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Ainda bem que não somos formigas&

Não poucas vezes nos colocamos diante de debates sobre como sobrepor o bem coletivo ao interesse individual

CORONAVÍRUS: a expectativa é que o Brasil atinga o pico da doença até o mês de maio.  / REUTERS/Ricardo Moraes (Ricardo Moraes/Reuters)
CORONAVÍRUS: a expectativa é que o Brasil atinga o pico da doença até o mês de maio. / REUTERS/Ricardo Moraes (Ricardo Moraes/Reuters)
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Opinião

Publicado em 23 de abril de 2020 às, 13h54.

Diante de uma enchente repentina, algumas espécies de formigas se unem, agarradas umas às outras e umas sobre às outras, formando uma enorme balsa viva que flutua sobre a água até aportar em um local seco e protegido. Embora passe a impressão de sacrifício de algumas para salvar as demais, a verdade é que quase não há mortes, pois quase todas elas, mesmo debaixo d´água, sobrevivem.

Graças a Deus ou à evolução das espécies (ou a ambos), nós seres humanos não somos formigas. Usamos razão e emoção, pragmatismo e compaixão para tomarmos nossas decisões. E não poucas vezes nos colocamos diante de debates sobre como sobrepor o bem coletivo ao interesse individual, sem que isso corrompa nossos direitos mais básicos, como a vida e a liberdade.

A pandemia do Covid-19 traz mais uma vez este dilema. Há os que pensem que se trata de uma gripe forte. Há os que anteveem o fim da humanidade. Há os que defendem tratar a pandemia como prioridade médica. Outros pensam que os danos da economia serão maiores que as mortes causadas pela doença. Eu prefiro pensar na pandemia, não como uma ameaça à humanidade, mas antes como uma ameaça à nossa capacidade de lidar com dilemas éticos. Eis como vejo que acontece:

A solução encaminhada pela maioria das nações para combater a pandemia foi centrada na ideia do “achatamento da curva” de Gauss. Significa, em outras palavras, alongar o tempo de disseminação do contágio, mas evitar um pico muito alto que causaria o colapso dos sistemas de saúde e a morte de centenas de milhares de pessoas num curtíssimo espaço de poucas semanas. Além disso, haveria mais tempo para encontrar e desenvolver um remédio ou vacina contra o vírus.

Na ausência de uma ideia melhor e para proteger a “terceira idade”, que coincidentemente, abrange a esmagadora maioria dos líderes políticos mundiais, o plano foi colocado em prática. E recebeu o nome de “distanciamento social”. Parece interessante, funcionou na China em Hubei. Por que não em todos os países?

O que se vê agora são os efeitos do distanciamento social. Efeitos que vão muito além da queda da bolsa e da interrupção de atividades esportivas e sociais. A atividade econômica está desmoronando. É louvável, no entanto, que coloquemos as vidas acima do interesse econômico. Quem seria contra?

Mesmo muito antes do Covid-19, o desemprego e seus efeitos já matavam milhares. Estima-se que cerca de vinte mil pessoas por dia. Não é demagogia, nem catastrofismo. É, sim, resultado de uma concentração de riqueza que gerou uma desigualdade tamanha que resulta na fome, doença e morte de crianças e idosos que têm em comum a pobreza e não o covid-19.

Os governos reagiram a este efeito prontamente. Primeiro anunciando redução de juros para estimular investimentos, depois, gradativamente, e de maneira desordenada, anunciando medidas de apoio financeiro a diversos setores e aos desempregados que já se estima que sejam dezenas de milhões. Resumindo: os bancos centrais do mundo inteiro estão injetando dinheiro na economia, Em 2008, funcionou. Mas naquela crise, não havia histeria além dos mercados financeiros. E agora, vai funcionar?

Penso que não. Os governos tratam a crise como duas coisas separadas, independentes e, por vezes, antagônicas: saúde e economia. Mas elas estão ligadas num contexto mais amplo: bem estar coletivo acima do individual.

Neste momento, colocar dinheiro na economia, prover estímulos, parece-me um erro. O dinheiro originado pelos bancos centrais de todo o mundo escoa num primeiro momento para as instituições financeiras, que são as responsáveis por repassar para o mercado. Só que não. O dinheiro escoa para a especulação e para as decisões de proteção do patrimônio. Quem tem mais, fica com mais ainda. Quem não tem, continua sem nada. E o grande motor do consumo e da geração de renda, que são as pequenas e médias empresas, paralisa. Na verdade, o que estamos vendo é que o dinheiro está correndo para o bolso de especuladores. Estes são especialistas em detectar crises e oportunidades. Governos são criados para olhar longo prazo. É uma guerra desigual neste momento. Os especuladores estão dando uma verdadeira surra nos governos.

O que veremos, quando a pandemia se for, é uma concentração de renda ainda maior, ainda mais absurda. Liste as dez maiores empresas do mundo e faça um exercício de projeção. Elas estarão mais fortes ou mais fracas após passada a pandemia? Aposto que muito mais fortes e capitalizadas. Pense nas empresas de venda de produtos, grandes redes versus pequenos mercadinhos. Qual sairá menos machucado da crise? Aposto dobrado que os pequenos sofrerão muito mais.

É inútil pedir à população que não corra aos supermercados, que mantenha a calma. Diariamente eles estão sendo bombardeados pela mídia sobre as mortes crescentes. Para cada notícia de esperança, há muitas mais de alarme.

Neste momento, os governos precisam tratar a doença com a mesma lógica com que tratam as mortes de trânsito, as mortes por fumo e bebida, as mortes por epidemias locais, como dengue ou ebola. É preciso pensar no bem coletivo. Porque neste momento, o que estamos fazendo é poupar os idosos ricos e relegar os pobres, sejam jovens ou idosos, à mingua. Isto não é demagogia. Isto é um fato.

Passado o pico da doença, em alguns meses, restará um árduo caminho a percorrer. Este caminho dependerá de como os governos e a sociedade irão aceitar ou mudar o sistema atual de distribuição da renda. Se optarem por simplesmente agradecer o fim da pandemia, a retomada será lenta e com riscos de muita desordem social, como já visto recentemente no Chile.

Espero que a pandemia sirva de um sinal de alerta para mostrar o quanto a concentração crescente da renda traz de prejuízo para a humanidade. E que os governos escolham medidas para enfrentar seu maior desafio: criar uma sociedade menos desigual.

Fábio Astrauskas é economista, professor do Insper e CEO da Siegen