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A reforma da Lei de Falências e o Curioso Caso de Benjamin Button

Projeto de lei recém-aprovado que trata de recuperações judiciais e falências desequilibra proteção do devedor em detrimento dos credores

Congresso Nacional, em Brasília (Paulo Whitaker/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 10 de dezembro de 2020 às 07h00.

No apagar das luzes de 2020, o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei nº 4.458/2020, que reforma a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei nº 11.101/2005). A lei reformada aparece depois de intensa tramitação legislativa que surgiu ainda no governo Temer para proteger o crédito fiscal e que ganhou força política decisiva com a crise desencadeada pela pandemia da covid-19.

Referida reforma ficará marcada por um grande número de projetos de lei que foram sendo apensados entre si para, ao final, entregar solução nada homogênea.

Não se desconsidera a dificuldade da aprovação de um texto legal consensual entre os diversos grupos de interesses envolvidos na análise do tormentoso tema da crise da empresa e, justamente por isso, deve ser louvado o esforço de todos aqueles diretamente envolvidos na apresentação de um resultado final apto à aprovação no Congresso.

A alteração legal dentro do contexto fático e econômico em que foi feita -- pandêmico -- exigirá uma interpretação cuidadosa da lei pelo mercado. Vivemos ainda um período excepcional e o empresário -- principalmente o de menor porte -- é um dos que mais são afetados pela interrupção brusca da economia e que ainda merecem um tratamento mais adequado por parte do nosso ordenamento jurídico.

Dentro desse contexto, espera-se em breve a aprovação do PL nº 33 de 2020, com influência do Marco Legal do Empreendedorismo e olhos voltados para as microempresas e empresas de pequeno porte, na medida em que nesse importante aspecto a lei reformada em nada contribuiu.

E como sói acontecer quando há grandes mudanças na lei, a pergunta é uma só: o que muda?

Apesar do intuito de modernizar a lei, o PL peca ao conceder incentivos que abrem portas à utilização distorcida dos institutos nele contidos. Nesse sentido, por exemplo, a abertura da possibilidade de requerimento de tutela de urgência pelo devedor para a suspensão das execuções por 60 dias para negociações, antes de realizar o pedido de recuperação judicial (art. 20-B, §1º).

Não se pode negar que a solução negociada seja a alma do procedimento de recuperação judicial (que lida diretamente com o mercado e seus stakeholders), mas, ao mesmo tempo, o novo procedimento não impõe qualquer ônus ao devedor sobre o resultado efetivo dessas negociações.

Ou seja, a possibilidade de suspensão das ações não vem acompanhada de qualquer contrapartida por parte da eventual (e futura) empresa recuperanda. Esse novo canal de comunicação, antes mesmo da recuperação judicial e sem qualquer responsabilidade do devedor, não parece ser a melhor saída e pode abrir caminho para ainda maiores abusos por parte das empresas devedoras.

Até mesmo porque nunca é demais relembrar que os credores também são empresários e eles não podem ser ainda mais penalizados pela crise daquele que lhes deve créditos fundamentais para a sua própria sobrevivência.

Outra alteração que demonstra a desequilibrada proteção do devedor em detrimento dos seus credores é a positivação da suspensão das ações e execuções por período superior a 180 dias (art. 6, §4º), novamente sem exigir qualquer contrapartida. Sabe-se que, na prática, a prorrogação já ocorre rotineiramente nos processos em curso. Parece-nos uma tentativa de resolver, em lei, um problema que já não existe mais graças à jurisprudência, reiterando o objetivo de proteção ao devedor em detrimento de seus credores.

Ao mesmo tempo em que pontos controversos são colocados em discussão e demandam ulterior modulação de seus efeitos pela jurisprudência pátria, não se pode deixar de mencionar os pontos a se louvar.

Há que se falar da proteção concedida ao investidor na recuperação judicial. Bem se sabe que a empresa em crise é beneficiada com a entrada de dinheiro novo. Logo, o PL positivou em sua Seção IV-A a proteção ao financiador do devedor em recuperação judicial, garantindo um pouco mais de segurança jurídica e previsibilidade ao investidor pela possibilidade da concessão de garantias subordinadas àquelas já existentes.

