Ainda bem que não somos formigas…
Não poucas vezes nos colocamos diante de debates sobre como sobrepor o bem coletivo ao interesse individual
Da Redação
Publicado em 23 de abril de 2020 às 13h54.
Diante de uma enchente repentina, algumas espécies de formigas se unem, agarradas umas às outras e umas sobre às outras, formando uma enorme balsa viva que flutua sobre a água até aportar em um local seco e protegido. Embora passe a impressão de sacrifício de algumas para salvar as demais, a verdade é que quase não há mortes, pois quase todas elas, mesmo debaixo d´água, sobrevivem.
Graças a Deus ou à evolução das espécies (ou a ambos), nós seres humanos não somos formigas. Usamos razão e emoção, pragmatismo e compaixão para tomarmos nossas decisões. E não poucas vezes nos colocamos diante de debates sobre como sobrepor o bem coletivo ao interesse individual, sem que isso corrompa nossos direitos mais básicos, como a vida e a liberdade.
A pandemia do Covid-19 traz mais uma vez este dilema. Há os que pensem que se trata de uma gripe forte. Há os que anteveem o fim da humanidade. Há os que defendem tratar a pandemia como prioridade médica. Outros pensam que os danos da economia serão maiores que as mortes causadas pela doença. Eu prefiro pensar na pandemia, não como uma ameaça à humanidade, mas antes como uma ameaça à nossa capacidade de lidar com dilemas éticos. Eis como vejo que acontece:
A solução encaminhada pela maioria das nações para combater a pandemia foi centrada na ideia do “achatamento da curva” de Gauss. Significa, em outras palavras, alongar o tempo de disseminação do contágio, mas evitar um pico muito alto que causaria o colapso dos sistemas de saúde e a morte de centenas de milhares de pessoas num curtíssimo espaço de poucas semanas. Além disso, haveria mais tempo para encontrar e desenvolver um remédio ou vacina contra o vírus.
Na ausência de uma ideia melhor e para proteger a “terceira idade”, que coincidentemente, abrange a esmagadora maioria dos líderes políticos mundiais, o plano foi colocado em prática. E recebeu o nome de “distanciamento social”. Parece interessante, funcionou na China em Hubei. Por que não em todos os países?
O que se vê agora são os efeitos do distanciamento social. Efeitos que vão muito além da queda da bolsa e da interrupção de atividades esportivas e sociais. A atividade econômica está desmoronando. É louvável, no entanto, que coloquemos as vidas acima do interesse econômico. Quem seria contra?
Mesmo muito antes do Covid-19, o desemprego e seus efeitos já matavam milhares. Estima-se que cerca de vinte mil pessoas por dia. Não é demagogia, nem catastrofismo. É, sim, resultado de uma concentração de riqueza que gerou uma desigualdade tamanha que resulta na fome, doença e morte de crianças e idosos que têm em comum a pobreza e não o covid-19.
Os governos reagiram a este efeito prontamente. Primeiro anunciando redução de juros para estimular investimentos, depois, gradativamente, e de maneira desordenada, anunciando medidas de apoio financeiro a diversos setores e aos desempregados que já se estima que sejam dezenas de milhões. Resumindo: os bancos centrais do mundo inteiro estão injetando dinheiro na economia, Em 2008, funcionou. Mas naquela crise, não havia histeria além dos mercados financeiros. E agora, vai funcionar?
Penso que não. Os governos tratam a crise como duas coisas separadas, independentes e, por vezes, antagônicas: saúde e economia. Mas elas estão ligadas num contexto mais amplo: bem estar coletivo acima do individual.
Neste momento, colocar dinheiro na economia, prover estímulos, parece-me um erro. O dinheiro originado pelos bancos centrais de todo o mundo escoa num primeiro momento para as instituições financeiras, que são as responsáveis por repassar para o mercado. Só que não. O dinheiro escoa para a especulação e para as decisões de proteção do patrimônio. Quem tem mais, fica com mais ainda. Quem não tem, continua sem nada. E o grande motor do consumo e da geração de renda, que são as pequenas e médias empresas, paralisa. Na verdade, o que estamos vendo é que o dinheiro está correndo para o bolso de especuladores. Estes são especialistas em detectar crises e oportunidades. Governos são criados para olhar longo prazo. É uma guerra desigual neste momento. Os especuladores estão dando uma verdadeira surra nos governos.
