendo crédito para negativados com sorriso no rosto. Ele também não pode colar um banner com um belo catamarã e uma chamada discreta como “renove seu equipamento de lazer” para clientes de alta renda. Seu marketing, quando existe, é feito no boca a boca. 

É bom lembrar: nem sempre um marketing bem produzido anda de mãos dadas com decisões racionais. No mercado formal, erros de concessão de crédito têm custado caro aos investidores nas últimas décadas. São milhões de reais perdidos por decisões mal embasadas, feitas sem o apoio adequado de dados ou sem o tempo necessário de maturação da carteira. E, nesse cenário, não é só o capital da instituição que se esvai. A reputação dos profissionais envolvidos é, muitas vezes, a primeira a afundar. 

A solução? Não está em cortar na carne — mas em crescer com prudência. Uma carteira maior e bem gerida permite diluir riscos, testar hipóteses de crédito, segmentar clientes com base em dados reais e melhorar, com o tempo, a qualidade da originação. É preciso paciência para construir esse histórico e coragem para usá-lo como bússola, mesmo quando o mercado clama por retornos imediatos. 

Um exemplo claro disso foi a recente abundância de capital de risco, observada recentemente, induzindo fintechs e gestores a decisões de crédito pouco criteriosas, elevando significativamente a inadimplência e levando grande parte dessas iniciativas ao encerramento prematuro. 

Mais do que uma questão técnica, trata-se de uma escolha estratégica: ou sua carteira cresce de forma estruturada, ou ela envelhece com o peso das perdas— e aí, meu caro, nem mesmo Shakespeare poderia salvar o desfecho. 

 

Minicurriculo 

Pedro Bono é autor do livro Cobrança Inteligente: transformando a gestão de contas a receber em uma experiência positiva ao cliente. Doutor em Finanças, com passagens acadêmicas pelo Reino Unido e Estados Unidos, atua como professor e consultor em temas como risco de crédito, inadimplência e inovação financeira.