No entanto revela grande timidez na iniciativa, justamente porque não possibilita a concessão de garantia prioritária em face de garantias já existentes, tal como é possível se realizar no direito americano, o que pode fazer com que o incentivo ao financiador ainda assim não se revele suficiente.

O mais importante da nova lei, porém, é a agilização da falência, seja pelo incentivo à arrecadação e liquidação dos bens de forma célere (art. 114-A) ou pela regulamentação de novas formas de alienação e dos valores de venda (art. 142), seja pelo procedimento de verificação de crédito mais efetivo (art. 7º).

A falência está em vias de ser (finalmente) eficiente. Essa mudança parece trazer à luz uma nova fase da legislação falimentar brasileira, afinal, com a relevante melhora da falência em si, o procedimento de recuperação judicial tende a ser mais bem utilizado como ferramenta de efetiva reestruturação. Isso se dá justamente porque a falência passa a ser forma efetiva de garantia de preservação da atividade econômica ou dos meios de produção nas mãos de outro empresário com maiores condição de gerar riquezas, tecnologia e tributos.

A clássica lição de Trajano de Miranda Valverde sobrevive, com cada vez mais ares de atualidade: “uma lei de falências gasta-se depressa no atrito permanente com a fraude. [...] As brechas, que ardilosos conseguem com o tempo abrir na lei, por mais fechada que seja, necessitam de reparos”.

A reforma da Lei nº 11.101/2005 obedece à prescrição do antigo mestre carioca, pois quinze anos se passaram e já houve tempo suficiente para a comunidade jurídica (e também o mercado) desmascarar as mazelas da nossa legislação vigente. Porém a luta contra a fraude não oferece tréguas, e a lei reformada não só corre o risco de “envelhecer mal”, como de, ao melhor estilo d’O curioso caso de Benjamin Button, já ter nascido velha.

*Ronaldo Vasconcelos é Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, presidente da Comissão de Estudos de Direito Falimentar e Recuperacional do IASP e advogado em São Paulo.

*César Augusto Martins Carnaúba é mestrando em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogado em São Paulo.

*Thais D'Angelo da Silva Hanesaka é pós-graduanda em Arbitragem Comercial pelo Ibmec-SP e advogada em São Paulo.

No apagar das luzes de 2020, o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei nº 4.458/2020, que reforma a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei nº 11.101/2005). A lei reformada aparece depois de intensa tramitação legislativa que surgiu ainda no governo Temer para proteger o crédito fiscal e que ganhou força política decisiva com a crise desencadeada pela pandemia da covid-19.

Referida reforma ficará marcada por um grande número de projetos de lei que foram sendo apensados entre si para, ao final, entregar solução nada homogênea.

Não se desconsidera a dificuldade da aprovação de um texto legal consensual entre os diversos grupos de interesses envolvidos na análise do tormentoso tema da crise da empresa e, justamente por isso, deve ser louvado o esforço de todos aqueles diretamente envolvidos na apresentação de um resultado final apto à aprovação no Congresso.

A alteração legal dentro do contexto fático e econômico em que foi feita -- pandêmico -- exigirá uma interpretação cuidadosa da lei pelo mercado. Vivemos ainda um período excepcional e o empresário -- principalmente o de menor porte -- é um dos que mais são afetados pela interrupção brusca da economia e que ainda merecem um tratamento mais adequado por parte do nosso ordenamento jurídico.

Dentro desse contexto, espera-se em breve a aprovação do PL nº 33 de 2020, com influência do Marco Legal do Empreendedorismo e olhos voltados para as microempresas e empresas de pequeno porte, na medida em que nesse importante aspecto a lei reformada em nada contribuiu.

E como sói acontecer quando há grandes mudanças na lei, a pergunta é uma só: o que muda?

Apesar do intuito de modernizar a lei, o PL peca ao conceder incentivos que abrem portas à utilização distorcida dos institutos nele contidos. Nesse sentido, por exemplo, a abertura da possibilidade de requerimento de tutela de urgência pelo devedor para a suspensão das execuções por 60 dias para negociações, antes de realizar o pedido de recuperação judicial (art. 20-B, §1º).