O que veremos, quando a pandemia se for, é uma concentração de renda ainda maior, ainda mais absurda. Liste as dez maiores empresas do mundo e faça um exercício de projeção. Elas estarão mais fortes ou mais fracas após passada a pandemia? Aposto que muito mais fortes e capitalizadas. Pense nas empresas de venda de produtos, grandes redes versus pequenos mercadinhos. Qual sairá menos machucado da crise? Aposto dobrado que os pequenos sofrerão muito mais.
É inútil pedir à população que não corra aos supermercados, que mantenha a calma. Diariamente eles estão sendo bombardeados pela mídia sobre as mortes crescentes. Para cada notícia de esperança, há muitas mais de alarme.
Neste momento, os governos precisam tratar a doença com a mesma lógica com que tratam as mortes de trânsito, as mortes por fumo e bebida, as mortes por epidemias locais, como dengue ou ebola. É preciso pensar no bem coletivo. Porque neste momento, o que estamos fazendo é poupar os idosos ricos e relegar os pobres, sejam jovens ou idosos, à mingua. Isto não é demagogia. Isto é um fato.
Passado o pico da doença, em alguns meses, restará um árduo caminho a percorrer. Este caminho dependerá de como os governos e a sociedade irão aceitar ou mudar o sistema atual de distribuição da renda. Se optarem por simplesmente agradecer o fim da pandemia, a retomada será lenta e com riscos de muita desordem social, como já visto recentemente no Chile.
Espero que a pandemia sirva de um sinal de alerta para mostrar o quanto a concentração crescente da renda traz de prejuízo para a humanidade. E que os governos escolham medidas para enfrentar seu maior desafio: criar uma sociedade menos desigual.
Fábio Astrauskas é economista, professor do Insper e CEO da Siegen
Diante de uma enchente repentina, algumas espécies de formigas se unem, agarradas umas às outras e umas sobre às outras, formando uma enorme balsa viva que flutua sobre a água até aportar em um local seco e protegido. Embora passe a impressão de sacrifício de algumas para salvar as demais, a verdade é que quase não há mortes, pois quase todas elas, mesmo debaixo d´água, sobrevivem.
Graças a Deus ou à evolução das espécies (ou a ambos), nós seres humanos não somos formigas. Usamos razão e emoção, pragmatismo e compaixão para tomarmos nossas decisões. E não poucas vezes nos colocamos diante de debates sobre como sobrepor o bem coletivo ao interesse individual, sem que isso corrompa nossos direitos mais básicos, como a vida e a liberdade.
A pandemia do Covid-19 traz mais uma vez este dilema. Há os que pensem que se trata de uma gripe forte. Há os que anteveem o fim da humanidade. Há os que defendem tratar a pandemia como prioridade médica. Outros pensam que os danos da economia serão maiores que as mortes causadas pela doença. Eu prefiro pensar na pandemia, não como uma ameaça à humanidade, mas antes como uma ameaça à nossa capacidade de lidar com dilemas éticos. Eis como vejo que acontece:
A solução encaminhada pela maioria das nações para combater a pandemia foi centrada na ideia do “achatamento da curva” de Gauss. Significa, em outras palavras, alongar o tempo de disseminação do contágio, mas evitar um pico muito alto que causaria o colapso dos sistemas de saúde e a morte de centenas de milhares de pessoas num curtíssimo espaço de poucas semanas. Além disso, haveria mais tempo para encontrar e desenvolver um remédio ou vacina contra o vírus.
Na ausência de uma ideia melhor e para proteger a “terceira idade”, que coincidentemente, abrange a esmagadora maioria dos líderes políticos mundiais, o plano foi colocado em prática. E recebeu o nome de “distanciamento social”. Parece interessante, funcionou na China em Hubei. Por que não em todos os países?
