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Conseguirá o coronavírus derrubar o regime de partido único da China?

Quando o medo e a frustração da população aumentam, até mesmo pequenos erros podem custar caro e provocar sérios desafios

CHINA: número de mortos pelo novo coronavírus já ultrapassa 3.000 pessoas no país (Aly Song/Reuters)
JR

Janaína Ribeiro

Publicado em 13 de março de 2020 às 16h59.

CALIFORNIA – Pode parecer absurdo sugerir que o surto do novo coronavírus, COVID-19, colocou em risco o domínio do Partido Comunista da China (CPC), especialmente em um momento em que os agressivos esforços de contenção do governo parecem estar funcionando. Mas seria um erro subestimar as implicações políticas da maior crise de saúde pública da China na história recente.

De acordo com uma análise do New York Times, pelo menos 760 milhões de chineses, ou mais da metade da população do país, estão sob graus variados de isolamento ou confinamento residencial. Isso teve sérias consequências individuais e agregadas, desde um garotinho que ficou em casa sozinho por dias após testemunhar a morte de seu avô até uma desaceleração econômica significativa. Mas parece ter contribuído para uma queda drástica de novas infecções fora de Wuhan, onde o surto começou, para um único e baixo dígito.

A despeito da divulgação do progresso em conter o vírus, os líderes da China estão mostrando sinais de estresse. Como as elites de outras autocracias, elas se sentem politicamente mais vulneráveis ​​durante as crises. Elas sabem que, quando o medo e a frustração da população aumentam, até mesmo pequenos erros podem custar caro e provocar sérios desafios ao seu poder.

E "frustração" é o mínimo que se pode dizer. O público chinês está bastante e verdadeiramente indignado com os esforços iniciais das autoridades para suprimir informações sobre o novo vírus, incluindo o fato de que ele pode ser transmitido entre humanos. Em nenhum lugar isso foi mais aparente do que no tumultuado anúncio de 7 de fevereiro quando o médico Li Wenliang, de Wuhan – acusado pelas autoridades locais de  espalhar "boatos" enquanto tentava avisar seus colegas sobre o coronavírus em dezembro – morreu por causa disso.

Com o sistema de censura da China enfraquecido temporariamente – provavelmente porque os censores não receberam instruções claras sobre como lidar com essas histórias – até os jornais oficiais publicaram as notícias da morte de Li nas primeiras páginas. E os líderes empresariais, um grupo tipicamente apolítico, denunciaram a conduta das autoridades de Wuhan e exigiram que se responsabilizassem por isso.

Não há dúvidas de que as autoridades não souberam lidar com o início do surto, o que permitiu que se espalhasse tão amplamente, com os profissionais de saúde – mais de 3.000 foram infectados até agora – muitos foram seriamente afetados. E, apesar das tentativas do governo central de transformar autoridades locais em  bodes expiatórios – muitas autoridades de saúde da província de Hubei foram demitidas – é  provável que haja mais perguntas a respeito daquilo que o presidente chinês Xi Jinping tinha conhecimento.

Não é de se admirar que Xi esteja se esforçando bastante para reparar sua imagem de líder forte e competente. Depois que o governo central ordenou o isolamento de Wuhan no final de janeiro, Xi nomeou o primeiro-ministro Li Keqiang para liderar a força-tarefa do coronavírus. Mas o fato de ter sido Li, e não Xi, quem afinal foi a Wuhan, parece que isso mandou a mensagem errada, como Xi constatou nos dias seguintes.

Em 3 de fevereiro, em uma reunião do Comitê Permanente do Politburo, Xi adotou um tom excepcionalmente defensivo em um discurso que parecia ser sobre controle de danos. Embora Xi tenha admitido ter conhecimento do surto antes de dar o sinal de alarme, ele enfatizou seu papel pessoal na liderança da luta contra o vírus.

Além disso, em 10 de fevereiro, Xi fez uma série de aparições públicas em Pequim, com o objetivo de reforçar a ideia de que ele está firme no comando. Três dias depois, demitiu os chefes de partido da província de Hubei e do município de Wuhan pelo inadequado tratamento da crise. E dois dias depois disso, em um movimento sem precedentes, o PCC divulgou o texto completo do discurso interno do Comitê Permanente do Politburo de Xi.

Embora Xi aparentemente tenha recuperado a aura de líder dominante – principalmente graças aos propagandistas do PCC, que trabalham ininterruptamente para restaurar sua imagem – a repercussão política provavelmente será séria. O alvoroço profundo que marcou aqueles momentos fugazes de relativa liberdade cibernética – as duas semanas, do final de janeiro ao início de fevereiro, quando os censores perderam o controle da narrativa popular – deverá ser profundamente preocupante para o PCC.

De fato, o PCC pode ser extremamente hábil em reprimir dissidências, mas repressão não é erradicação. Mesmo um lapso momentâneo pode desencadear suprimidos sentimentos anti-regime. Perguntamos o que poderia acontecer com o poder do PCC se o povo chinês pudesse se expressar livremente por alguns meses, e não apenas algumas semanas.

O resultado político de maior consequência do surto de COVID-19 pode muito bem ser a erosão do apoio ao PCC entre a classe média urbana da China. Suas vidas não foram severamente perturbadas pela epidemia ou pela resposta, mas tiveram plena consciência de como estão desamparados sob um regime que valoriza o sigilo e o próprio poder em detrimento da saúde e do bem-estar públicos.

