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Como o modelo da China mostra que o Brasil pode reduzir a carga tributária

O desafio agora é político: confiar que reduzir alíquotas não significa perder receita, mas mudar o eixo da arrecadação da carga excessiva para a eficiência

Reforma tributária aprovada pela Congresso deve facilitar o ambiente de negócios no país (EBC/Reprodução)

Reforma tributária aprovada pela Congresso deve facilitar o ambiente de negócios no país (EBC/Reprodução)

Publicado em 17 de setembro de 2025 às 19h29.

Por Ricardo Leitão e Rodrigo Spada*

 

O Brasil acaba de dar um passo histórico ao aprovar sua reforma tributária, substituindo cinco tributos por um modelo dual de Imposto sobre Valor Agregado – conhecido como IVA ou VAT, a depender do país. Mas uma questão central permanece: será possível reduzir a alíquota do novo imposto sobre consumo sem comprometer a arrecadação? A experiência da China mostra que sim, desde que haja administração centralizada, tecnologia e interesse político. A boa notícia é que o Brasil já criou a peça institucional que permite essa transição: o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CG-IBS), órgão que unifica a arrecadação e a distribuição de receitas em um sistema único. Mas ainda restam desafios a serem superados para conseguirmos a redução da carga tributária a partir dos mecanismos trazidos pela reforma.

A lição chinesa é clara. Entre 2018 e 2019, o país reduziu a alíquota do imposto sobre valor agregado de 17% para 13% na indústria e de 10% para 9% em setores como transporte e construção. Em tese, isso deveria gerar queda brusca na arrecadação. O que ocorreu foi o oposto: a base tributária se expandiu, os lucros empresariais aumentaram e novos investimentos foram feitos. O fisco não perdeu controle porque havia uma administração centralizada do VAT, capaz de processar créditos, cruzar dados em tempo real e combater evasão. O corte que parecia transitório acabou incorporado de forma definitiva ao novo Código Tributário chinês, em vigor a partir de 2026.

Esse é justamente o papel que o Comitê Gestor do IBS assume no Brasil. Pela primeira vez, um tributo de competência compartilhada entre União, Estados e municípios será recolhido por uma plataforma única. Em vez de cada ente federado gerir sua parcela de forma isolada, como no velho ICMS ou no ISS, será o Comitê que arrecadará e distribuirá automaticamente a receita. Estima-se que, quando plenamente implementado, o IBS movimentará cerca de R$ 1 trilhão por ano, passando por um único sistema online nacional. Essa centralização não apenas reduz custos de conformidade para as empresas, como cria condições para o país aplicar políticas semelhantes às da China: devolução rápida de créditos, uso de inteligência artificial para detectar fraudes e possibilidade real de cortar alíquotas sem perda estrutural de arrecadação.

O segundo pilar dessa estratégia é a tecnologia. A China estruturou o chamado “Golden Tax”, que integrou dados fiscais, bancários e comerciais em tempo real. Na terceira fase do projeto, o uso de inteligência artificial e big data permitiu reduzir a evasão fiscal de forma significativa, mesmo sem aumento de alíquotas. Pequenas manufaturas e o comércio varejista, antes marcados pela informalidade, passaram a contribuir mais. A quarta fase, em implantação, ampliou a integração de dados entre bancos, seguridade social e comércio exterior, criando um monitoramento multidimensional que fecha brechas históricas de fraude. O Brasil, por sua vez, já é referência internacional em nota fiscal eletrônica, em sistemas de pagamento instantâneo como o Pix e em digitalização fiscal. Com o Comitê Gestor, há agora a estrutura para integrar essas ferramentas em um modelo de “tributo inteligente”.

O terceiro aspecto é o impacto direto sobre empresas e trabalhadores. A devolução tempestiva de créditos acumulados de VAT foi decisiva na China para liberar capital de giro e estimular a inovação. Empresas privadas em setores modernos contrataram mais profissionais de pesquisa e desenvolvimento e aumentaram investimentos em tecnologia. Houve também efeitos mensuráveis sobre a confiança de mercado: ações de companhias do setor farmacêutico, por exemplo, valorizaram após a política de reembolso nacional, refletindo a melhoria da liquidez e a previsibilidade fiscal. No Brasil, onde o acúmulo de créditos é um problema histórico para exportadores e indústrias, o Comitê Gestor torna viável um modelo de reembolso automático, reduzindo custos e fortalecendo a competitividade.

A trajetória chinesa ainda oferece uma lição sobre estratégia fiscal. A redução de alíquotas, inicialmente vista como uma renúncia de receitas, foi compensada pela ampliação da base tributária e pela formalização de setores. Além disso, ao aumentar os lucros empresariais e a renda das famílias, fortaleceu-se a arrecadação de outros tributos, como o imposto de renda. Assim, mesmo com a queda inicial do VAT, o equilíbrio fiscal foi preservado. O Brasil, cuja alíquota combinada de CBS e IBS pode chegar a 26,5% — uma das mais altas do mundo —, precisa avaliar se não seria mais produtivo trocar carga excessiva por eficiência e dinamismo.

O desafio agora é político: confiar que reduzir alíquotas não significa perder receita, mas mudar o eixo da arrecadação da carga excessiva para a eficiência. O país dispõe de instrumentos inéditos: centralização do IBS, digitalização avançada e mecanismos já previstos na reforma, como cashback e split payment, que podem fortalecer a conformidade fiscal. A questão é se teremos a coragem de utilizá-los para reduzir efetivamente o peso tributário — movimento que a Índia também anunciou ao planejar reduzir impostos sobre bens de consumo em resposta a pressões externas.

O próximo passo do Brasil será decidir se a reforma tributária será apenas uma reorganização ou um verdadeiro motor de desenvolvimento econômico. Se quisermos aprender com a China, precisamos ir além da simplificação formal. A lição é simples: quando há gestão centralizada, tecnologia avançada e devolução rápida de créditos, reduzir impostos não é ameaça. É estratégia de crescimento.

*Ricardo Leitão é fiscal de Receitas Tributárias do Estado do Pará, mestre em Políticas Públicas pela Universidade de Oxford (Reino Unido) e pesquisador visitante na Universidade de Fudan (China). Foi Secretário de Estado de Incentivos Fiscais do Pará e pesquisador na área de economia na FDDI (China), JICA (Japão) e Chatam House (Reino Unido).

Rodrigo Spada é auditor fiscal da Receita Estadual de São Paulo e presidente da Febrafite (Associação Nacional de Fiscais de Tributos Estaduais) e da Afresp (Associação dos Auditores Fiscais da Receita Estadual de São Paulo). É formado em Engenharia de Produção pela UFSCar e em Direito pela Unesp, com MBA em Gestão Empresarial pela FIA.