O que se vê agora são os efeitos do distanciamento social. Efeitos que vão muito além da queda da bolsa e da interrupção de atividades esportivas e sociais. A atividade econômica está desmoronando. É louvável, no entanto, que coloquemos as vidas acima do interesse econômico. Quem seria contra?
Mesmo muito antes do Covid-19, o desemprego e seus efeitos já matavam milhares. Estima-se que cerca de vinte mil pessoas por dia. Não é demagogia, nem catastrofismo. É, sim, resultado de uma concentração de riqueza que gerou uma desigualdade tamanha que resulta na fome, doença e morte de crianças e idosos que têm em comum a pobreza e não o covid-19.
Os governos reagiram a este efeito prontamente. Primeiro anunciando redução de juros para estimular investimentos, depois, gradativamente, e de maneira desordenada, anunciando medidas de apoio financeiro a diversos setores e aos desempregados que já se estima que sejam dezenas de milhões. Resumindo: os bancos centrais do mundo inteiro estão injetando dinheiro na economia, Em 2008, funcionou. Mas naquela crise, não havia histeria além dos mercados financeiros. E agora, vai funcionar?
Penso que não. Os governos tratam a crise como duas coisas separadas, independentes e, por vezes, antagônicas: saúde e economia. Mas elas estão ligadas num contexto mais amplo: bem estar coletivo acima do individual.
Neste momento, colocar dinheiro na economia, prover estímulos, parece-me um erro. O dinheiro originado pelos bancos centrais de todo o mundo escoa num primeiro momento para as instituições financeiras, que são as responsáveis por repassar para o mercado. Só que não. O dinheiro escoa para a especulação e para as decisões de proteção do patrimônio. Quem tem mais, fica com mais ainda. Quem não tem, continua sem nada. E o grande motor do consumo e da geração de renda, que são as pequenas e médias empresas, paralisa. Na verdade, o que estamos vendo é que o dinheiro está correndo para o bolso de especuladores. Estes são especialistas em detectar crises e oportunidades. Governos são criados para olhar longo prazo. É uma guerra desigual neste momento. Os especuladores estão dando uma verdadeira surra nos governos.
O que veremos, quando a pandemia se for, é uma concentração de renda ainda maior, ainda mais absurda. Liste as dez maiores empresas do mundo e faça um exercício de projeção. Elas estarão mais fortes ou mais fracas após passada a pandemia? Aposto que muito mais fortes e capitalizadas. Pense nas empresas de venda de produtos, grandes redes versus pequenos mercadinhos. Qual sairá menos machucado da crise? Aposto dobrado que os pequenos sofrerão muito mais.
É inútil pedir à população que não corra aos supermercados, que mantenha a calma. Diariamente eles estão sendo bombardeados pela mídia sobre as mortes crescentes. Para cada notícia de esperança, há muitas mais de alarme.
Neste momento, os governos precisam tratar a doença com a mesma lógica com que tratam as mortes de trânsito, as mortes por fumo e bebida, as mortes por epidemias locais, como dengue ou ebola. É preciso pensar no bem coletivo. Porque neste momento, o que estamos fazendo é poupar os idosos ricos e relegar os pobres, sejam jovens ou idosos, à mingua. Isto não é demagogia. Isto é um fato.
Passado o pico da doença, em alguns meses, restará um árduo caminho a percorrer. Este caminho dependerá de como os governos e a sociedade irão aceitar ou mudar o sistema atual de distribuição da renda. Se optarem por simplesmente agradecer o fim da pandemia, a retomada será lenta e com riscos de muita desordem social, como já visto recentemente no Chile.
Espero que a pandemia sirva de um sinal de alerta para mostrar o quanto a concentração crescente da renda traz de prejuízo para a humanidade. E que os governos escolham medidas para enfrentar seu maior desafio: criar uma sociedade menos desigual.
Fábio Astrauskas é economista, professor do Insper e CEO da Siegen