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A modernização do Banco Central: o papel da PEC 65/2023 na proteção do Pix e do sistema financeiro

A transformação proposta pela PEC 65/2023 não se confunde com privatização, mas representa a resposta estrutural à limitação do modelo de autarquia

Banco Central







 (Leandro Fonseca/Exame)

Banco Central (Leandro Fonseca/Exame)

Publicado em 26 de julho de 2025 às 10h12.

Última atualização em 26 de julho de 2025 às 10h13.

Por Guilherme Solino *

A fraude recente no ecossistema do Pix evidenciou desafios estruturais para o sistema financeiro nacional. O incidente teve origem em vulnerabilidades externas, localizadas em instituições privadas — especialmente provedores de serviços de tecnologia da informação (PSTIs) contratados por participantes do sistema. Ainda assim, o episódio reforça a necessidade de que o Banco Central disponha de recursos humanos e tecnológicos compatíveis com o aumento da complexidade operacional, para seguir aprimorando sua capacidade de supervisão, prevenção e resposta a riscos sistêmicos. Não houve falha de conduta ou gestão por parte dos servidores ou dirigentes do BC; ao contrário, o comprometimento institucional permanece, mas as restrições de recursos impõem limites à atuação e ao fortalecimento do sistema de pagamentos em um ambiente cada vez mais desafiador.

O crescimento acelerado do sistema financeiro digital e a complexidade dos ataques tornam indispensável investir continuamente em tecnologia, processos e equipes altamente qualificadas. Nesse contexto, ampliar a autonomia financeira, orçamentária e administrativa do Banco Central é a resposta mais consistente para fortalecer a capacidade de inovação, supervisão e segurança da instituição. O adiamento de entregas relevantes, como o Pix automático — implementado apenas em 2025 —, ilustra como restrições de recursos impactam o cotidiano de milhões de brasileiros e limitam a resposta institucional a novas demandas.

Durante audiência pública sobre a PEC 65/2023, realizada em 18 de junho de 2024, o ex-presidente Gustavo Loyola e o economista Marcos Lisboa destacaram que essas limitações são históricas e persistentes. Loyola advertiu que, devido à posição central do BC no sistema de pagamentos, o risco sistêmico cresce significativamente se falhas tecnológicas não forem prevenidas. Citou, como exemplo, o episódio ocorrido em Bangladesh, onde a ausência de defesas adequadas permitiu um ataque cibernético em 2016, resultando no desvio de reservas internacionais. Lisboa acrescentou que o reconhecimento internacional do Banco Central brasileiro está ameaçado justamente pela falta de autonomia orçamentária, o que limita a capacidade de inovar e de garantir a segurança das infraestruturas críticas.

Críticos argumentam que o BC já entrega resultados sob restrições, mas operar no limite não é sustentável. Experiências internacionais demonstram que atrasos em reforçar a capacidade institucional podem resultar em perdas elevadas para o país.

É relevante destacar o apoio interno à PEC 65/2023. Pesquisa recente realizada na intranet do Banco Central revelou que mais de 83% dos servidores da ativa apoiam a proposta. Mesmo entre os que apresentam ressalvas ao texto, há consenso quanto à necessidade de ampliar a autonomia financeira, orçamentária e administrativa da instituição. Tal apoio reflete o entendimento técnico de quem convive diariamente com as limitações do BC e enxerga a PEC 65/2023 como solução estrutural para modernizar a instituição.

A essência da PEC 65/2023 reside em três pilares: permitir ao Banco Central utilizar receitas próprias para despesas de custeio (autonomia financeira); garantir a capacidade de elaborar o seu orçamento, a ser apreciado pelo Conselho Monetário Nacional e aprovado pelo Legislativo (autonomia orçamentária); e transformar o BC em ente de direito privado, a fim de assegurar sua auto-organização institucional, inclusive na gestão de pessoal e estrutura (autonomia administrativa). Tudo isso ocorre com a preservação dos controles públicos, da transparência e da prestação de contas.

A transformação proposta pela PEC 65/2023 não se confunde com privatização, mas representa a resposta estrutural à limitação do modelo de autarquia, conforme destacou o ex-procurador do BC, Marcel Mascarenhas, na mesma audiência pública. Segundo ele, a legislação e as práticas atuais impedem o Banco Central de utilizar fontes próprias de receita e de exercer plenamente sua autonomia orçamentária e financeira, pois tudo é submetido ao orçamento geral da União. Apenas com o regime jurídico de direito privado, com competências e garantias definidas na Constituição, será possível garantir a auto-organização e a capacidade de resposta que o BC necessita para atuar de forma efetiva no sistema financeiro moderno, sempre sob controle e supervisão públicos.

Mais do que isso, a modernização institucional proposta pela PEC 65 constitui um verdadeiro antídoto para proteger a infraestrutura pública do Pix e das demais inovações do Banco Central. Ao ampliar a autonomia administrativa, financeira e orçamentária, a proposta assegura que a gestão, as regras e a operação do Pix permaneçam sob controle estatal, evitando a necessidade de terceirização, delegação ou fragmentação dessas funções por falta de recursos. Dessa forma, a PEC blinda o sistema de pagamentos brasileiro contra pressões de interesses privados e preserva o Pix como patrimônio público a serviço da sociedade.

Vale lembrar que, entre 1964 e 1996, o BC já operou com servidores celetistas, sem prejuízo à sua autoridade técnica. O ordenamento jurídico brasileiro, com base em decisões do Supremo Tribunal Federal, reconhece que a obrigatoriedade do regime estatutário decorre da condição de autarquia. Ao migrar para ente de direito privado, previsto constitucionalmente, o BC adquire a capacidade para auto-organização, atração e retenção de quadros qualificados, sempre com proteção a direitos adquiridos, mecanismos de estabilidade e manutenção do controle e missão estatal.

No campo jurídico, como destacou o ex-procurador Marcel, a legitimidade do BC depende de seu mandato constitucional e legal, não de sua forma institucional. A PEC 65/2023 insere na Constituição as prerrogativas de supervisão, regulação e sanção, preservando funções estatais e oferecendo segurança jurídica. O modelo assegura direitos adquiridos dos servidores, mecanismos de estabilidade e benefícios previdenciários, todos protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Também merece destaque a falsa polêmica sobre supostas tarifas ao usuário do Pix. A PEC não autoriza taxas para cidadãos, apenas o uso de receitas próprias — como taxas de supervisão e rendimentos financeiros — para custear as atividades do BC. Esse modelo já é padrão em bancos centrais como o Federal Reserve e o Banco Central Europeu, sendo essencial para garantir a sustentabilidade do Pix e de outras inovações, ao permitir investimentos contínuos em segurança e tecnologia.

Alternativas infraconstitucionais não resolvem o bloqueio estrutural do financiamento do BC. Tentativas anteriores de criar fundos ou taxas específicas sempre esbarraram nas restrições do modelo de autarquia, sujeito à unidade orçamentária da União e à competição por recursos públicos do Orçamento Geral da União. Isso limita a capacidade do Banco Central de inovar ou reforçar sua segurança no ritmo exigido pelas demandas do sistema financeiro nacional, que hoje é referência mundial em inovação.

A aprovação da PEC 65/2023 é a resposta que o país precisa. A proposta alinha o Brasil às melhores práticas internacionais, garante autonomia operacional, financeira e administrativa ao Banco Central e cria as condições para que o Pix e o sistema financeiro brasileiro sigam inovando e protegendo a população diante dos desafios do futuro.

*Guilherme Solino é auditor do Banco Central do Brasil

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