Não se pode negar que a solução negociada seja a alma do procedimento de recuperação judicial (que lida diretamente com o mercado e seus stakeholders), mas, ao mesmo tempo, o novo procedimento não impõe qualquer ônus ao devedor sobre o resultado efetivo dessas negociações.

Ou seja, a possibilidade de suspensão das ações não vem acompanhada de qualquer contrapartida por parte da eventual (e futura) empresa recuperanda. Esse novo canal de comunicação, antes mesmo da recuperação judicial e sem qualquer responsabilidade do devedor, não parece ser a melhor saída e pode abrir caminho para ainda maiores abusos por parte das empresas devedoras.

Até mesmo porque nunca é demais relembrar que os credores também são empresários e eles não podem ser ainda mais penalizados pela crise daquele que lhes deve créditos fundamentais para a sua própria sobrevivência.

Outra alteração que demonstra a desequilibrada proteção do devedor em detrimento dos seus credores é a positivação da suspensão das ações e execuções por período superior a 180 dias (art. 6, §4º), novamente sem exigir qualquer contrapartida. Sabe-se que, na prática, a prorrogação já ocorre rotineiramente nos processos em curso. Parece-nos uma tentativa de resolver, em lei, um problema que já não existe mais graças à jurisprudência, reiterando o objetivo de proteção ao devedor em detrimento de seus credores.

Ao mesmo tempo em que pontos controversos são colocados em discussão e demandam ulterior modulação de seus efeitos pela jurisprudência pátria, não se pode deixar de mencionar os pontos a se louvar.

Há que se falar da proteção concedida ao investidor na recuperação judicial. Bem se sabe que a empresa em crise é beneficiada com a entrada de dinheiro novo. Logo, o PL positivou em sua Seção IV-A a proteção ao financiador do devedor em recuperação judicial, garantindo um pouco mais de segurança jurídica e previsibilidade ao investidor pela possibilidade da concessão de garantias subordinadas àquelas já existentes.

No entanto revela grande timidez na iniciativa, justamente porque não possibilita a concessão de garantia prioritária em face de garantias já existentes, tal como é possível se realizar no direito americano, o que pode fazer com que o incentivo ao financiador ainda assim não se revele suficiente.

O mais importante da nova lei, porém, é a agilização da falência, seja pelo incentivo à arrecadação e liquidação dos bens de forma célere (art. 114-A) ou pela regulamentação de novas formas de alienação e dos valores de venda (art. 142), seja pelo procedimento de verificação de crédito mais efetivo (art. 7º).

A falência está em vias de ser (finalmente) eficiente. Essa mudança parece trazer à luz uma nova fase da legislação falimentar brasileira, afinal, com a relevante melhora da falência em si, o procedimento de recuperação judicial tende a ser mais bem utilizado como ferramenta de efetiva reestruturação. Isso se dá justamente porque a falência passa a ser forma efetiva de garantia de preservação da atividade econômica ou dos meios de produção nas mãos de outro empresário com maiores condição de gerar riquezas, tecnologia e tributos.

A clássica lição de Trajano de Miranda Valverde sobrevive, com cada vez mais ares de atualidade: “uma lei de falências gasta-se depressa no atrito permanente com a fraude. [...] As brechas, que ardilosos conseguem com o tempo abrir na lei, por mais fechada que seja, necessitam de reparos”.

A reforma da Lei nº 11.101/2005 obedece à prescrição do antigo mestre carioca, pois quinze anos se passaram e já houve tempo suficiente para a comunidade jurídica (e também o mercado) desmascarar as mazelas da nossa legislação vigente. Porém a luta contra a fraude não oferece tréguas, e a lei reformada não só corre o risco de “envelhecer mal”, como de, ao melhor estilo d’O curioso caso de Benjamin Button, já ter nascido velha.

*Ronaldo Vasconcelos é Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, presidente da Comissão de Estudos de Direito Falimentar e Recuperacional do IASP e advogado em São Paulo.

*César Augusto Martins Carnaúba é mestrando em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogado em São Paulo.

*Thais D'Angelo da Silva Hanesaka é pós-graduanda em Arbitragem Comercial pelo Ibmec-SP e advogada em São Paulo.

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