Na era pós-Mao, o povo chinês e o PCC aderiram a um contrato social implícito: o povo tolera o monopólio político do partido, desde que o partido proporcione progresso econômico suficiente e governança adequada. A má gestão do PCC com relação ao surto de COVID-19 ameaça esse pacto tácito. Nesse sentido, o regime de partido único da China pode estar em uma posição bem mais precária do que se imagina.

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CALIFORNIA – Pode parecer absurdo sugerir que o surto do novo coronavírus, COVID-19, colocou em risco o domínio do Partido Comunista da China (CPC), especialmente em um momento em que os agressivos esforços de contenção do governo parecem estar funcionando. Mas seria um erro subestimar as implicações políticas da maior crise de saúde pública da China na história recente.

De acordo com uma análise do New York Times, pelo menos 760 milhões de chineses, ou mais da metade da população do país, estão sob graus variados de isolamento ou confinamento residencial. Isso teve sérias consequências individuais e agregadas, desde um garotinho que ficou em casa sozinho por dias após testemunhar a morte de seu avô até uma desaceleração econômica significativa. Mas parece ter contribuído para uma queda drástica de novas infecções fora de Wuhan, onde o surto começou, para um único e baixo dígito.

A despeito da divulgação do progresso em conter o vírus, os líderes da China estão mostrando sinais de estresse. Como as elites de outras autocracias, elas se sentem politicamente mais vulneráveis ​​durante as crises. Elas sabem que, quando o medo e a frustração da população aumentam, até mesmo pequenos erros podem custar caro e provocar sérios desafios ao seu poder.

E "frustração" é o mínimo que se pode dizer. O público chinês está bastante e verdadeiramente indignado com os esforços iniciais das autoridades para suprimir informações sobre o novo vírus, incluindo o fato de que ele pode ser transmitido entre humanos. Em nenhum lugar isso foi mais aparente do que no tumultuado anúncio de 7 de fevereiro quando o médico Li Wenliang, de Wuhan – acusado pelas autoridades locais de  espalhar "boatos" enquanto tentava avisar seus colegas sobre o coronavírus em dezembro – morreu por causa disso.

Com o sistema de censura da China enfraquecido temporariamente – provavelmente porque os censores não receberam instruções claras sobre como lidar com essas histórias – até os jornais oficiais publicaram as notícias da morte de Li nas primeiras páginas. E os líderes empresariais, um grupo tipicamente apolítico, denunciaram a conduta das autoridades de Wuhan e exigiram que se responsabilizassem por isso.

Não há dúvidas de que as autoridades não souberam lidar com o início do surto, o que permitiu que se espalhasse tão amplamente, com os profissionais de saúde – mais de 3.000 foram infectados até agora – muitos foram seriamente afetados. E, apesar das tentativas do governo central de transformar autoridades locais em  bodes expiatórios – muitas autoridades de saúde da província de Hubei foram demitidas – é  provável que haja mais perguntas a respeito daquilo que o presidente chinês Xi Jinping tinha conhecimento.

Não é de se admirar que Xi esteja se esforçando bastante para reparar sua imagem de líder forte e competente. Depois que o governo central ordenou o isolamento de Wuhan no final de janeiro, Xi nomeou o primeiro-ministro Li Keqiang para liderar a força-tarefa do coronavírus. Mas o fato de ter sido Li, e não Xi, quem afinal foi a Wuhan, parece que isso mandou a mensagem errada, como Xi constatou nos dias seguintes.

Em 3 de fevereiro, em uma reunião do Comitê Permanente do Politburo, Xi adotou um tom excepcionalmente defensivo em um discurso que parecia ser sobre controle de danos. Embora Xi tenha admitido ter conhecimento do surto antes de dar o sinal de alarme, ele enfatizou seu papel pessoal na liderança da luta contra o vírus.

Além disso, em 10 de fevereiro, Xi fez uma série de aparições públicas em Pequim, com o objetivo de reforçar a ideia de que ele está firme no comando. Três dias depois, demitiu os chefes de partido da província de Hubei e do município de Wuhan pelo inadequado tratamento da crise. E dois dias depois disso, em um movimento sem precedentes, o PCC divulgou o texto completo do discurso interno do Comitê Permanente do Politburo de Xi.

Embora Xi aparentemente tenha recuperado a aura de líder dominante – principalmente graças aos propagandistas do PCC, que trabalham ininterruptamente para restaurar sua imagem – a repercussão política provavelmente será séria. O alvoroço profundo que marcou aqueles momentos fugazes de relativa liberdade cibernética – as duas semanas, do final de janeiro ao início de fevereiro, quando os censores perderam o controle da narrativa popular – deverá ser profundamente preocupante para o PCC.

De fato, o PCC pode ser extremamente hábil em reprimir dissidências, mas repressão não é erradicação. Mesmo um lapso momentâneo pode desencadear suprimidos sentimentos anti-regime. Perguntamos o que poderia acontecer com o poder do PCC se o povo chinês pudesse se expressar livremente por alguns meses, e não apenas algumas semanas.

O resultado político de maior consequência do surto de COVID-19 pode muito bem ser a erosão do apoio ao PCC entre a classe média urbana da China. Suas vidas não foram severamente perturbadas pela epidemia ou pela resposta, mas tiveram plena consciência de como estão desamparados sob um regime que valoriza o sigilo e o próprio poder em detrimento da saúde e do bem-estar públicos.

Na era pós-Mao, o povo chinês e o PCC aderiram a um contrato social implícito: o povo tolera o monopólio político do partido, desde que o partido proporcione progresso econômico suficiente e governança adequada. A má gestão do PCC com relação ao surto de COVID-19 ameaça esse pacto tácito. Nesse sentido, o regime de partido único da China pode estar em uma posição bem mais precária do que se imagina.

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